O Sentido Divino de Miguel agia como um chicote, balançando ao seu redor, sempre se esticando ao limite em sua busca. No entanto, não houve resultados. Para ser honesto, nem haviam nobres presentes hoje.
Miguel desistiu, relaxou e decidiu aproveitar o show.
Fábio estava explicando sobre os instrumentos no palco.
"...e aquele ali é um piano. Apesar de não parecer, também é um instrumento de corda..."
Miguel conhecia os instrumentos, mas nunca se aprofundou no assunto. Para ele, o piano era um "instrumento de botões". Como poderia saber que existiam martelos e cordas dentro daquela caixa enorme? Para piorar, descobriu que o piano possuía pedais que alteravam o som e a reverberação, mudando a distância dos martelos, permitindo que as cordas vibrarem por mais tempo, ou abafando o som com um tecido fino.
Enquanto conversavam, as luzes diminuíram conforme o sol desaparecia no horizonte. Algumas tochas foram acesas e os músicos começaram a subir ao palco, posicionando-se em seus lugares.
Os mercadores, junto com suas famílias, vestidos com trajes vistosos e jóias resplandecentes, ficaram em silêncio. À medida que os segundos passavam, a expectativa da multidão crescia.
Os músicos, todos homens jovens, trajavam ternos pretos e sapatos de couro. Quando todos estavam posicionados, dois homens e uma mulher usando armaduras subiram ao palco. Embora parecessem de couro, Miguel percebeu que eram imitações sem capacidade defensiva.
Um dos homens de armadura se aproximou da borda do palco e começou a falar.
"No passado, antes dos tempos áureos da civilização, quando os humanos estavam presos na loucura e na barbárie e os reis eram déspotas e tiranos, os deuses, com pena dos seus filhos perdidos na imundice, enviaram sua filha predileta para nos mostrar o caminho da salvação..."
Conforme o homem narra um dos contos mais populares do Continente Prari, sobre como a Imperatriz conquistou o continente, os instrumentos começaram a tocar suavemente ao fundo. Aos poucos, o som crescia em potência e força. Mais instrumentos se juntaram à composição, criando tensão e capturando a atenção da plateia.
Miguel estava acostumado com essa história. Os livros no seu quarto de infância retratavam este conto, junto com as aventuras do fundador da família Eklere, mas foi a primeira vez que viu a história ser contada desta maneira.
Os homens e a mulher de armadura cantavam e narravam, enquanto os instrumentos davam vida à história. O som reverbera na concha acústica, impactando a multidão. Antes que percebesse, Miguel notou como seu coração, assim como o da plateia, estavam quase sincronizados, capturados pela música e ressoando como um.
A música tomou controle do ambiente. Ao fechar os olhos, Miguel não viu o conto de conquista da imperatriz, mas sim a sua própria jornada. Quando a percussão assumia um ritmo mais acelerado e os cantores falavam sobre a guerra santa, Miguel visualizava as batalhas nas quais participou. Quando o ritmo era mais calmo e melancólico, ele pensava nos amigos que perdeu e nas pessoas que não conseguiu proteger.
Miguel ficou fascinado com o poder da música de acessar suas memórias e trazê-las à tona.
Quando a apresentação chegou ao fim, deixou no público um gostinho de quero mais. Os artistas foram ovacionados, e Miguel não pôde deixar de elogiar.
"Isso foi incrível..."
"Fico feliz que você tenha gostado, mas agora já é muito tarde. Vamos ter que correr se quisermos voltar a tempo para o jantar."
Miguel estava ansioso para voltar. Ele sentia que, se meditasse agora, poderia capitalizar mais um avanço no seu Cultivo Espiritual. Só precisava de um tempo para reorganizar suas ideias, mas de repente teve uma dúvida e resolveu esclarecê-la com Fábio.
"Professor, eu pensei que não havia portão no norte da cidade. Então, o que tem naquela região e por que é tão movimentada?"
"Ah, é só o distrito da luz... NADA! Não tem nada para uma criança igual você naqueles lados."
Miguel acenou como se não tivesse entendido a reação de Fábio, mas ele sabia que estava falando do distrito da luz vermelha, onde estavam localizados os bordéis. Realmente, não havia nada de interessante por ali... a não ser... Miguel não poderia acreditar... não tem como eles serem tão incompetentes e estúpidos. Parece que Miguel terá que adiar sua meditação; hoje à noite, ele vai ter que verificar algumas coisas.
Levaram algumas horas para retornar à mansão. Durante todo o percurso, Fábio estava explicando para Miguel os pequenos erros que um leigo como ele não notaria durante a apresentação da noite. Por exemplo, alguns músicos, ao tentar se destacar, estavam "correndo", sobrepondo o "tempo" dos outros e quebrando o ritmo, consequentemente estragando a melodia.
Mesmo durante o jantar na mansão, eles eram os únicos na mesa que não paravam de falar, mesmo com a boca cheia, um claro sinal de falta de educação. Mas, quando Fábio mergulhava em um tema que amava, o resto do mundo poderia acabar que ele não se importava.
Maximus continuava taciturno e calado, e ainda não havia o menor sinal de sua avó.
De volta ao seu quarto, Miguel usou seu Sentido Divino para observar a mansão e esperou por um tempo. Ele viu como Fábio estava empenhado em preparar o material para as futuras aulas de música, assim como escolhendo novos livros que acreditava serem pertinentes ao aprendizado de seu aluno.
Quando Fábio caiu no sono, Miguel, que estava sentado em uma poltrona e oculto pela escuridão, abriu os olhos e se moveu. As sombras ocultavam sua figura, mas às vezes era possível ver o reflexo de seus olhos prateados. No momento, eles não possuíam mais o brilho da juventude e sua vivacidade habitual; eram poços opacos e desprovidos de emoções e vida, lembrando os olhos de um cadáver.
Miguel improvisou um manto usando fronhas e lençóis para cobrir o rosto e esconder seus cabelos dourados que se destacavam da população comum.
Com passos lentos, ele saiu do quarto e foi em direção à cozinha. Usando seu Sentido Divino, foi fácil desviar dos guardas e dos servos, mantendo-se incógnito. Chegando lá, não hesitou em pegar duas facas de desossa e um cutelo que amarrou na cintura com uma corda.
O que Miguel não notou foram os olhos de Elena, que se abriram no instante em que ele saiu da casa.
O movimento de hoje seria uma aposta, o que desagradava muito a Miguel. Ele estaria apostando na estupidez dos seus inimigos, algo que ele não podia acreditar. Mas, como não haveria perdas, decidiu arriscar.
Não havia lua e estrelas no céu esta noite, criando o ambiente perfeito para um assassinato.
Saindo da casa, Miguel se misturou na escuridão e correu para a zona norte. A cidade era muito grande e, mesmo de carruagem, levava horas para ir de uma ponta a outra. A pé, demoraria mais, se não fosse pela possibilidade de pegar atalhos pelos becos e vielas.
Mantendo um ritmo constante, tanto nos movimentos do corpo quanto na respiração, Miguel ainda levou horas para atravessar a cidade e chegar ao distrito da luz vermelha. Quanto mais perto dos bordéis, mais pessoas havia na rua, tornando mais difícil se movimentar e continuar escondido.
Chegando ao distrito da luz vermelha, Miguel não ficou indeciso sobre onde procurar. Ele foi pelos becos direto para os fundos do maior e mais luxuoso edifício. Encostado na parede, canalizou seu Sentido Divino até o andar mais alto. Lá, ele encontrou Paulo e mais dois homens da família Zekle, de acordo com seu nível de assimilação de Qi, eram dois Viscondes.
Miguel levou a mão à testa e começou a massagear a cabeça com força. Seus olhos sem vida ganharam um traço de emoção e perplexidade. Ele definitivamente subestimou o limite de estupidez que um ser humano pode atingir, chegando ao ponto de questionar seu próprio nível de inteligência.
'Talvez eu realmente esteja louco...'
Foram muitas coisas que o surpreenderam. Miguel imaginou que os Zekles presentes na cidade de Pahvia estariam escondidos, pois estavam dentro do território de outro Duque, talvez na casa de algum comerciante ou de traidores que se ressentem da forma como Octavio comandava os Eklere. Porém, eles não estavam escondidos, nem planejando o transporte dos recursos que extorquiram de Maximus para seu Ducado. Eles estavam aqui, gastando o que conseguiram, participando do que parecia ser uma orgia com diversas garotas e garotos, e usando e abusando de drogas.
Observando os quartos e transeuntes ao redor, foi possível notar mercadores conversando sobre os Zekles hospedados no melhor bordel da cidade há dias. As peças se encaixaram e Miguel começou a montar um quebra-cabeça da situação atual.
O Duque Octavio formou uma aliança com os Zekle para fingir um ataque à sua cidade e descobrir se seu pai ainda estava vivo. Mas ele não é idiota e não permitirá que ninguém poderoso de verdade se infiltre dentro do seu território. Por isso, o ataque será repleto de mortais, milícias comuns e mercenários que estão, neste momento, viajando a partir do território dos seus aliados. Também foi por isso que na sua vida passada Miguel conseguiu destruí-los sozinho apesar do pouco tempo de cultivo.
Agora, o que o Duque pensaria se o pai da mulher que ele casou estivesse se envolvendo com outra família nobre após a morte da sua esposa? E se o filho, que falhou na sua cerimônia de despertar da linhagem, agora estivesse utilizando o poder de outra família e ainda por cima cresceu forte o suficiente para ameaçá-lo? Quais as chances de seu sogro não ser um enviado para destruir seu legado e roubar tudo o que conquistou?
Como não ficar ainda mais desconfiado ao descobrir que Maximus vinha gastando sua fortuna para satisfazer os desejos dos enviados que deveriam apenas ter passado por aqui para firmar sua aliança, mas agora tornaram-se residentes dentro do seu território?
A pior parte é que Miguel nem pode ter certeza de que os idiotas dentro do quarto realmente avisaram a família sobre a existência de Maximus. Pela maneira mesquinha e intransigente que Paulo se comportou, quem garante que ele não escondeu a informação e mentiu para seu avô só para torturá-lo?