Chereads / O Guardião dos Paradoxos / Chapter 30 - Um pouco de paz

Chapter 30 - Um pouco de paz

Miguel estava sentado de pernas cruzadas com um instrumento trapezoidal feito de madeira de nogueira, com diversos fios de aço, posicionado em seu colo. Com movimentos suaves e gentis, seus dedos acariciavam as cordas, liberando um som agudo e melodioso.

Seguindo o ritmo do metrônomo à sua frente, Miguel movia lentamente as mãos pelo gusli, tocando uma nota de cada vez. As notas se tornavam cada vez mais agudas até atingirem o ápice, e então ele invertia o movimento, buscando notas progressivamente mais graves.

Era apenas um treinamento básico, mas útil para melhorar a coordenação, memorizar as notas musicais e aperfeiçoar a percepção de ritmo. Desde que escolheu o gusli como instrumento, Miguel dedicava pelo menos duas horas diárias à prática.

Graças ao seu cultivo no Reino do Espírito Desperto, seus sentidos físicos eram superiores aos dos humanos comuns, o que facilitava a adaptação e o aprendizado de novos instrumentos.

Por isso, as horas de prática musical se tornaram, para ele, um momento de descanso, enquanto seu corpo agia de forma quase automática.

Mesmo sem sua atenção total, o tempo gasto praticando não era desperdiçado. Ainda que estivesse distraído, Miguel progredia na velocidade de uma pessoa comum. Isso o fazia imaginar até onde poderia chegar se dedicasse toda a sua atenção ao aprendizado do novo instrumento.

Esses períodos de pausa também eram importantes para sua mente, que lidava com várias coisas ao mesmo tempo: o constante uso de seu Sentido Divino, a análise da Técnica de Sublimação Corporal, a organização do conhecimento extraído de suas memórias e a exploração dos arredores.

De maneira inesperada, esse tempo de prática se tornava um espaço inadvertido para introspecções.

Miguel conseguia observar em tempo real a forma como suas emoções surgiam, suas relações com as memórias e nuances antes despercebidas.

Por exemplo, quando suas memórias começaram a ser atraídas pelos pilares do seu Espaço Espiritual, ele acreditava que não encontraria muitas relacionadas ao amor, mas estava enganado.

Refletindo sobre isso, Miguel percebeu que sempre pensara nas emoções de maneira linear: amor era amor, ódio era ódio. No entanto, ao observar seu Espaço Espiritual, começou a notar que as emoções raramente surgem de forma pura. Elas se entrelaçam, criando novos matizes e formas de sentir.

Amor fraternal, paternal, gratidão, intelectual, material, solidário, altruísta — e tantas outras maneiras de uma única emoção se manifestar.

Isso sem contar as combinações de múltiplas emoções.

Amor, insegurança e medo se misturam e dão origem ao ciúme. Por outro lado, felicidade e medo se unem em um sentimento que Miguel ainda não sabia nomear, mas que estava presente nos momentos em que sua vida estava em risco. Ignorando todas as probabilidades, ele supera as adversidades e sobrevivia — e, honestamente, esse era o sentimento mais viciante que já experimentara.

A euforia de conquistar a morte era inebriante, e só o pensamento de sentir aquela emoção mais uma vez o distraiu. Seus dedos se contraíram de forma errada, e ele quase errou a próxima nota da escala.

Ficou claro para Miguel que seus avanços no Cultivo Espiritual não eram fruto de uma única revelação. Esses momentos de relaxamento, onde sua mente podia vagar sem preocupações, também desempenhavam um papel fundamental. Foi em um desses momentos que ele conseguiu descobrir as emoções que faltavam para completar o quebra-cabeças que era seu Espaço Espiritual.

Como em todos os avanços no Cultivo Espiritual, a resposta veio de forma abrupta. E, uma vez que tomava conhecimento da verdade, tudo parecia óbvio e claro, fazendo-o se sentir estúpido por não ter percebido antes.

Isso aconteceu alguns dias depois que o Mundo Espiritual e o Espaço Mental de Miguel se fundiram. Naquele período, ele estava muito focado no limite entre o aspecto mental e o físico das suas emoções.

A forma como seu corpo e os hormônios gerados afetam o desenvolvimento de seu cérebro, e consequentemente de sua mente, influenciava como ele via o mundo e como seus pensamentos eram forjados.

Era uma relação de causa e efeito: toda emoção era uma resposta psicológica a um fenômeno fisiológico. Seu corpo absorvia sensações e experiências, que, por sua vez, desencadeiam emoções.

Podendo visualizar todas as suas memórias — passadas, presentes e futuras — Miguel percebeu que esse padrão se repetia constantemente.

Bem, exceto em alguns momentos específicos, em que ele sentia algo sem motivo aparente. Momentos em que experimentava dor, felicidade ou tristeza de outra pessoa. Miguel sabia o nome desse fenômeno: empatia.

Exclusivamente nesses instantes, Miguel conseguia sentir emoções que não eram fruto de suas ações, sensações ou pensamentos, mas sim um reflexo do que ele acreditava que outra pessoa estava sentindo.

Além disso, ele notou que a empatia permitia interpretar as emoções dos outros e se relacionar com eles de forma mais profunda.

Com esse entendimento, bastou procurar no outro extremo do espectro para encontrar o oposto da empatia: a apatia.

A apatia era um vazio puro, escuro e sem fundo, onde todas as emoções e sentimentos desapareciam.

Essas constatações levaram ao surgimento de uma parede no local onde deveria estar o pilar norte. A parte externa era de um branco puro, reflexo da fusão de todas as cores, enquanto a parte interna era de um negro profundo, com pequenos vislumbres de luz emanando dos pilares e das memórias gravadas na parede.

Visto de dentro, a parte superior do Espaço Espiritual de Miguel lembrava um céu noturno pontilhado de estrelas.

Empatia e apatia se destacavam das demais emoções. Uma parecia englobar a totalidade delas, enquanto a outra representava sua ausência completa. Talvez por isso formaram uma parede com apenas dois lados, ao contrário dos pilares quadráticos de quatro faces, dos quais apenas duas estavam iluminadas.

Ainda restava muito a ser explorado no Espaço Espiritual de Miguel.

Todas essas constatações, aprendizados e evoluções — tanto físicas quanto mentais — ao longo dos últimos dois meses foram o que finalmente trouxeram paz a Miguel.

O fato de seus planos para os próximos anos estarem fluindo tranquilamente era apenas um bônus. Para ser honesto, Miguel não tinha muitos objetivos especiais para alcançar neste Mundo Inferior.

Provavelmente ele viveria muitos anos e cultivaria bastante antes de pensar em viajar para mundos maiores, muito menos para o Reino Superior. Em sua vida passada, ele fugiu de seus problemas assim que sentiu a conexão com outro plano de existência, escapando para um plano superior.

Desta vez, Miguel planejava aproveitar seu tempo para explorar cada detalhe dos reinos de cultivo — pelo menos os de Qi e Corporal, já que o Espiritual não estava sob seu controle. Ele queria aprender pintura, música e, quem sabe, ter a sorte de se aprofundar nas outras duas Artes Santas: a caligrafia e o xadrez, caso a oportunidade surgisse.

Aprender a combater corpo a corpo e refinar o seu corpo também seria útil. No entanto, a coisa realmente importante que ele desejava era mudar o destino de seu avô. Se Miguel conseguisse atingir essas metas, muitos dos arrependimentos que o atormentaram no futuro seriam eliminados.

Quando as duas horas de prática terminaram, Fábio ainda não havia chegado. Estava ocupado conversando com Maximus.

Parece que suas aulas não seriam particulares; iriam matriculá-lo em uma academia fundada por mercadores para treinar seus filhos, guardas e mercenários ricos.

O motivo para isso era uma aparente preocupação com a falta de um círculo social por parte de Miguel.

Ele vivia muito isolado e recluso, sem amigos de sua idade e, o mais preocupante, sem namorada ou sequer uma pretendente em vista.

Com 13 anos e sem um plano de casamento traçado, isso era visto como uma vergonha.

Enquanto bebia água e comia algumas frutas, devido ao seu crescente apetite, Miguel não sabia o que dizer sobre a preocupação daqueles dois velhos.

Chegou ao ponto de pedir para Sarah procurar Fábio e interromper sua conversa, na esperança de que isso os distraísse.

Felizmente, o plano funcionou. Alguns minutos depois, Fábio entrou na sala, pedindo desculpas pelo atraso e explicando que estava "ajudando Max a organizar sua saída da cidade."

Independentemente da verdade, Miguel apenas ignorou o assunto e focou na aula.

Segundo Fábio, com o básico que já havia aprendido, Miguel podia se tornar um bom instrumentista. Se continuasse dedicado ao gusli, já tinha o conhecimento necessário para tocar bem o instrumento.

Por outro lado, se quisesse realmente se dedicar à música, ainda havia muito para aprender: escalas, ritmo, harmonia, composição, tom, e muitos outros detalhes que poderiam ser estudados por anos sem nunca alcançar o ápice.

A mesma lógica se aplica à pintura. Diferentes materiais para criar a tela influenciavam o resultado final, assim como as tintas utilizadas, a teoria das cores, o reflexo da luz na água e em outras superfícies. Havia inúmeros detalhes que impactam os trabalhos futuros de Miguel.

Às vezes, Miguel se esquecia, mas tanto a pintura quanto a música representavam um Dao. E como todo Dao, seu tamanho era ilimitado e sua profundidade, desconhecida.