Dentro do seu quarto, Miguel não estava com pressa. Sentou-se na cama com as pernas cruzadas e começou a meditar. Com os olhos fechados e foco total no seu Espaço Mental, percebeu que, mesmo após o desabafo e a conversa com Fábio, seu Mundo Espiritual permanecia estagnado.
Na sua primeira vida, seu Mundo Espiritual era branco e nebuloso; agora, estava repleto de vida e cor. Miguel já havia notado essa mudança antes, mas o que poderia fazer a respeito? Abrir o próprio crânio para investigar?
Seu Mundo Espiritual ainda estava em formação, e Miguel não conhecia ninguém que tivesse passado por algo semelhante, a capacidade de ver a gestação do seu próprio Mundo Espiritual. Talvez, no final, tudo se encaixe e volte ao normal.
Da última vez que conseguiu acessar seu Mundo Espiritual, já estava há muito tempo no Reino Superior e havia avançado para o reino do Espírito Desperto. A discrepância entre sua mentalidade fria, lógica e calculista da sua primeira vida e seu estado atual, frágil e emocional, era evidente.
Miguel concluiu que suas emoções, e como as tem lidado, eram as maiores culpadas por seu estado atual. Desde que acordou, ele tenta desvendar o mistério ao seu redor. Mas, ao escrever e pensar logicamente sobre sua existência superior, quase entrou em colapso. Agora, sofre de ansiedade pelo futuro, medo do desconhecido, raiva pelos sofrimentos vividos e esperança, que tenta sufocar.
Sussurrando em direção às cores que compõem o oceano liso de seu Mundo Espiritual, Miguel disse: "São vocês, não é mesmo? Minhas emoções..."
Como se respondessem, as sete cores do arco-íris brilharam mais intensamente, destacando-se das outras.
'Pelo menos acertei uma parte', pensou Miguel. Agora que sabia o principal culpado por seu tormento, restava saber como lidar com o problema. Deveria levar a sério o conselho de Fábio e não tentar controlar suas emoções? Ou foi esse o motivo pelo qual não alcançou a Transcendência através do Cultivo Espiritual e ficou com uma fraqueza que levou à sua derrota?
Pela primeira vez em milhões de anos, Miguel fez uma pausa para reorganizar seus pensamentos, e nada tinha a ver com o cultivo do seu Espírito.
Ele ignorou a sensação agonizante de ser observado. Não era hora de se preocupar com fatores externos. Para começar, Miguel teve que considerar algo muito importante: se não tomasse medidas agora, isso poderia se tornar um grande problema.
Miguel Eklere não é mais o Senhor do Tempo.
O título de Senhor do Tempo foi dado a Miguel quando ele dominou a Lei do Tempo através do cultivo da sua Essência. Normalmente, ele seria coroado como Imortal do Tempo ou Celestial do Tempo, mas, por ser o primeiro do seu tipo, recebeu a alcunha de Senhor.
No momento atual, além das memórias, Miguel não possuía nada do que constituiria um Senhor do Tempo. Sem o domínio da Lei do Tempo ou o poder que o título representava, que qualificação ele tinha para pensar em agir de forma complacente e sentir que era superior aos outros? Algumas poucas memórias? Todo o conhecimento que possuía não era exclusivo ou secreto para os habitantes do Reino Superior.
Pode haver uma ou duas técnicas que foram criadas por Miguel e das quais ninguém mais tem conhecimento, mas fora isso, suas memórias sobre o futuro só são úteis em casos muito específicos. A simples decisão de deixar a mansão torna a maior parte do conhecimento que possui sobre o Mundo Inferior inútil.
Com isso em mente, a segunda coisa a considerar eram justamente suas memórias e como elas vinham afetando suas ações. Em algum momento, Miguel esqueceu que as memórias são apenas um pequeno pedaço do conjunto que forma quem ele é. Do contrário, seu Mundo Espiritual seria exatamente igual ao passado, mas agora Miguel estava mais próximo do garoto de uma semana atrás do que do Senhor do Tempo que veio a ser.
Parecia que pouco tempo havia passado, porém as considerações de Miguel haviam tomado algumas horas. Ele ainda não abordou a parte mais importante: suas emoções.
Ao entrar em estado meditativo para acessar seu Espaço Mental, o primeiro obstáculo é a torrente de pensamentos desenfreados surgindo a todo instante. Se você focar em cada um deles e tentar controlá-los, resultará no surgimento de mais pensamentos, o que apenas agrava a situação. Por isso, o recomendado é focar na sua respiração e lutar para não mergulhar no primeiro pensamento desagradável que surgir.
Após o conselho de Fábio, Miguel notou que o mesmo conceito se aplica às suas emoções. Ele passou uma vida inteira suprimindo e "controlando" suas emoções, mas se não fosse por elas, então por que cultivou a Lei do Tempo? Por que se arriscou com uma Lei Tabu? No fim, essa foi uma tentativa desesperada de corrigir seus arrependimentos, de consertar seu passado, um escape para as emoções que ele enterrou tão profundamente que se tornaram uma obsessão distorcida.
Colocando em prática seus pensamentos, Miguel deixou seus sentimentos e emoções vagarem livres. Primeiro veio o medo: de morrer, de estar sendo manipulado, de seus inimigos, de sua derrota. Isso alimentou a ansiedade, causando um arrepio na sua espinha. O que o futuro reserva? Quais as consequências de suas escolhas? As pessoas que encontrou até agora são reais ou parte de uma ilusão?
Então veio a raiva. Mesmo de olhos fechados, Miguel cerrou os dentes e os punhos, sentindo ódio por estar em uma posição tão impotente, pelas pessoas que o cercam nessa mansão, por seu pai e até por si próprio. A insegurança de saber que voltou ao ponto mais fraco de sua vida e que não possui mais nenhum controle sobre seu destino. O nojo de si mesmo por tudo que sentiu até o momento.
Quando tudo parecia trevas, Miguel lembrou do que o fez seguir em frente. A felicidade que encontrou ao realizar pequenas tarefas no seu cotidiano, como a pintura, e principalmente o amor de sua mãe, Nora, que tanto faz falta na sua vida e é o verdadeiro motivo para querer retornar ao passado.
'Se ao menos eu pudesse me encontrar com você mais uma vez, sentir aquele calor novamente...'
Um sorriso tímido surgiu no rosto de Miguel ao mesmo tempo que uma lágrima escorria do seu olho. Finalmente, depois de muito tempo, ele sentiu paz.
Dentro do seu Mundo Espiritual, as sete cores que se sobressaiam formaram um círculo ao redor da porta no centro do seu Espaço Mental, tornando-se incrivelmente mais vibrantes. Miguel, mesmo sem conhecimento prévio, conseguiu relacionar facilmente cada cor com uma emoção: Amor, Vermelho; Raiva, Laranja; Medo, Amarelo; Nojo, Verde; Ansiedade, Azul; Insegurança, Índigo e Felicidade, Violeta.
Outra coisa notável era a porta, que ao invés de ficar mais sólida, tornou-se translúcida e começou a fragmentar-se, sendo absorvida pelo seu Mundo Espiritual. Cada vez que um pequeno fragmento afunda no oceano, a circunferência do Espaço Mental de Miguel aumentava um pouco. Quando foi formado, o Espaço Mental de Miguel tinha um raio de 1 km, e cada fragmento da porta absorvido aumentava aproximadamente de 10 a 20 metros.
Miguel não tinha ideia do que estava acontecendo, mas não ficou perturbado. Agora que tinha pleno conhecimento das sete emoções e como elas o afetam, seu efeito era muito mais brando. Apesar de saber que ainda era um Mortal e, portanto, escravo de suas emoções, Miguel percebia que suas reações estavam mais controladas.
Mesmo com um avanço no aspecto Mental, ele sabia que as emoções também são resultado de processos físicos, e a única maneira de remover o aspecto físico da equação e não ser afetado por ele seria controlar a produção de hormônios e compostos químicos dentro do seu próprio corpo. Mas esse não era seu objetivo no momento.
Miguel decidiu como viveria seus últimos dias na mansão. Não valia mais a pena reclamar do gosto da comida e pular refeições; nutriente é nutriente, e ele não tinha o luxo de escolher.
Levar a sério a Técnica da Sublimação Corporal apenas após ver benefícios tangíveis foi a maior vergonha entre todas as péssimas escolhas de Miguel. A desculpa de que o treinamento físico poderia gerar lesões na sua idade era apenas seu constrangimento falando mais alto.
Que tipo de lesão Miguel poderia causar ao seu físico que seria tão grande ao ponto de que avançar nos Reinos de Cultivo Corporal a tornaria permanente? A verdade é que, como o Cultivo Espiritual é muito inconstante, as pessoas escolhem entre cultivar o Físico e a Essência baseado nos seus talentos.
Miguel nunca teve talento para o Cultivo Corporal, mas no Cultivo da Essência, não existia ser vivo dentro deste Mundo Inferior com talento no mínimo próximo ao dele.
O tempo que restava era mais do que suficiente para terminar a leitura de todos os livros na sua escrivaninha e, talvez mais importante, fazer algumas alterações na pintura que começou hoje.
Saindo do quarto, Miguel foi para o refeitório e fez sua refeição junto aos servos, como de costume. Ao voltar para o quarto, releu os livros que já havia finalizado, pois sabia que antes de hoje sua mente não estava no seu máximo, e a diferença entre antes e depois era gritante. O conhecimento foi processado e assimilado de forma muito mais rápida, e houve detalhes que antes passavam despercebidos, mas que no futuro teriam tornado sua progressão impossível.
Se havia algo diferente sobre a situação, era que Miguel não possuía mais um rosto sério e formal. Um leve sorriso agora sempre acompanhava sua expressão, junto com uma tranquilidade reconfortante.
No grande esquema do Cosmos, o avanço de Miguel poderia ser considerado insignificante. Mesmo com todo o progresso que fez até agora, ele ainda não conseguiu alcançar o Reino do Espírito Desperto. E mesmo que tivesse, as pessoas mais poderosas nem ao menos consideram este estágio como o verdadeiro cultivo.
Contudo, para Miguel, o avanço atual foi o mais significativo que já teve. A transformação em sua mentalidade foi um ponto de virada que mudou parte de seu Espírito, refletindo-se em suas decisões. Quem sabe essa foi a chave para Miguel aceitar a esperança que existe dentro de seu coração e começar a acreditar que a sensação de ser observado é apenas uma paranoia causada por seus traumas. Talvez, ele realmente tenha recebido uma segunda chance.