Quatro dias passaram.
As coisas correram de forma tranquila e Miguel seguiu a mesma rotina todos os dias. Acordava cedo, antes do nascer do sol, e treinava na Técnica de Sublimação Corporal até à exaustão. Após o café da manhã, corria para a sala de aula, onde encontrava os materiais de pintura e os levava para o jardim.
Durante esses quatro dias, Miguel trabalhou na mesma pintura. Nos primeiros três dias, ele criou o esqueleto da obra com esboços e traçados a lápis. Só recentemente começou a usar as tintas para pintar a imagem que estava em sua mente.
Houve uma mudança sutil na interação entre Miguel e Fábio. Agora, Fábio chamava-o pelo nome, e não mais de "pirralho" ou "garoto". Essa proximidade permitiu que ambos compartilhassem curiosidades sobre suas respectivas vidas.
Miguel ficou chocado ao saber que Fábio era o filho bastardo de uma família nobre, enquanto Fábio não acreditou ao descobrir que Miguel comia junto com os servos. Nem os filhos bastardos das outras famílias passavam por esse tipo de tratamento. Três refeições ao dia eram um luxo reservado para os trabalhadores dos nobres, e mesmo o pior dos nobres não permitiria que um de seus filhos vivesse em igualdade com os servos. Seria uma mancha na reputação da família. Porém, para o Duque Eklere, se o mundo não descobrisse, não era um problema.
Foi então que Fábio começou a dividir seu almoço com Miguel. Segundo ele, "Era muita comida para ser desperdiçada com um velho" e "Você é tão magro que, se não ganhar algum peso, o vento vai te levar embora."
Depois das aulas, Miguel voltava para o seu quarto. Apesar do cansaço e da fadiga muscular, ele fazia alguns exercícios básicos como flexões, abdominais e agachamentos, qualquer exercício que pudesse melhorar seu físico usando apenas o corpo.
Antes de dormir, Miguel lia os livros e fazia anotações para tirar dúvidas com Fábio no dia seguinte. Ele aprendeu muitas coisas novas, principalmente sobre anatomia, volume, densidade, planos e camadas, entre muitos outros conceitos que o ajudaram a melhorar na arte de desenhar e pintar. Por meio da leitura, também descobriu sobre outros estilos de pintura usados por diferentes artistas ao longo da história do Continente Prari.
Hoje, as coisas começaram da mesma forma e o dia parecia que seria igual aos outros. Miguel havia acabado de finalizar seu treinamento matinal e mais uma vez se encontrava caído no chão, arfando por ar, com o corpo coberto de suor.
Este foi o progresso nas posturas da Técnica de Sublimação Corporal:
Elefante - 3,2644%
Polvo - 0,0012%
Javali - 1,1597%
Coruja - 2,1476%
Tartaruga - 1,1643%
Cobra - 2,1928%
Borboleta - 2,1988%
Formiga - 2,2084%
Leão - 1,1729%
Cabra - 1,2283%
Coelho - 1,2063%
Era possível ver como o ambiente em que Miguel vive estava afetando seu desenvolvimento. As posturas que estavam progredindo mais rápido eram as do Elefante, Tartaruga, Cobra, Borboleta, Formiga e Coruja. Exceto pela postura da Coruja, que recebeu um impulso devido aos seus avanços no Cultivo Espiritual e aprimorou seus sentidos, todas as outras posturas cresceram de forma anormal porque são impulsionadas pelas impurezas encontradas no ar, na comida e na água que Miguel consumia todos os dias.
O café da manhã foi o mesmo de sempre, mas as coisas mudaram quando chegou para buscar os materiais de pintura. A sala estava vazia e até os instrumentos que ele ainda não havia utilizado haviam desaparecido.
Movendo-se para o jardim, Miguel não encontrou nada além dos arbustos, flores e árvores.
Quando estava retornando para o seu quarto, encontrou Fábio que também estava procurando por ele.
"Miguel, arrume suas coisas. Houve uma mudança de planos. Vamos sair mais cedo para encontrar seu avô no caminho. Ele disse que tem algo importante para você."
"Bom dia, senhor. Tem alguma ideia do que meu avô deseja?"
"Nenhuma ideia. Ele não falou muito na carta. Vamos logo pegar suas coisas. Vai ser uma longa caminhada até o distrito comercial e não podemos nos atrasar ou vamos perder a caravana."
"Tudo bem!"
Eles caminharam até o quarto de Miguel, que estava próximo. Ao abrir a porta, Fábio ficou surpreso com o que encontrou.
"Este é o seu quarto?"
"Sim, professor. Algum problema?"
Fábio olhou incrédulo para o cubículo com apenas dois móveis. Pelo menos ele não teve que encarar o cheiro de mofo, já que o bolor foi removido recentemente.
Enquanto Fábio estava parado, atônito, olhando para as condições em que um nobre deixava seu filho legítimo viver, Miguel recolheu todos os livros que pegou emprestado de Fábio e os amarrou com uma tira de tecido para facilitar o transporte.
Depois de montar o pacote e garantir que não deixou nenhum livro importante para trás, Miguel esperou um momento para que Fábio saísse do quarto, mas ele ainda estava perplexo com a situação.
"Professor?"
"O quê? Ah... certo... já pegou tudo?"
"Sim."
"Como assim? Não vai levar mais nada com você? E as suas roupas ou os produtos de higiene?"
Miguel balançou a cabeça em negação.
"O quê, nem isso você recebe?"
"Eu recebo três mudas de roupas para usar durante a semana. Troco entre elas junto com os servos quando o balneário fica disponível para nosso uso. Fora isso, só tenho alguns livros sobre o passado da família e as lendas do meu ancestral sobre o período em que seguiu a Imperatriz para conquistar o Continente Prari."
Fábio arregalou os olhos e começou a massagear a testa com a mão direita.
"Porra... desculpe pelo meu palavreado, mas tudo tem limite..." Fábio suspirou. "Vamos buscar minha bagagem e sair logo daqui antes que eu tenha um surto."
A parada seguinte foi o quarto de Fábio. Se Miguel estivesse consciente da última vez, teria notado que o quarto era igual ao usado quando um médico veio examiná-lo. O cômodo era grande e espaçoso, com uma cama de lençóis limpos no centro. As janelas, voltadas para o jardim onde tinham as aulas, ofereciam uma bela vista e uma boa circulação de ar.
Enquanto Fábio guardava suas roupas e utensílios, Miguel ajeitava as telas, instrumentos musicais, tintas e outros materiais. Com tudo embalado e pronto, os dois partiram para fora da mansão.
Ao longo do caminho, encontraram muitos servos e guardas, mas ninguém os interrompeu. Somente ao se aproximarem do portão principal foram parados, pois havia uma carruagem enorme, repleta de adornos e decorações de ouro, com um brasão de leão, parada no caminho.
Chegando perto da carruagem, a cortina se abriu e o Duque Eklere apareceu na janela.
"Não sabia que o senhor Reux estava de partida, se não teria vindo pessoalmente para escoltá-lo para fora."
Fábio fez uma reverência.
"Perdoe minha indelicadeza, duque, mas surgiu uma emergência e devo partir para a Cidade de Pahvia."
"Nenhum problema. Espero que a sua estadia na minha mansão tenha sido do seu agrado, pois meus filhos agora adoram sair por aí se gabando de que tiveram aulas com o famoso Fábio Reux."
Durante toda a troca de amabilidades entre seu professor e o Duque Eklere, em nenhum momento o Duque se dignou a reconhecer a existência de Miguel. Talvez alguns dias atrás isso o teria incomodado, seja devido às emoções descontroladas de um jovem de 13 anos ou às memórias de um Senhor do Tempo sendo humilhado por um mortal insignificante. Contudo, atualmente, Miguel estava tranquilo e imperturbável.
Na verdade, Miguel estava ansioso com a perspectiva de sair pelo mundo e explorá-lo, diferente da maneira reclusa que viveu em sua vida passada, onde sua única atividade era treinar e comparecer às festividades da alta sociedade, sendo exibido como um troféu.
Pensando bem, se Miguel fosse mais sábio durante a sua primeira vida, teria notado que quando o Duque o apresentou às outras famílias, nunca o chamava pelo nome, mas dizia "Venham conhecer MEU FILHO!", e depois se gabava de suas conquistas como se ele próprio tivesse destruído exércitos inteiros.
Seu poder, talento e aparência só eram elogiados na frente dos outros e nunca em particular. Miguel nunca ouviu um "estou orgulhoso", "bom trabalho" ou "parabéns". No fim, acabou sendo traído de diversas formas.
Ouvindo um suspiro, Miguel olhou para Fábio, que balançava a cabeça. Parecia que Fábio e o Duque haviam terminado de se despedir. Por algum motivo, Fábio olhava para Miguel com pena.
Em diversos momentos, Fábio tentou sinalizar a presença do filho do Duque que estava prestes a partir, mas se o Duque não notou ou fez questão de não notar, pai e filho se separaram sem dizer nenhuma palavra de despedida.
"Vamos," Fábio sinalizou com as mãos e pegou a bagagem com suas roupas, enquanto Miguel carregava o resto.
Nada do que aconteceu no passado, ou em um possível futuro, importava mais. Finalmente chegou o momento em que as histórias realmente divergiam. Depois de sair desta mansão, Miguel poderia cortar todos os vínculos com as pessoas desta família.
Sentindo-se livre, com um sorriso no rosto e passos largos, ele seguiu atrás de Fábio. Provavelmente poderia cantar se soubesse alguma música. Pela primeira vez em duas vidas, caminhou pelas ruas de sua cidade natal. Miguel ficou um pouco desapontado; seja pela infraestrutura, arquitetura ou planejamento urbano, tudo na cidade era decepcionante.
Embora tenha saído da mansão anteriormente e percorrido o mundo, conhecendo outras cidades, normalmente só saía quando tinha um objetivo ou missão para cumprir. Nunca experimentou as diferentes atrações ou a comida local.
Miguel estava empolgado, mas talvez sua alta expectativa tenha arruinado a experiência. Não havia nada único, apenas casas desiguais, algumas até tortas. As ruas estavam sujas e as pessoas caminhavam apaticamente para seus afazeres.
Mas o que poderia se esperar de uma cidade regida por um tirano viciado em jogos de azar? Miguel tinha certeza de que, se fosse para os bairros de entretenimento ou ao distrito vermelho, as coisas seriam totalmente diferentes.
Talvez em outra linha do tempo Miguel tivesse ficado nesta casa, percorrido os mesmos passos de sua vida passada. Mas nesta linha do tempo, Miguel estava feliz e esperançoso sobre o que o futuro aguardava além destes muros.
Talvez, se sua mãe ainda estivesse viva, as coisas teriam seguido um rumo diferente.