Pela primeira vez, as peças estão se alinhando, e Miguel está feliz por saber que vai poder sair dessa mansão em menos de uma semana.
Sua atenção é chamada quando Davi, no meio do corredor, vira e fala em voz alta: "Manter a mente calma em situações estressantes é uma grande qualidade, mas você não deve suprimir tanto assim as suas emoções. Pelo menos tente não fechar os punhos assim, ou vai acabar sem as mãos..."
Depois de dar o conselho, Davi continua a caminhar.
Miguel inicialmente não entende sobre o que Davi está falando, mas ao olhar para suas mãos, encontra seus punhos cerrados com tanta força que suas unhas haviam perfurado a pele, deixando gotas de sangue pingando no chão.
'Por quê?'
Miguel está confuso.
Finalmente, seus planos estão no caminho certo. Desde que começou as aulas de artes, só recebeu boas notícias. Primeiro, soube que seu Cultivo Espiritual está avançando de forma constante. Depois, descobriu que a Técnica de Sublimação Corporal é muito mais valiosa do que imaginava e que seu progresso seria inimaginável. E a melhor parte: vai sair desta mansão amaldiçoada e deixar o Duque para enfrentar sozinho as consequências de suas ações.
Então por que Miguel se sente tão frustrado? Qual é essa emoção amarga que ele não sabe definir e está corroendo o seu coração?
Nos últimos dias, Miguel refletiu sobre sua explosão emocional ao observar a silhueta de Evelynn no refeitório. Pensou que só havia se descontrolado devido ao recente colapso mental ao perceber que provavelmente falhou na sua batalha mais decisiva. Agora, ele está preso por seus inimigos, além de ter perdido todo o poder que conquistou arduamente.
Desde então, Miguel avançou no Cultivo Espiritual, meditou e pensou ter recuperado a mente calma e analítica que lhe permitiu superar inúmeros desafios. Mas parece que nada mudou em sua mente, e as ações de um simples Mortal abalam seus milhões de anos de cultivo.
De volta ao seu quarto, Miguel tenta terminar de ler os livros que recebeu emprestados, mas sua mente inquieta não consegue focar. Às vezes, precisa ler o mesmo parágrafo duas vezes para ter certeza de que memorizou o texto, e mesmo assim, só memoriza sem realmente compreender ou aprender.
A meditação também se prova um fracasso. Ele não consegue se concentrar apenas na respiração, e pela primeira vez desde que despertou seu Espaço Mental e seu Mundo Espiritual, tudo ficou estagnado.
À noite, Miguel ouve a música vindo da parte interna da mansão. Ele sabe que um baile está sendo realizado e pode ouvir as explosões dos fogos de artifício. Até a agitação da cidade perfurar as paredes do seu quarto, trazendo o som de risos.
Contudo, Miguel está se sentindo amargo, e dormir se prova ser uma tarefa árdua.
Foi a pior noite em muito tempo, ao desconsiderar aquelas que passou possuído tentando usar a mente de um Mortal para compreender conceitos divinos.
Quando Miguel levantou da sua cama na manhã seguinte e tentou praticar a Técnica de Sublimação Corporal cometeu diversos erros e depois de 2 rodadas utilizando cada postura, desistiu e foi tomar o café da manhã, mas no meio do caminho desistiu, pois voltou a ter medo de se encontrar com alguém do seu passado e piorar a sua situação atual. Então foi para a sala de aula onde sentou no chão e ficou encarando as suas telas.
Fábio entrou na sala e se deparou com Miguel sentado no chão, em um estado catatônico. Apesar de ter feito barulho ao posicionar o material de pintura no cavalete e ficar em frente a Miguel, este permanecia imóvel, com um olhar perdido.
"Miguel?" chamou Fábio pela primeira vez, mas não houve reação.
"Miguel!... MIGUEL!" Somente na terceira tentativa, elevando o volume da sua voz, Miguel saiu do seu estado de atordoamento e olhou para Fábio.
"Bom dia, professor..." Miguel respondeu com uma voz fraca.
Fábio já havia visto Miguel em um estado debilitado durante a primeira aula, mas nada se comparava à sua situação atual. Além das olheiras e da mente distraída, desta vez Fábio também notou manchas de sangue nas calças de Miguel.
Fábio não estava acostumado a interferir na vida pessoal dos seus alunos, pois envolver-se nos conflitos das famílias nobres era o melhor jeito de comprar um passe só de ida para o pós-vida.
Contudo, desta vez Fábio estava disposto a abrir uma exceção, mas somente se Miguel pedisse ajuda. Assim, ele poderia ajudar seu amigo Max ao tomar conta do seu neto. Além disso, Fábio estava cansado de ver gênios serem destruídos devido ao seu nascimento.
Por alguns momentos, um silêncio se instaurou na sala. Ninguém falou nada.
Miguel, enfrentando o olhar de Fábio, se sentiu desconfortável e abaixou a cabeça. Antes que pudesse entender o porquê, começou a falar:
"O Duque Eklere herdou a posição de patriarca do clã quando o antigo Duque entrou em reclusão e nunca mais saiu. Ele é o mais forte dos seus irmãos, mas foi um aluno medíocre na capital. Se dedicou apenas aos jogos de azar. Não foi surpresa que, depois de assumir o controle do território, quase levou a família à falência. Se não fosse por casar com minha mãe e receber apoio do meu avô, o povo já teria morrido de fome. Mesmo agora, a situação do território está por um fio.
Eu sei que o casamento dele com uma filha de mercador o tornou motivo de chacota nos altos círculos da sociedade nobre. Casar com alguém sem linhagem nobre... faz sentido que o fruto dessa união seja uma lembrança constante da sua incompetência. E desde que minha mãe morreu, não tenho ninguém nem nada que me prenda nesta mansão. Sair daqui sempre fez parte dos meus planos... Então por que agora..."
Miguel fazia pausas enquanto falava, sua voz embargada, quase deixando lágrimas escorrerem. O Senhor do Tempo não conseguia acreditar no tamanho do seu descontrole emocional.
Fábio suspirou.
"Você sabia que sou um bom amigo do seu avô Max. Eu já sabia um pouco da sua situação quando aceitei esse trabalho. Só aceitei porque não é a primeira vez que me deparo com algo parecido. Sei que nenhuma história é igual, mas depois de tantos anos interagindo com famílias nobres, você começa a ver alguns padrões.
Quando te conheci, percebi que você sofre dos mesmos sintomas de alguns dos meus alunos antigos. Uma criança muito educada e recatada que age de forma mais madura do que deveria para a sua idade. E vocês sempre têm a mesma dificuldade...
Miguel, tudo que você me descreveu é extremamente lógico e racional, mas esse não é o tipo de problema que pode ser resolvido dessa forma. Eu entendo que racionalizar a vida, vendo tudo como benefícios ou perdas, é muito mais fácil. Infelizmente, não é assim que funciona com as emoções. Você não pode controlá-las...
Não faz sentido sentir dor por alguém que não te ama, mas é assim que a vida é..."
Fábio teve que parar. Miguel desabou em lágrimas.
Neste momento, Miguel não era mais o Senhor do Tempo, nem o homem que superou tribulações e massacrou mundos. Ele voltou a ser o que deveria ser se não fosse pela inundação de memórias de um futuro distante: uma criança que perdeu a mãe e tem medo de ficar sozinho.
No começo, foram apenas alguns soluços, mas em pouco tempo, Miguel estava desabando em lágrimas. No fim, ele já não sabia mais por que estava chorando. Era devido a esta vida ou às memórias de sua vida passada?
'Max, você me deve essa...' pensou Fábio.
Quando Miguel finalmente parou de chorar, sentiu que um peso havia saído do seu peito. Ele não tinha ideia do que dizer para agradecer a Fábio; nunca havia recebido esse tipo de suporte antes. Acabou sussurrando um "Obrigado!" meio sem jeito.
Fábio não disse mais nada. Pegou as tintas e outros materiais, pediu para Miguel pegar a tela e o cavalete, e falou para segui-lo. Eles saíram da sala de aula e começaram a caminhar pelos corredores da mansão.
Eles chegaram a um jardim, e Miguel ficou surpreso. Nunca estivera ali antes. Havia arbustos bem aparados, trilhas cercadas por flores e algumas árvores frutíferas.
Fábio pediu para Miguel posicionar o cavalete em um canto sombreado e disse:
"É bom sair um pouco e sentir o sol e o vento batendo na pele... Só temos mais alguns dias antes de começar a viajar. Sim, eu já estou sabendo da 'transferência'. Não faz sentido começar a ensinar coisas novas agora, então, para melhor aproveitar o tempo, sem mais lições. Apenas pinte alguma coisa, qualquer coisa. Mas você ainda tem que ler e devolver os livros."
Miguel não sabia o que fazer a princípio, mas logo teve uma ideia e sorriu. Fábio ficou surpreso; era a primeira vez que via seu aluno sorrir e não pôde deixar de ficar feliz.
'É assim que uma criança deve se comportar, mais sorrisos e menos preocupações', pensou Fábio.
Desta vez, Miguel não pegou os pincéis, mas um lápis de carvão que ainda não havia usado, e começou a fazer linhas suaves na tela.
"Vejo que já leu alguns dos livros."
"Sim, professor. Muito obrigado, foi realmente esclarecedor."
"Vamos ver o quanto você aprendeu em tão pouco tempo."
Aos poucos, as linhas foram se unindo, e Fábio começou a entender o que Miguel estava planejando pintar.
'Bom, eu disse que o melhor jeito de aprender a pintar era copiar, mas esperava algo mais além de pintar o jardim.'
No entanto, Fábio não comentou nada e deixou seu aluno fazer o que queria.
O resto da aula transcorreu sem problemas. Na verdade, ela durou horas a mais do que o habitual. Quando Miguel perguntou sobre isso, Fábio explicou que dar aulas para alguns de seus meio-irmãos fazia parte do trato com o Duque para poder ensinar Miguel. Mas, como ele estava prestes a ser transferido, não fazia sentido perder tempo com adolescentes que não estavam tão interessados desde o início.
Até o fim da aula, Miguel ainda não havia tocado nas tintas e pincéis, e apenas um esboço do jardim onde se encontrava havia sido desenhado.