No Reino Superior, havia um trecho de um poema que ficou muito famoso, pois o seu autor, de forma não intencional, conseguiu descrever de maneira sucinta os quatro primeiros estágios do Cultivo Espiritual. O poema dizia:
"...Sonhos incoerentes
Despertam minha alma
Crescido em meio a mentiras inconvenientes
Vontade é a verdade que me acalma..."
Foi pura e completa coincidência, tanto que o autor ganhou o apelido de o sábio mais tolo de todos os tempos. Mesmo assim, ninguém poderia negar a verdade dessas quatro frases simples quando correlacionadas com os avanços de evolução de um Espírito.
Todo ser vivo senciente está no primeiro estágio do Cultivo Espiritual e Corporal desde o seu nascimento, diferente do cultivo da Essência, onde somente após praticar uma técnica de coleta de Qi a pessoa pode entrar no primeiro nível.
O nome reconhecido pela maioria dos habitantes do Reino Superior deste primeiro estágio para o Cultivo Espiritual é Espírito Adormecido, pois neste momento o Espírito cresce de forma inconsciente à vontade do seu portador. De forma passiva o Espírito absorve todas as experiências de vida e informações captadas pelos oito sentidos, formando um Mundo Espiritual.
O Mundo Espiritual é uma base para todo o progresso futuro e só é revelado quando uma pessoa avança para o próximo estágio, Espírito Desperto,
Até lá, ninguém teve a menor noção sobre o quanto seu Mundo Espiritual se desenvolveu, porque ele cresceu e como fazer para que ele se expandisse mais rápido. Não existe uma linha de raciocínio coerente para o seu avanço, como estar preso em um sonho sem controle sobre o que acontece a seguir.
Por isso a situação atual de Miguel é tão estranha e incomum. Ele está observando em tempo real uma escuridão que constitui sua visão sendo renovada por um mar com uma miríade de núcleos.
A cada segundo que passa, a escuridão é apagada de forma consistente pelas cores resplandecentes e deslumbrantes. Elas invadem cada canto da visão de Miguel. Ele está testemunhando em primeira mão os fundamentos do seu Mundo Espiritual sendo construídos e expandidos dentro do seu Espaço Mental.
Miguel ficou paralisado diante de tamanha beleza. Os núcleos realizavam uma dança etérea de forma harmoniosa, enquanto os poucos assumiram uma forma líquida e desempenho um oceano colorido que regava o solo do seu Espaço Mental.
Não demorou muito até que tudo fosse coberto pelo oceano colorido que, ao se rir, parecia um chão cristalino que refletia todos os núcleos existentes.
O choque de Miguel só aumentou quando você viu o contorno de uma porta no centro do que deveria ser o oceano que ocupa agora todo o seu Espaço Mental. Aquela deveria ser a chave para o segundo reino do Cultivo Espiritual, e ninguém deveria vê-la antes de passar por ela e entrar no reino do Espírito Desperto.
Miguel estava muito familiarizado com esta porta. Foi durante o seu momento de epifania que ela se abriu na sua última vida e ele despertou o seu Sentido Divino. Com um pensamento, Miguel tentou se aproximar daquela porta, mas ela parecia uma miragem; quanto mais ele se focava nela, mais ilusória tornava-se a sua imagem.
Não importa a estranheza de como ele conseguiu formar o Mundo Espiritual tão rápido, assim como expandi-lo até esse estágio em tão pouco tempo, forçar avanços no Cultivo Espiritual ainda é impossível.
A incapacidade de Miguel de tocar ou mesmo se aproximar efetivamente daquela porta significava que ele não alcançou o ápice do Espírito Adormecido, mesmo depois de ver a construção do seu Mundo Espiritual. O avanço para o reino do Espírito Desperto ainda estava fora de alcance.
Pelo menos, com a vantagem de observar o seu Mundo Espiritual, Miguel poderia monitorar o seu progresso. Sem falar das vantagens para os seus oito sentidos, afinal, da mesma forma que os oito sentidos alimentam o Mundo Espiritual, os oito sentidos também são alimentados por ele.
Miguel não resistiu à interrupção da meditação e abriu os olhos, sendo inundado por uma torrente de informações. Sua visão melhorou significativamente; os detalhes e a variedade de cores perceptíveis aumentaram. Sua audição conseguiu atravessar as paredes, e ele não só ouvia, mas também diferenciava o som dos passos de cada servo no corredor. O cheiro da tinta seca nas telas próximas parecia fresco, e ele podia sentir as fibras de cada tecido da sua vestimenta. Por fim, com o seu paladar, agora era possível identificar cada um dos vegetais que compunham a sopa aguada do seu café da manhã.
Essas foram apenas as mudanças nos cinco sentidos conhecidos por todos. Para os três outros sentidos mais obscuros, as mudanças foram igualmente significativas.
O sexto sentido é o de equilíbrio. Ele nos permite saber a diferença entre cima e baixo, nos permite andar com firmeza e também é responsável pela nossa noção de espaço e distância entre objetos. O sétimo sentido é chamado de propriocepção; é a capacidade de alguém saber a localização de seus membros e movimentá-los sem ter que calcular a quantidade correta de força muscular para executar.
Por fim, o oitavo sentido é um pouco diferente dos outros e é mais próximo do Espírito do que da parte física de alguém. Ele é formado por uma amálgama dos sete sentidos anteriores em conjunto com a consciência de uma pessoa para dar vida a uma persona. Em termos simples, permite que alguém saiba que é um indivíduo independente dos outros ao seu redor; é o oitavo sentido que faz com que você se reconheça como um "eu" único.
Vale a pena ressaltar que todas essas mudanças que Miguel sofreu não causaram nenhuma alteração física. Todo o aprimoramento dos seus sentidos foi resultado da evolução da forma como seu Espírito e Mente operam. Por exemplo, sua visão não melhorou devido a um avanço nos seus olhos, mas na maneira como sua mente processa as imagens capturadas por eles.
Mesmo perdido em seus sentidos e tentando se adaptar aos poucos à sua nova percepção da realidade, Miguel não foi mais surpreendido por alguém se aproximando sem ser notado. Antes de Fábio abrir a porta, Miguel já estava ciente de sua presença.
Quando Fábio abriu a porta, foi saudado por Miguel, que já estava posicionado próximo ao cavalete, curvando-se e dizendo:
"Boa tarde, professor."
Fábio sorriu gentilmente. Quem não gostaria de ser tratado com respeito e educação? Principalmente depois de estar habituado ao jeito mimado e arrogante dos filhos dos nobres para quem é contratado para ensinar.
"Você está com uma cara muito melhor, pirralho. Só não se acostume a desmaiar pelos cantos por aí. Tenha um pouco de pena das garotas que vão te carregar para o seu quarto na próxima vez."
"Desculpe, professor. Mostrei um comportamento feio ontem."
"Ok... Ok... Vamos logo com a aula e tentar terminar o maldito desenho. Falta muita coisa para você aprender sobre pintura, e eu ainda tenho que te ensinar sobre música. Não temos todo o tempo do mundo."
Fábio reposicionou o banco com o cesto de frutas, ajustou o suporte no cavalete com as tintas e pincéis, e deu espaço para Miguel praticar novamente. E foi saudado com uma grata surpresa.
Vendo a forma como Miguel segurou o pincel, o molhou na tinta e tocou suavemente na tela, Fábio ficou surpreso com o salto na habilidade de Miguel entre ontem e hoje. Ontem foi um trabalho exaustivo ensinando Miguel a segurar o pincel corretamente e controlar a quantidade de força ao tocar a tela.
'Pelo amor dos Deuses, o garoto até furou uma tela ontem, e hoje olha para os movimentos dele. Parece até uma pessoa diferente.'
Atônito com a forma como Miguel progrediu, Fábio viu as poucas linhas de tinta começarem a se cruzar de forma suave para formar uma imagem espelhada do cesto de frutas. Em poucos minutos, Miguel terminou o que não conseguiu fazer em horas no dia anterior.
"Garoto, eu sabia que você não estava nas melhores condições antes, mas que tipo de estimulante você tomou? Eu aqui pensando que você não tinha talento para a coisa, acho que você não é uma causa perdida."
"Obrigado, professor, mas foi tudo graças à sua orientação."
"Cuidado, pirralho, falsa modéstia é pior que a arrogância. Quando alguém faz um elogio, só agradeça..." Fábio falou enquanto sinalizava para Miguel dar um passo para o lado para poder observar melhor a tela com o desenho. "...os contornos ficaram muito bons... acho que já podemos adicionar um pouco de vida ao seu desenho, não é mesmo?"
Só Miguel sabia que não estava sendo modesto. Ele realmente não tem nenhum talento artístico. Se não fosse pelo avanço fácil e súbito no Cultivo Espiritual, seu controle nunca teria avançado de forma tão abrupta.
"Garoto, acho que nem preciso mencionar que, para a próxima parte, quanto mais detalhado você quiser ser, mais fino deve ser o pincel, certo? Além disso, vou te contar o segredo para não fazer besteira.
Quando você estiver pintando, a maneira como você começa a passar o pincel deve ser constante do começo até o final. Se você pintar da esquerda para a direita, faça isso o tempo todo. Não misture suas pinceladas, ou a forma como a tinta se espalha na tela ficará desigual.
Outra coisa importante é prestar atenção na luz. Está vendo como ela incide sobre as frutas e como algumas têm uma casca mais reflexiva do que outras? Esses contrastes entre o branco da luz e o preto das sombras vão aumentar o nível de realismo.
Pode começar enquanto eu preparo a sua próxima lição. Se você se sair bem nas próximas duas tarefas, vamos dar uma pausa na pintura e começar com a música."
Fábio pegou uma das telas usadas e descartadas no canto da sala, o maior pincel disponível, e uma tigela com tinta preta. Deixou Miguel por conta própria para realizar sua tarefa.
Miguel, inspirou e expirou profundamente. Comparou a cor real das frutas no cesto com as tintas disponíveis e não ficou surpreso ao perceber que teria que misturar algumas para chegar no tom correto.
Com um pincel novo na mão, Miguel misturou as tintas vermelha e branca até chegar à cor desejada e voltou para a tela. Com leves golpes suaves, começou a dar cor ao desenho. Às vezes trocava de pincel, outras vezes misturava novas tintas para criar mais cores. Aos poucos, a imagem na tela começou a ganhar vida.
Graças à sua nova acuidade visual, maior sensibilidade no tato e precisão devido ao melhor controle do seu corpo, Miguel conseguiu avançar de forma constante e suave. Cada pincelada era melhor do que a anterior, e mais detalhes ele era capaz de incorporar na sua obra ao comparar sua pintura com o objeto real.