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Chapter 22 - Limpando o lixo

Miguel estava sentado no beco escuro, encoberto por sombras, esperando o tempo passar. Seu Sentido Divino percorria o edifício às suas costas de tempos em tempos. Como não tinha o fetiche de observar outras pessoas se divertindo, usou seu tempo para ouvir as conversas dos clientes.

Aprendeu muita coisa sobre o comércio dentro do Império Skyla. Talvez devido à necessidade de se provar na frente de moças bonitas ou para se gabar na frente dos colegas, muitos comerciantes, depois de algumas doses de álcool, soltaram as línguas e começaram a discutir tópicos delicados.

Miguel soube sobre diferentes cidades, rotas comerciais, e quais produtos eram mais populares em diferentes locais. Descobriu que o sal vale ouro na cidade de Pahvia, enquanto a seda não consegue se acumular nos estoques das lojas na Capital, a Cidade Imperial de Skyla.

Não havia como evitar. Além das fofocas sobre quem estava vendendo o quê e onde, o maior assunto da cidade era seu avô Maximus. Mais de um mercador desabafava com uma garota sobre um mercador ganancioso o suficiente para vender a filha a um nobre e agora estava sugando outros para enriquecer.

Maximus era citado a todo momento, especialmente acerca de sua relação com a nobreza e, em alguns momentos, com as gangues responsáveis pela venda e distribuição de drogas na Cidade de Pahvia. Os mais corajosos ou talvez estúpidos estavam inclusive falando mal dos nobres.

Não é surpresa dizer que sempre houve uma barreira entre a nobreza e os plebeus. Não devido somente à riqueza, mas também porque os nobres carregam o sangue dos Deuses, portanto é senso comum que não se misturem com os mortais imundos e incapazes de alcançar a grandeza.

Nobres e plebeus não circulam pelos mesmos ambientes, não comem as mesmas comidas e não vestem as mesmas roupas. Por isso, foi motivo de burburinho quando nobres de um território vizinho praticamente fizeram de um dos bordéis da cidade sua nova residência.

Na cabeça do povo, os nobres não têm as mesmas deficiências e necessidades que as pessoas comuns. Para Miguel, a verdade era muito clara: os nobres deste império decadente estão muito longe dos Deuses.

Na verdade, os Zekle não eram os únicos nobres dentro do bordel. Em quartos ocultos e isolados, havia homens de cabelos e olhos dourados desfrutando dos serviços e bebendo vinho de alta qualidade. Os Eklere também saíram em busca de diversão.

Mas eles não eram o foco agora. Havia alvos a serem eliminados, e no máximo, Miguel poderia torcer para pescar uma informação útil. Quem sabe, assim como os mercadores, os Eklere poderiam abaixar a guarda e falar mais do que deveriam.

Miguel se manteve oculto nas sombras. As horas passavam, e a noite tornava-se mais sombria em contraste com a vivacidade do bairro. Em diversos momentos, ele teve que mudar de posição para garantir seu anonimato.

Finalmente, as coisas se acalmaram no andar mais alto. Paulo e os outros dois nobres estavam inconscientes, completamente apagados. Com a quantidade de substâncias que consumiram, nem seus corpos aprimorados poderiam lidar com tudo dentro de poucas horas.

Miguel se preparou mentalmente e começou a escalar a parede do bordel. A parte da frente podia ser impecável, mas nos becos havia diversas rachaduras e saliências que ele podia usar como apoio.

Foi um esforço extenuante. Se Miguel não tivesse treinado seu corpo no último mês, não teria força para erguer seu próprio peso e subir pelas paredes.

Chegando ao topo, perto de uma janela, Miguel fez uma pausa para recuperar o fôlego. Olhando dentro da sala, não parecia diferente do que seu Sentido Divino havia detectado: vários corpos inconscientes caídos por todos os lados.

Miguel usou uma das facas para mover a tranca e abrir a janela. Com mais cuidado do que o necessário, bastou uma pequena fresta para se infiltrar no quarto. Com passos suaves, tomou cuidado para não pisar em alguém ou nos fluidos espalhados pelo chão.

Ao aproximar-se da cama, Miguel jogou algumas das garotas e garotos no chão, sem a menor consideração pelo seu bem-estar. Algumas das garotas foram salvas de morrer engasgadas com o próprio vômito por terem seus corpos virados depois de serem empurradas para o lado.

Sem hesitar, Miguel decidiu começar com Paulo. Suas mãos estavam firmes, seus olhos desprovidos de emoções. Com movimentos cuidadosos, ele chegou perto do nobre que roncava alto.

As facas foram posicionadas, uma no peito acima do coração e a outra na traqueia. Com movimentos rápidos, elas afundaram na carne de Paulo, fazendo cortes limpos. Miguel se afastou imediatamente.

Paulo acordou com um sobressalto, tentando gritar devido à dor da facada, mas o corte na sua garganta o impediu de emitir qualquer som além do gorgolejar de quem se afoga em sangue. Ao mesmo tempo, seu coração estava destruído, impedindo o oxigênio de chegar ao cérebro.

Paulo começou a perder a consciência. Seus olhos confusos corriam pela sala de forma frenética e desesperada, procurando entender o que havia acontecido.

A última imagem que viu foi a da criança que conheceu hoje, o filho de Nora e neto de Maximus, segurando duas facas ensanguentadas e o observando com indiferença. Seus olhos perderam a luz definitivamente, e Paulo partiu para o pós-vida confuso, repleto de queixas e indignação. Mas ele não precisava se preocupar, pois não partiria nesta jornada sozinho.

Assim como Paulo, os outros dois membros da família Zekle foram despachados em seguida. Durante todo o processo, as feições de Miguel não sofreram nenhuma alteração.

Não havia remorso, nem satisfação, apenas a mais pura apatia. Matar não era diferente de uma tarefa comum do cotidiano, como varrer o chão ou lavar roupas na beira de um rio.

Só existia a metodologia rápida e fria, buscando eficiência e evitando qualquer brecha que permitisse aos seus inimigos revidar.

Houve um tempo no passado em que matar era um problema e tirava seu sono durante a noite, causando pesadelos e um desconforto no coração. Miguel não podia negar que ficou um pouco preocupado. Seriam as primeiras vidas retiradas, e só ele sabe como tem sido difícil coordenar suas emoções e ações atuais com sua vida passada.

Miguel não pôde deixar de pensar: 'Será que vou ter um colapso ao ver sangue, como na minha primeira vida?'

Vendo o resultado do seu trabalho, os três corpos quentes começando a esfriar, Miguel percebeu que suas preocupações eram desnecessárias. No instante em que começou a escalar a parede e entrou no quarto, sua mente foi limpa de todos os tipos de distrações.

O grande dilema do valor de uma vida que o atormentava no passado já foi respondido por ele há muito tempo.

'As vidas valem o quanto eu quiser e, no caso de vocês, infelizmente não valem nada.'

Miguel limpou as facas nos lençóis vagarosamente antes de pegar o cutelo preso na cintura.

Essa seria uma noite muito longa.

Miguel estava parado no meio das favelas, olhando para um poço seco do qual saía uma fumaça negra com um cheiro pungente de carne queimada. Com um esforço hercúleo, empurrou uma tampa de pedra circular e selou o poço, transformando-o em um forno.

Horas haviam passado, e a madrugada estava chegando ao fim. Os primeiros raios de luz ainda não haviam surgido no horizonte, mas a escuridão já não era tão opressiva quanto há pouco.

Refazendo seus passos, Miguel passou pela parte de trás do bordel a tempo de ouvir alguns gritos no andar superior antes de serem silenciados. Usando seu Sentido Divino, ficou contente ao ver que a narrativa estava seguindo conforme seus planos.

Os Zekle não foram as únicas pessoas que Miguel matou naquela noite. Em meio às prostitutas contratadas, havia alguns membros de gangue com os quais Paulo fez amizade e que eram as fontes de suas drogas.

A diferença foi no tratamento que receberam após a morte.

Uma das garotas acordou e se deparou com os traficantes mutilados, com os membros espalhados por todo o quarto e a carne devastada como se por um demônio enviado dos infernos. Dinheiro estava jogado sobre os corpos ensanguentados, e as drogas que trouxeram estavam socadas nas suas bocas abertas num grito eterno de terror.

Após um grito estridente e esganiçado, a jovem prostituta acabou desmaiando novamente.

Esse tipo de força sobre-humana, capaz de partir as pessoas como brinquedos, só poderia ser algo realizado pelos nobres.

Não demorou muito para que os próprios proprietários do local começassem a apagar todas as evidências do ocorrido. Até os grandes líderes das gangues que habitam o submundo e o comércio de material ilícito fizeram esforço para encobrir tudo.

Quanto aos nobres que não poderiam ser encontrados em qualquer lugar? Tinha dinheiro o suficiente para entenderem o recado de que nada aconteceu ontem.

Após sondar diversas vezes com seu Sentido Divino e ter certeza de que nenhuma ponta solta foi deixada para trás, Miguel disparou pelo beco para retornar à casa dos seus avós. O suor escorria pela sua testa, e o seu cansaço era evidente devido às arfadas que dava para tentar regular sua respiração.

Não bastava a energia gasta ao correr até o distrito da luz vermelha; matar e limpar a cena do crime foi uma tarefa extenuante. Miguel teve que fazer várias viagens para não deixar nenhum pedaço dos nobres para trás e levar tudo até o poço onde foram descartados, com a maior dedicação para evitar ser visto.

Para os Imortais, o sono é opcional; é algo que fazem para passar seu longo tempo de existência. Mas não é uma escolha para um mortal, ainda mais um tão jovem quanto Miguel. Uma noite sem sono e o uso total de todas as suas faculdades mentais e concentração por tanto tempo geraram um nível de cansaço inigualável.

Miguel passou mais tempo correndo nesta noite do que se livrando dos resultados do seu trabalho.

Com o sol nascendo no horizonte, Miguel finalmente avistou a casa dos avós e sentiu um alívio imenso. Faltava pouco para acabar com tudo. Os servos estavam começando a acordar e partir para fazer suas tarefas.

Por um milagre, Miguel conseguiu lavar as facas e o cutelo que usou e devolvê-los sem ser notado, antes de voltar ao seu quarto.

Caído no chão, com a cabeça encostada na porta, Miguel relaxou e fechou os olhos. Sua respiração era ofegante, e o seu único desejo era dormir. Infelizmente, bateram na porta.

"Jovem mestre!"