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Chapter 23 - Mortalidade

A voz da serva chamando por Miguel através da porta o fez recobrar os sentidos. Pode não parecer, mas já haviam passado horas desde que ele entrou no quarto e se sentou. Ao relaxar, Miguel perdeu qualquer noção do ambiente ao seu redor, inclusive do seu Sentido Divino, e por algumas horas ele ficou sentado, imóvel.

Para Miguel, apenas alguns segundos se passaram. Ele só percebeu o tempo que passou quando notou o sol forte e brilhante entrando pela janela.

"Jovem mestre!" chamou a serva novamente.

"Já estou saindo," respondeu Miguel com a voz rouca.

Com tremendo esforço, Miguel conseguiu ficar de pé, mas suas pernas começaram a tremer e ele sentiu câimbras por todo o corpo. Jogou para o lado o lençol e a fronha que usou para se cobrir antes de cair no chão com um baque.

"JOVEM MESTRE!"

A serva, ouvindo o barulho dentro do quarto, entrou de forma abrupta. Vendo o neto dos seus mestres caído no chão, ela entrou em pânico e correu para socorrê-lo.

A preocupação está estampada no rosto e movimentos agitados, a garota começou a apalpar o corpo de Miguel em busca de lesões ou ferimentos, mas não encontrou nada.

"Só estou um pouco exausto de treinar o meu corpo. Pode me ajudar a subir na cama?" perguntou Miguel, tentando explicar a situação.

Após algum esforço, a serva conseguiu sentar Miguel na cama, mas ele não conseguiu se sustentar e acabou deitando.

"Tem certeza de que está bem? Eu acho melhor ir buscar a..." A serva não terminou a frase. Em poucos segundos deitado, Miguel desmaiou de exaustão.

Dez horas depois, Miguel acordou, sentindo-se um pouco tonto e com dor de cabeça. Ele ficou alguns minutos paralisado, a mente vagando sem focar em nada específico.

Suspirou.

'Ser mortal é realmente inconveniente...' pensou Miguel.

Ele sentiu vergonha por estar nesta situação humilhante. Apesar de suas tentativas desesperadas, seu corpo não respondia aos comandos, e ele não conseguia se levantar.

Não era uma questão de força de vontade ou de sentir dor, porque, acredite, Miguel estava sentindo dor em cada músculo do seu corpo. A verdade era algo muito mais simples. Diferente do que Miguel acreditava, esta foi a primeira vez que ele superou seus limites físicos, e agora estava pagando o preço.

Todos os dias, Miguel treinava na Técnica de Sublimação Corporal e, à tarde, fazia exercícios simples como flexões e abdominais. Normalmente, ele praticava até a exaustão, sentindo dor e fadiga.

Por outro lado, existe uma diferença gritante entre treinar e se exercitar sabendo que sua vida depende disso. O único motivo para não ter caído anteriormente foi seu foco, determinação e vontade, mas até isso tem um limite.

Para piorar a situação, não era somente seu corpo que estava em uma situação precária; sua mente também estava cansada e lenta. No fim, foram horas de corrida, escalada e carregar peso de um lado para outro. E não se pode esquecer do foco e da concentração gastos para não deixar vestígios para trás e garantir seu anonimato.

Fome, sede, sono, dor—tudo isso acompanhado por emoções que nublam seu julgamento racional e a falta de controle sobre os próprios processos fisiológicos, como a vontade de ir ao banheiro que está sentindo agora.

Esta não é a primeira vez que Miguel pensa sobre suas limitações físicas e mentais devido à perda do seu cultivo. No entanto, nunca foram tão intensas e evidentes quanto neste momento. Nem mesmo quando havia acabado de acordar no passado e quase enlouqueceu devido ao estresse da situação, Miguel se sentiu tão mortal.

Outra coisa que o incomodava era o que sentiu ao ponderar sobre a raiva e a complacência, e o contraste entre essas duas emoções opostas, assim como o que sentiu ao ouvir a apresentação musical. Tudo que pensava sobre ressonância, memórias e emoções foi uma oportunidade de avanço que já não existe mais.

Miguel pensou que poderia deixar qualquer tipo de avanço para mais tarde, mas esqueceu de algo comum para os mortais: a memória limitada. Ele acreditou que poderia recuperar uma linha de raciocínio interrompida algumas horas depois, mas não é assim que a mente humana funciona.

Quem dera fosse possível uma pessoa lembrar de forma coerente o que estava pensando alguns minutos atrás, muito menos horas depois.

Cansado de ficar remoendo o passado, Miguel tentou se levantar, mas suas pernas ainda tremiam. Ele se recostou na cama e olhou para o teto, tentando reunir forças. Sentiu um misto de frustração e aceitação.

Encarando as decorações do lustre, Miguel esperou o tempo passar enquanto seu Sentido Divino voltava a funcionar normalmente, atingindo o raio de 20,7 metros. Finalmente, a serva abriu a porta para observar sua condição.

"Jovem mestre! O senhor despertou. Vou chamar o mestre para te conhecer," disse a serva.

"ESPERA!" exclamou Miguel. "Antes, poderia me ajudar a ir ao banheiro?"

A jovem moça arqueou as sobrancelhas em surpresa ao ouvir a urgência na voz de Miguel, mas acenou com a cabeça e tentou apoiá-lo pelo braço para tirá-lo da cama. Por sorte, havia um banheiro anexado ao quarto, o que facilitou o processo.

Foi um pouco difícil, mas a jovem foi paciente e profissional ao ajudar Miguel, parecendo já estar habituada à tarefa. Do ponto de vista dela, estava apenas ajudando uma criança machucada.

Assim que Miguel foi posicionado na cama e a moça saiu para chamar o avô, a porta se abriu mais uma vez e Fábio entrou no quarto.

Olhando para Miguel, que parecia um boneco quebrado caído em cima da cama, Fábio suspirou e disse: "Este é o motivo pelo qual eu não concordei com seu avô quando ele te ofereceu essa técnica maldita... você é muito novo e seu corpo é muito frágil para lidar com isso."

Miguel abaixou a cabeça como se estivesse com vergonha, mas na verdade estava tentando organizar seus pensamentos. De acordo com Fábio, as pessoas deviam pensar que ele estava sofrendo um rebote por tentar treinar na técnica da família Zekle sem a orientação e preparação adequadas.

"Sinto muito..."

"A culpa é minha," Fábio disse, a voz cheia de compaixão. "Você é tão maduro e inteligente que às vezes esqueço que é só uma criança e não sabe medir as consequências das suas ações."

Vendo a postura desolada de Miguel, Fábio acabou ficando com pena da sua situação e disse: "Eu já devolvi aquele livro maldito para o seu avô. Vou avisar a cozinha e eles vão preparar algo leve para você comer. Depois você pode descansar."

"Obrigado..." Miguel respondeu, sua voz um sussurro.

"Não precisa ficar desanimado assim," Fábio continuou, tentando animá-lo. "Erros acontecem. Você teve sorte que não foi nada muito sério. Pessoas sem despertar a linhagem divina que tentam absorver a Essência dos Deuses para despertar seus talentos nunca têm um final feliz."

Fábio se aproximou de Miguel e bagunçou os seus cabelos com a mão direita. "Descansa bem. Ainda temos que ver o quanto você aprendeu com a apresentação de ontem."

Terminando de se despedir, Fábio saiu do quarto.

Miguel relaxou na cama e esperou sentado por sua refeição. Seus pensamentos não puderam deixar de voltar para a questão do sofrimento causado pelo simples fato de ser mortal. Ele não viu outra solução a não ser aceitar as coisas como são e parar de reclamar.

É difícil não se sentir restrito depois de ter experimentado o poder por milhões de anos, mas qual poderia ser a outra escolha? Chorar não vai mudar o mundo para torná-lo mais agradável.

Depois de alguns minutos ponderando sobre se havia algum tipo de dignidade na existência de um ser incapaz de controlar a própria bexiga e sem controle sobre quando sentia vontade de urinar, a refeição de Miguel finalmente chegou.

A mesma jovem que estava cuidando do bem-estar de Miguel desde que chegou trouxe uma sopa em uma bandeja e o ajudou a tomá-la. Diferente da comida aguada da mansão Eklere, a sopa era encorpada e repleta de legumes, com pedaços generosos de carne. Apesar do paladar sensível de Miguel, estava deliciosa.

Foi então que Miguel se deu conta do outro lado de ser mortal que ele estava ignorando ao pensar somente nos problemas. Ele esqueceu dos prazeres.

Há quanto tempo ele não comia uma refeição de verdade antes de retornar ao passado? Quanto tempo passou sem dormir e descansar sua mente, sonhando com algo tão incrível que ficou triste por ter acordado?

Ser mortal não era só enfrentar dificuldades; havia momentos de felicidade que renovaram sua força de vontade para continuar em frente, apesar das tribulações.

Miguel não se deu conta, mas as suas sobrancelhas que estavam franzidas relaxaram e sua expressão suavizou, ao mesmo tempo, os seus lábios se curvaram ligeiramente em um sorriso.

Sentado na cama e sendo alimentado por uma jovem, Miguel parou de pensar e decidiu apenas aproveitar a situação.

"Eu me chamo Miguel, qual o seu nome?" perguntou entre as colheradas.

"Me... me chamo Sarah, jovem mestre," respondeu Sarah, surpresa com o interesse de Miguel por ela.

"Há quanto tempo trabalha nesta casa?"

"A mais de cinco anos, jovem mestre."

"Não precisa me chamar de jovem mestre toda vez, sabia?"

"Perdão, jovem mestre."

"Hahahaha, você é engraçada. Obrigado pela sua ajuda mais cedo."

"Foi somente o meu trabalho, jovem mestre."

Durante os minutos seguintes, Miguel conversou com Sarah enquanto tomava sua sopa e um pouco de água. Ele não estava tentando sondar um possível espião, apenas conversando com outra pessoa de forma desinteressada para aprender um pouco mais sobre a vida das outras pessoas neste Mundo Inferior e, quem sabe, distrair um pouco sua mente agitada.