Durante sua vida passada, Miguel passou milhares de anos preso no estágio do Espírito Desperto, tempo suficiente para explorar cada pequeno uso que poderia dar para o seu Mundo Espiritual e Espaço Mental.
A forma como seu Cultivo Espiritual se manifestou nesta vida é vastamente diferente: havia muita cor, um chão translúcido formado a partir de um oceano de águas claras, por onde suas memórias nadavam, pilares que absorviam as cores e eram manifestações de suas emoções. Sem mencionar que ele podia acessar seu Mundo Espiritual antes de despertar o seu Espírito.
Porém, no fundo, sua essência ainda era a mesma de antes. Isso ficava evidente pela maneira como Miguel conseguia manipular o seu Sentido Divino para focar em diferentes aspectos ou então esticar e mudar seu formato.
Miguel também conhecia diversas maneiras de se proteger contra o Sentido Divino de outras pessoas, e o motivo para não ter usado até agora era claro: arrogância, complacência, soberba, orgulho... qualquer uma dessas justificativas se aplicava.
Agora, não houve tempo para levantar defesas. Miguel precisava se preparar para a atuação de sua vida.
Enquanto uma pequena parte de seu foco se voltava para os pilares em seu Mundo Espiritual e a forma como eles reagem aos acontecimentos externos, junto com sua visão em terceira pessoa de seu próprio corpo, Miguel foi envolvido por um sentimento estranho.
Era como se, ao pilotar uma carruagem, de repente tivesse as rédeas tomadas de suas mãos, e outra pessoa assumisse o papel de condutor. No entanto, esse novo condutor não conhecia o caminho e só se movia após receber as devidas orientações.
Assim aconteceu com Miguel. Conforme os segundos passavam, ele deixava de ser o condutor de seu corpo e passava para o papel de passageiro, guiando para onde o motorista deveria ir.
Como não podia ver as reações de Elena e sabia que estava sendo observado, o objetivo de Miguel não era apenas mentir para enganar os outros, mas mentir de forma a enganar a si próprio. Se ele conseguisse criar uma história capaz de convencer seu lado racional, dificilmente não convenceria Fábio e seus avós.
Cada detalhe, cada expressão, tinha que ser perfeita. Afinal, não se tratava apenas de convencer os outros; ele precisava acreditar na história que estava prestes a criar.
Foi na terceira vez que Fábio bateu na porta que Miguel agiu como se tivesse acordado de um transe, algo que não era completamente falso, e falou:
"Professor! Pode entrar." Ele levantou-se do chão, colocando o caderno e o lápis de lado. "Bom dia, professor. Não estava esperando te ver tão cedo. Aconteceu alguma coisa? É porque devemos viajar de volta para a mansão?"
"Ah, não, está tudo bem," Fábio respondeu, tentando manter o tom leve. "Aconteceram algumas coisas, então não vamos sair da cidade por enquanto..."
"Mesmo? Hahahaha! Isso é ótimo!"
Miguel se esforçou para ficar ereto e cumprimentar Fábio, mas no instante em que ouviu que não sairia da cidade, foi como se uma fonte de energia tivesse sido injetada na sua corrente sanguínea. Ele começou a sorrir de forma boba, a tensão anterior aparentemente esquecida.
"Então meu avô reconsiderou e não vai mais me mandar de volta para a casa do Duque?"
"Não é bem assim," Fábio começou, cauteloso. "Coisas aconteceram na cidade, e eu vim conversar com você."
O entusiasmo de Miguel desapareceu tão rápido quanto surgiu. Sua postura murchou, e ele simplesmente caiu de forma desanimada sobre a cama, se enrolando nas cobertas.
"Eu sabia... ninguém dá a mínima..." ele murmurou em voz baixa, quase inaudível. Então, falando em um tom normal, perguntou: "O que aconteceu de tão importante na cidade que não poderemos sair, e o que isso tem a ver comigo?"
"Lembra do nobre que conheceu quando chegamos à cidade?"
"Aquele que falou mal da mamãe na cara do meu avô e ele não disse nada? Sim, lembro. Por quê?"
Fábio ficou surpreso com a resposta direta e o tom brusco de Miguel. Era evidente que o garoto estava se fechando, suas respostas se tornando mais ásperas. Sem saber exatamente como proceder, Fábio decidiu continuar.
"Ele e seus amigos desapareceram. Você comentou sobre ele com mais alguém ou alguém perguntou sobre ele para você?"
"Não! Não sei de nada!"
"Tem certeza? Porque você pode ter comentado sem querer com alguém e..."
"Já disse que não falei com ninguém!"
"Tenha cuidado com os seus modos, garoto!" Fábio se exaltou, talvez por ter grandes expectativas em relação a Miguel, ou pela frustração de ver o garoto, normalmente educado, se comportar de forma tão desrespeitosa.
Miguel não respondeu, o silêncio cresceu entre eles.
"Ainda quero te perguntar mais algumas coisas," Fábio insistiu, controlando o tom. "Alguns servos falaram que viram você saindo de casa naquela noite. Para onde você foi?"
O rosto de Miguel ficou vermelho. Ele fez diversas caretas, como se estivesse guardando um grande segredo e sentindo muita vergonha. No entanto, no fim, ele optou pelo silêncio.
"Miguel," Fábio tentou novamente, mais gentil. "O assunto é sério, e preciso que você converse comigo, ok?"
Mas Miguel não respondeu mais. Não importava o que Fábio dissesse, o garoto apenas se encolhia sob as cobertas, recusando-se a falar.
Depois de diversas tentativas infrutíferas e até apelando para citar os interesses de Miguel numa tentativa de chamar sua atenção (coisas como pintura, a orquestra que assistiram juntos, ou até a técnica bizarra que ele mencionava às vezes) nada fez Miguel reagir.
Fábio, suspirando, finalmente desistiu e saiu do quarto, voltando para o escritório de Maximus.
Assim que a porta se fechou, Miguel desabou em lágrimas, seu corpo se encolhendo ainda mais na cama. O soluço era silencioso, mas seu corpo tremia levemente, como se estivesse tentando conter a maré de emoções que ameaçava afogá-lo. Entre os murmúrios abafados, suas palavras escapavam em meio ao choro:
"Eu não deveria ter voltado..."
Enquanto as emoções se libertavam (alegria, tristeza, culpa, vergonha) um vazio se mantinha firme no fundo da sua mente, como uma fortaleza de pura racionalidade. Esse vazio controlava a mente e o corpo de Miguel, manipulando-o como um titereiro puxa os fios de uma marionete.
Sem a necessidade de focar na próxima resposta, agora que Fábio havia deixado o quarto, Miguel usou um pequeno pedaço da sua concentração para começar a construir suas defesas contra o monitoramento através do Sentido Divino de Elena.
Ele sabia que bloquear a inspeção seria imprudente, até suicida. Mas Miguel podia recorrer a uma técnica mais primitiva. Começou a recitar um canto mnemônico dentro de sua mente, e logo seu Sentido Divino começou a vibrar em uma frequência única, uma ressonância que ele poderia reconhecer facilmente.
Cada vez que o Sentido Divino de Elena entrava em contato com Miguel, ele sentia uma leve interferência na vibração de seu próprio Sentido Divino. Isso permitia que ele soubesse quando estava sendo observado, uma precaução simples, mas vital.
Era algo tão básico e comum no Reino Superior que deveria ter sido implementado assim que despertou seu Sentido Divino, mas que, por arrogância e complacência, Miguel havia negligenciado até agora.
Miguel não fez questão de saber o que seus avós e Fábio estavam discutindo. Conhecimento demais poderia levar a deslizes durante sua atuação, como demonstrar saber sobre assuntos que não deveria.
O importante, neste momento, era continuar a atuação, nunca parar, e evitar levantar mais suspeitas.
Até o final, pouco antes de Fábio sair do quarto, parecia que ele estava apenas tentando consolar Miguel. Mas o fato de mencionar a Técnica de Sublimação Corporal era um indício claro de que estavam tentando tirar informações dele.
De onde surgiu essa técnica? Por que Miguel acreditaria que ela era benéfica o suficiente para convencer Fábio a praticá-la? Onde ele foi durante sua escapada noturna? E se os ferimentos não foram causados pela técnica da família Zekle, então de onde vieram?
Miguel já havia cometido muitos deslizes, totalmente diferente de como agia no Reino Superior durante sua vida passada. Agora, ele precisava andar com cuidado, pois um passo em falso poderia fazer tudo desmoronar.
No fim, a pior parte seria ser descoberto. Miguel nem sabia explicar para si mesmo como havia chegado a essa situação. Imagina ter que contar que possui memórias de um futuro que nunca aconteceu? No mínimo, procuraram um médico para examinar sua cabeça e ter certeza de que não está faltando nenhum parafuso.
Ao longo do dia, ninguém voltou ao quarto de Miguel, exceto por Sarah. Ela aparecia para entregar as refeições, já que ele se recusava a sair do quarto, e tentava puxar conversa para descobrir o que o incomodava tanto. No entanto, Miguel se manteve calado, sua expressão vazia e distante, seus olhos fixos em nada.
Apesar de ter capacidade de sair para participar das aulas com Fábio, Miguel continuou deitado na cama. A cada hora que passava, sentia o peso da situação esmagá-lo. Mesmo assim, ele sabia que não podia permitir que seu disfarce desmoronasse, não com o Sentido Divino de Elena vigilante, como uma sombra persistente, sempre presente.
Toda essa atuação, o foco contínuo em exprimir as emoções corretas que uma criança comum de treze anos deveria mostrar, estavam elevando seu estresse e exaustão a níveis quase insuportáveis. Miguel sentia seu corpo e mente à beira do colapso, o limite de sua resistência cada vez mais próximo.
Quando o cansaço mental começou a ameaçar sua fachada, ele tomou uma decisão arriscada. Sentou-se no chão, de pernas cruzadas, e começou a meditar.
A meditação não era para se conectar com o Qi ou para cultivar; era simplesmente uma maneira de acalmar sua mente sobrecarregada. Ele respirou fundo, sentindo o ar encher seus pulmões, e forçou seus pensamentos a se organizarem.
Elena já deveria ter visto Miguel meditando, afinal, ela estava no quarto vizinho quando ele avançou para o Reino do Espírito Desperto. E, embora fosse estranho ver uma criança como ele meditando, Miguel esperava que isso não levantaria muitas suspeitas.
Na pior das hipóteses, ele torcia para que a meditação não fosse associada exclusivamente aos cultivadores neste Mundo Inferior.
E assim o dia passou, com Miguel mantendo-se firme, escondido atrás de sua fachada cuidadosamente construída.
Sua permanência na casa dos avós foi estendida, e agora restava saber por quanto tempo ele poderia manter seus segredos, ou se eventualmente tudo viria à tona, desmoronando ao seu redor.