Olhando pela janela da carruagem, Miguel avistou as muralhas da Cidade de Pahvia. A diferença era gritante quando comparada à Cidade Rugido do Leão Soberano, de onde partiu. De longe, a altura e robustez dos muros já eram impressionantes, mas ao se aproximar e ver a quantidade de guardas armados nos postos de sentinela, o choque de Miguel aumentou ainda mais.
A Cidade de Pahvia deveria ser uma das cidades satélites próximas à capital do território da família Eklere, mas parecia ser a capital em comparação à Cidade Rugido do Leão Soberano. Ao sair de lá, não foi necessária nenhuma verificação; os mercadores simplesmente formaram seu comboio e saíram pelos portões. Aqui, cada carruagem estava sendo revistada, assim como a identidade de cada passageiro.
Dentro da cidade, era possível ver a harmonia de um bom planejamento. As tubulações do sistema sanitário não estavam à vista, as casas eram construídas de forma ordenada, e parecia haver uma lógica por trás da separação dos bairros e distritos. A entrada de mais de cem carruagens não atrapalhou o fluxo de pedestres e outros meios de transporte.
Miguel sentiu pena de não ter visitado essa cidade antes, especialmente porque sabia que todo o desenvolvimento e prosperidade que via eram frutos do trabalho de seus avós. A única vez que passou por aqui foi para assistir ao funeral de seu avô, e na ocasião, não ficou muito tempo nem deu uma boa olhada no legado que ele construiu antes de partir em uma jornada de vingança.
Desta vez, Miguel fez questão de observar cada pequeno detalhe: desde a organização dos guardas, a infraestrutura, até as condições de vida dos plebeus.
Ao chegarem ao centro comercial, tiveram que devolver a carruagem. Enquanto Fábio conversava com alguns dos mercadores, Miguel descarregava suas bagagens e preparava tudo para o transporte até a mansão no centro da cidade. Após terminar, Miguel esperou por Fábio e aproveitou o momento para abrir o caderno com seus desenhos recentes.
Analisando as imagens em cada página - cada mercador, passageiro ou guarda que desenhou, as flores e árvores que achou interessantes, assim como as anotações nas margens - Miguel sentiu que estava a ponto de ter uma epifania que o ajudaria a entrar no próximo reino de seu Cultivo Espiritual, as suas sobrancelhas estavam franzidas e os seus olhos desfocados. Mas, quanto mais se esforçava, mais tênue se tornava a sensação.
Desistindo temporariamente, Miguel começou a desenhar novamente. Pela primeira vez, não desenhou um ser vivo, mas a imagem da cidade e dos prédios que viu ao longo do caminho.
Quando Fábio terminou de se despedir dos mercadores, Miguel fechou o caderno e se preparou para carregar as bagagens até o destino. No meio do caminho, não resistiu e acabou comprando um espeto de carne com vegetais. Notou que o valor era mais baixo do que na Cidade Rugido do Leão Soberano, apenas oito moedas de bronze, porém a qualidade era claramente superior.
Miguel percebeu que não havia muitos alimentos à base de grãos à venda e finalmente se deu conta de que a localização da Cidade de Pahvia era muito precária. Não havia plantações ao longo do caminho até a cidade, pois o terreno não era favorável para o plantio, não havia rios próximos ou fontes de água subterrâneas, e no meio do terreno plano não havia nenhuma forma de proteção natural contra invasores.
Apesar de todas as desvantagens, a cidade vibrava mais do que a capital do seu próprio território. Fábio e Miguel caminhavam lado a lado, desfrutando das iguarias locais e conversando sobre tópicos aleatórios. Em alguns momentos, Miguel tentava convencer Fábio a praticar a Técnica de Sublimação Corporal. Infelizmente, Fábio dizia que já estava velho demais e que fazer exercícios só causaria dor nas suas costas.
Por dias a fio, os dois ficaram juntos, dividindo uma carruagem. Nos dias em que não havia pausa, Miguel treinava, apesar do ambiente horrível da carruagem que balançava devido aos buracos na estrada. No começo, Fábio ficou curioso com os movimentos bizarros de seu aluno, mas com o tempo se acostumou e deixou de dar importância.
Fábio observou de lado seu pupilo, cujos olhos curiosos percorriam a cidade movimentada, e não pôde deixar de sorrir. Seus pensamentos vagaram até a mãe de Miguel, e ele suspirou com um pouco de melancolia.
Chegando ao centro da cidade, encontraram uma casa que se destacava das demais. Não chegava a ser uma mansão, mas era maior que uma casa normal, limitada por questões de legislação e não por humildade. Nenhum nobre permitiria que plebeus não só administraram uma cidade como construíssem uma casa maior que a deles. É possível perceber isso, pois esta casa está no limite do que é permitido.
Após ter sua identidade verificada pelos guardas na porta do casarão, Fábio pediu para Miguel esperar no hall de entrada enquanto seguia um criado até o escritório de seu avô para resolver alguns assuntos. Ele disse que Miguel seria chamado em breve.
O interior da casa só poderia ser descrito com uma palavra: opulência. Janelas de vidro puro e completamente transparente, mármore negro importado de fora do continente, ouro, prata e diversos cristais e joias decoravam cada canto e curva do hall de entrada. O carpete vermelho vinho só poderia ser feito da pele de uma Besta de nível elevado que somente um nobre poderia caçar.
De tudo que havia dentro da casa, o que realmente chamou a atenção de Miguel foi um retrato de sua mãe quando ainda era uma criança. Nora nunca cultivou, portanto sua aparência não se comparava às mulheres das classes altas. Quando comparada com a nobreza, poderia ser considerada mediana, mas para Miguel, ela era a mulher mais bela do mundo.
Miguel não pôde deixar de encarar aquele rosto oval, parcialmente coberto por uma franja de cabelos negros que balançava na frente dos seus olhos prateados, semelhantes aos seus, e o sorriso radiante que enfeitava seus lábios finos e deslumbrava o mundo ao seu redor. Ele fez uma expressão engraçada, sentindo-se como se a tivesse ao seu lado há pouco tempo, embora milhões de anos houvessem passado desde a última vez que interagiu com ela.
Antes de pensar muito no assunto, Miguel já havia pegado seu caderno e começou a copiar a pintura. Notou que havia uma senhora em um cômodo adjacente que o estava observando, mas como ela não fez questão de aparecer, Miguel decidiu deixar o assunto de lado.
Com o tempo, o foco de Miguel aumentou. À medida que sua mão e olhos se coordenam para seguir as linhas do rosto da sua mãe e copiá-la para o caderno, sua expressão ficou cada vez mais relaxada e a leve ansiedade por não ter realizado o avanço no Cultivo Espiritual sumiu.
Perdido na sua própria arte, Miguel terminou o desenho e olhou para o lado, onde Fábio o aguardava com um sorriso no rosto.
"Foi um bom desenho, Miguel. Guarde-o com cuidado... agora vem, vamos ver o seu avô. Ele tem uma surpresa para você."
Miguel acenou com a cabeça e seguiu atrás de Fábio até o escritório do seu avô. Antes de sair, lembrou de curvar-se uma vez em direção ao retrato de sua mãe.
Chegando perto da porta, ouviu barulhos de discussão dentro da sala, mas o isolamento era bom o bastante para reter a maior parte do som. O único motivo para saber que havia pessoas discutindo dentro era sua audição aprimorada pelo Cultivo Espiritual.
Fábio colocou o braço na frente de Miguel e, após esperar um tempo, uma pessoa saiu de dentro do escritório. Miguel exclamou com surpresa:
"Davi!?"
Davi passou os olhos por Miguel e Fábio, enrugou a cara com desprezo e saiu sem dizer uma palavra.
"Pode entrar!" Uma voz rouca e cansada chamou de dentro da sala.
Fábio incentivou Miguel a entrar sozinho.
"Eu te espero aqui fora."
Miguel respirou fundo e entrou no escritório do seu avô. De relance, notou que tudo era bem parecido com o escritório do Duque Eklere, a única diferença sendo o grande vitral com o brasão de leão, que aqui não passava de um vidro colorido.
Olhando para trás da mesa, à frente da janela que iluminava o interior, Miguel avistou o seu avô, o mesmo homem velho com rugas nos cantos dos olhos e aparência calma das suas memórias. No entanto, com seu Cultivo Espiritual elevado e maior atenção aos detalhes, Miguel percebeu que o seu avô estava usando uma peruca, não para esconder calvície ou perda de cabelo devido à idade, mas para ocultar os fios de cabelo azul que agora possuía.
Miguel sabia o motivo. Em sua vida passada, seus cabelos dourados também mudaram de cor depois que começou a cultivar com a técnica de linhagem dada por seu avô, mas ele nunca notou que seu avô também praticava a técnica, o que complicou as coisas.
Miguel andou até perto da mesa e se curvou levemente.
"Olá, vovô."
"Hahahaha, Miguel, por que você está se curvando aí? Venha até aqui e me deixe dar uma olhada em você."
Miguel se aproximou do seu avô, que continuou a falar.
"Você cresceu bastante desde a última vez que te vi. Logo vai ser maior que eu e já será um homem de verdade."
Realmente, desde que Miguel começou a se alimentar, dormir e se exercitar corretamente, ele já havia crescido pelo menos três centímetros. Como aquele que está crescendo, Miguel não notou a diferença, mas para um observador foi fácil de perceber.
Depois de verificar a saúde do seu neto, Maximus se moveu atrás da sua escrivaninha, abriu uma gaveta e tirou um pacote de dentro.
"Tenho um presente para você. Aqui, pode pegar."
Miguel olhou para o pacote bem embrulhado dentro de um lenço e já sabia o que havia ali dentro. Havia ansiedade em seu rosto, mas diferente do que seu avô poderia imaginar, não era pelo presente em si, mas pelas consequências de aceitá-lo e os problemas que isso poderia trazer.
O maior motivo para Miguel correr desenfreadamente em busca de vingança por seu avô não foi apenas a raiva pela perda, mas a culpa. Ele acreditava que seu avô foi morto por ter lhe dado a técnica que permitiu que subisse ao topo do mundo.
Contudo, agora que sabia que seu avô também praticou com sucesso a mesma técnica, Miguel entendia que as coisas eram muito piores do que ele imaginava.