O nível de foco que Miguel estava mantendo atualmente era fenomenal em comparação com qualquer outra criança da sua idade.
Mesmo com todo o seu esforço e a habilidade de visualizar cada fibra muscular rompida, cada ligamento prejudicado, e cada pequena impureza que o penetrava, a energia nutritiva gerada pela Técnica de Sublimação Corporal não fez diferença.
Depois de passar por cada postura pelo menos três vezes, usando seu Sentido Divino ao máximo, Miguel foi obrigado a desistir. Ele percebeu que só estava piorando suas lesões. Não houve milagre.
Apesar de acreditar que a mente deveria reinar sobre o seu corpo, Miguel não conseguia se mover como desejaria, da mesma forma que não pode controlar o seu batimento cardíaco.
Agora, só restava esperar e torcer para se recuperar de forma lenta, como qualquer outra pessoa.
Com a postura meio curvada e a cabeça baixa de desânimo, Miguel procurou pelo caderno e lápis que estava usando antes de dormir. Após apanhá-los, sentou-se no chão e continuou a desenhar as formas geométricas de onde havia parado.
Rabiscando de forma automática, Miguel começou a pensar sobre o que fazer a seguir.
Descansar e comer bem para recuperar seu corpo, analisar o avanço que teve no Cultivo Espiritual e como poderia tirar melhor proveito dele, e claro, se preparar para o resultado das mortes dos Zekle.
Seu Sentido Divino se expandiu novamente e, apesar de ser no meio da madrugada, os criados da casa estavam perambulando de um lado para o outro com urgência. Fábio, não está no seu quarto.
Miguel já podia imaginar o motivo. Parecia que começaram a dar importância ao sumiço dos Zekle. É muito suspeito que pessoas de uma família rival desapareçam no meio da noite dentro do território dos inimigos.
De acordo com todas as informações que ouviu naquela noite no bordel, havia um senso comum da existência de uma relação entre seu avô Maximus e os Zekles. Então, é óbvio que estariam sob suspeita de traição. Portanto, esta agitação, antes mesmo do desaparecimento ser anunciado, já era esperada.
Fazendo o possível para tentar se animar após esta falha espetacular, Miguel começou a comprimir seu Sentido Divino na forma de uma corda e usá-lo para percorrer toda a casa, junto às ruas ao seu redor, para coletar informações e ver até que nível o caos cresceu enquanto estava dormindo.
Desta vez, Miguel não falhou. Rapidamente, ele notou Fábio, Maximus e Elena juntos no escritório, conversando entre si.
"Ele fez mais alguma coisa?" perguntou Maximus.
"Nada, tentou se exercitar com aquela técnica estranha e agora está sentado desenhando," respondeu Elena.
Miguel sentiu um calafrio percorrer a espinha ao perceber que estava sendo monitorado. Foi necessária toda a sua força de vontade para controlar o corpo e não se mover ou expressar qualquer reação ao que acabou de escutar.
"Ainda não acredito que exista uma habilidade tão conveniente," falou Fábio enquanto tamborilava os dedos no encosto da cadeira. "Eu não fazia ideia de que você também vinha de uma família nobre, Elena, e nem que existisse uma com uma habilidade como a sua."
"Isso não convém agora," disse Elena, "o importante é que, no mesmo dia que Paulo desapareceu com seus asseclas, Miguel havia saído naquela noite e eu detectei o perfume das prostitutas e um leve cheiro de sangue nas suas roupas. Se não fosse pela minha habilidade, isso teria passado despercebido."
"Então o que? Você está insinuando que o nosso neto tem alguma relação com o sumiço daqueles merdas?"
"Não foi isso que eu disse, mas ele pode ter algumas informações sobre o que aconteceu naquela noite."
Houve um momento de silêncio. Apenas o som dos dedos de Fábio batendo na madeira da cadeira e os passos de Maximus andando de um lado para o outro no escritório podiam ser ouvidos.
"Fábio, você não poderia..."
"Sim, eu posso perguntar para ele, mas vou ser direto. Isso não é um interrogatório. Eu aposto que passei mais tempo com Miguel do que vocês dois, e ele é um bom garoto."
Ainda um pouco agitado, Fábio saiu da sala com passos vacilantes, deixando Maximus e Elena se encarando lá dentro.
Depois que a porta se fechou, Maximus fez uma leve insinuação com a cabeça, e Elena acenou em confirmação. Então, ele continuou a falar:
"As coisas estão muito complicadas agora. Pensei que vocês cultivadores não pudessem interferir no que acontece dentro do império."
"Também não tenho certeza do que está acontecendo," disse Elena, falando com uma voz calma e controlada, enquanto lançava olhares na direção de Miguel. "Com todos os juramentos e leis sendo colocados em execução, ninguém deveria poder saber da verdade. Você só foi introduzido à verdade depois do nosso casamento, e eu não podia nem contar para nossa filha.
Mas não consigo pensar em mais nenhuma outra hipótese além de outro cultivador ter entrado na cidade e lidado com aqueles irmãos."
"Você não viu mais nada naquela noite?"
"Foi por acaso que Miguel passou dentro do meu Sentido Divino e eu pude ver ele correndo para fora de casa. Não deu tempo de segui-lo. Se eu não tivesse saído naquele dia para fazer o meu relatório anual, poderíamos tê-lo pegado em flagrante quando retornou para casa..."
"Toda essa confusão aconteceu agora que estávamos quase descobrindo os planos dos Zekle e Eklere por completo... Agora que os idiotas se foram, vamos ter que encontrar uma nova fonte de informação, e duvido que sejam tão fáceis de manipular."
"Estou arrependida de ter comentado minhas suspeitas para o Fábio antes de confirmar a coisa toda. Será que o cultivador com quem Miguel tem contato possui um Sentido Divino maior que o meu e ouviu toda a conversa? Mas, ainda assim, que sentido haveria em caçar aqueles três?"
"Será que não foi o próprio Miguel quem ouviu a conversa e pediu por ajuda?"
"Impossível. Os quartos de hóspedes têm isolamento, e nunca uma criança poderia despertar o Sentido Divino. A gente já conversou sobre isso, e se fosse tão fácil você teria despertado o seu depois que te contei sobre isso. Foi um milagre eu ter despertado o meu."
Maximus suspirou.
"Fábio já chegou lá?"
"Ainda não... vou continuar observando."
Miguel lembrou que Fábio estava a caminho e começou a distorcer seu Sentido Divino para procurá-lo nos corredores da casa. Procurar seu professor enquanto observava os avós ao mesmo tempo exigia um grande esforço mental, e Miguel ficou preocupado em se descuidar e revelar seu Sentido Divino para Elena.
Portanto, ele decidiu relaxar e focar na conversa que teria com Fábio a seguir. Havia pouco tempo para pensar em uma desculpa e inventar uma história plausível. Tudo isso sem revelar o choque ao saber que seus avós tinham conhecimento sobre os cultivadores.
Nunca ocorreu a Miguel que alguém neste mundo inferior teria alguma ideia sobre o que é o Cultivo, nem que essa pessoa seria alguém relacionado por sangue com ele.
Apesar do Cultivo Espiritual avançar de forma inconstante, a probabilidade de alguém sem conhecimento passar para o estágio seguinte é próxima de zero. O fato de Miguel ter conseguido na sua vida passada não é motivo para acreditar que outras pessoas poderiam.
Por isso, ele nunca se preocupou em ocultar seu Sentido Divino e vinha usando-o de forma indiscriminada, sem se preocupar em ser detectado. Pelo que parece, Elena possui um Sentido Divino muito maior do que o de Miguel.
Ele teve muita sorte de Elena não ter avançado ainda mais no Cultivo Espiritual. Se ela pudesse detectar seu Sentido Divino, descobriria que não é tão difícil para uma criança desenvolver um Sentido Divino como ela acredita.
Elena provavelmente acredita nisso porque, durante o primeiro estágio do Cultivo Espiritual, o Espírito Adormecido, a pessoa se desenvolve de forma inconsciente. Sem anos de vivência e memórias, é quase impossível estabelecer o Mundo Espiritual.
Quem poderia imaginar que Miguel possui memórias de uma vida inteira, inclusive como um ser no mesmo nível que os Deuses.
No pouco tempo que possuía antes de Fábio chegar, Miguel revisou a lição sobre até onde a mente pode controlar o corpo. Durante a conversa com Fábio, ele não poderia deixar a mínima pista sobre sua culpa, visto que nada de bom resultaria em revelar ser culpado pela morte de três nobres.
Começando pelo seu Sentido Divino, Miguel fez um esforço não para observar os arredores, mas para ver seu próprio corpo de uma perspectiva de terceiro. Parecia como se fosse um estranho vendo uma criança sentada no quarto, desenhando em seu caderno.
Num flash de inspiração, Miguel dividiu um pequeno pedaço de sua atenção para observar dentro de seu Espaço Mental e verificar os sete pilares coloridos que cresceram dentro de seu Mundo Espiritual. Ele esperava que pudessem ser úteis muito em breve.
Em pouco tempo Miguel ouviu a batida na porta seguida pela voz grave da Fábio:
"Miguel, você está acordado?"