Havia se passado um único dia da minha luta contra o mercenário, marcamos de nos encontrar pra discutirmos melhor as coisas, eu já sabia pelo menos o nome dele: Hebron Adams, e tem 19 anos.
Marcamos em um café da cidade, eu já havia chegado a uns cinco minutos quando ele finalmente apareceu.
—Foi mal, tive que me certificar de que não estava sendo seguido.—Sentou-se à minha frente, parecia exausto, ele nem mesmo tomou banho ou trocou de roupa, a julgar pelo cheiro e as roupas serem as mesmas de ontem.
—Tudo bem, dormiu mal?—Ele esfregou o rosto dando um suspiro antes de responder.
—Eu não dormi, dormir te deixa vulnerável, ainda mais quando tem gente querendo te matar.
—Você poderia ter evitado isso se só tivesse me deixado morrer.
Ele riu da minha resposta:
—Não é tão simples garoto, é uma prática desonrosa mas bem comum entre usuários, se você não confia em um mercenário é só mandar um dos seus homens segui-lo, se o cara realmente não for capaz de concluir o serviço o seu lacaio tem permissão pra matar ele e cumprir a missão no seu lugar.
—Então aquele usuário de ontem...
—Isso aí, o alvo dele não era você, era eu.
Então no final, ele achou uma ideia melhor se juntar a mim do que me deixar pra morrer, acho que ele é mais esperto do que parece. Uma garçonete vem a nossa mesa e rapidamente anota dois cafés, não podemos discutir com ela aqui, então é melhor dispensá-la logo.
—Se você foi contratado deve saber quem o usuário do Flying Dutchman é, certo?—Tenho certeza que a resposta não vai ser o que eu quero ouvir, nunca é, mas mesmo assim perguntar não machuca.
—Ninguém sabe quem é o cara, nem mesmo eu, foi a Isabella que me contratou a mando dele, quando se é um usuário, revelar sua identidade é bem imprudente, ainda mais se está sozinho.—A garçonete volta trazendo duas xícaras de café preto, ele pega a dele e bebe um gole, antes de continuar.—Por isso eu decidi te ajudar, soube através da Isabella que você tá formando um grupo com a Karol Nancy, acho que mais um membro beneficiária nós dois, já que um usuário sozinho é um alvo fácil.
—Agradeço a ajuda, mas nosso objetivo é caçar o usuário do Flying Dutchman, tem certeza que quer nos ajudar em uma missão tão perigosa?
Ele me lança um sorriso de lado.
—Caçar usuários é a minha especialidade garoto.—Ele diz antes de terminar o café e se levantar, termino o meu e deixo uma nota de cinquenta em cima da mesa, agora vem a parte divertida.
—Me fala, qual é o tipo do seu Fable?-Pergunto enquanto caminho ao seu lado pela calçada.
—Big Bad é do tipo duelista, esse tipo luta em combate corpo-a-corpo, seja com os punhos ou com armas brancas, eles tem um alcance limitado e tem ligação direta com o usuário, e como o Big Bad é um animal, seus sentidos são aguçados.
—O que facilita na busca por um usuário.
—Isso aí, tá vendo aquele cara?—Disse apontando com a cabeça para um homem sentado em um banco do outro lado da rua.—Ele é um dos usuários do Flying Dutchman, eu sei disso porque ele e a Isabella tem um cheiro muito parecido.
Com isso, invoco o Hatter e atiro na cabeça do homem que morre na hora, Hebron solta uma gargalhada.
—Boa, não perdeu tempo, gostei de você garoto.—Acho que ele vai ser um ótimo aliado, mas ainda preciso confirmar uma coisa.
—Você conhece todos os tipos de Fable?
—Sim, além de caçadores, atiradores e duelistas existem os arcanum, esses Fables são capazes de dominar a magia Fable.
—Os únicos? Mas o Hatter também sabe usar magia.
—Isso não é nada moleque, seu Fable mal arranhou a superfície, esses Fables são extremamente poderosos, mas o único exemplo que eu posso te dar é o White Rabbit, já que é raro encontrar um Fable arcanum.
Isso confirma minhas suspeitas sobre esse Fable, então ele realmente foi o responsável pela história macabra que a Karol leu, e ele nem ao menos é o líder, o Flying Dutchman deve ser muito mais forte do que eu imaginava.
—O grupo do Flying Dutchman é muito grande?
—Grupo? Aquilo tá mais pra uma seita, eles adoram o Flying Dutchman como um messias, eu só não sei como ele consegue tantos seguidores.—Não é difícil descobrir como.
—Ele usa a capacidade de atacar pessoas comuns pra causar traumas em pessoas e transformá-las em usuários.—Ele me olha com as sobrancelhas franzidas, acho que vou ter que explicar melhor.—Pensa bem, uma criança é muito mais fácil de ser manipulada, se alguém chega e dá poderes a elas, mesmo que essa criança perca os pais ou pessoas importantes, algumas acabam se sentindo gratas e se juntam a ele.
—Mas isso não é muito prático, isso acaba criando muito mais inimigos do aliados.
—Sim, mas isso não é desvantajoso, na verdade acaba ajudando ainda mais, uma seita ou culto muitas vezes usa o ódio como motivação, são eles contra o mundo, e tendo tantos inimigos, o Flying Dutchman usa isso como motivação aos seus seguidores, alimentando o ódio contra aqueles que se opõem ao seu líder.
—Isso até que faz sentido, mas como chegou nessa conclusão?
—Só me basei no padrão de outras seitas religiosas, não deve ser tão diferente.
—Bem que me disseram que você era bom em observação e dedução, vai ser bem útil se usarmos meu faro junto, mas bem, espero que não seja só isso que você saiba fazer.—Ele volta a andar e eu sigo logo atrás.
—Por que?
—Porque vamos caçar um usuário.
O lugar pra onde nós estávamos indo me era familiar, ao longe era possível ver a lona do circo se estendendo pela floresta. Aquele lugar me dá arrepios.
—Tem um usuário se escondendo lá.—Hebron me responde como se tivesse lido minha mente.
—Ah, por que tinha que ser logo no circo?—Não consigo esconder meu desconforto, se fosse qualquer outro lugar eu entraria sem pensar duas vezes, mas isso? Não dá...
—Medo de palhaço?—Ele tem um sorriso idiota no rosto, achando isso engraçado é?
—Você também teria se tivesse visto o que eu vi...
Foi o suficiente pra calar a boca dele, agora somos nós dois desconfortáveis com a ideia de adentrar aquele lugar, em minha mente ainda consigo sentir o calor na minha pele, o cheiro de pipoca e cachorro quente impregnado no ambiente, os sons das risadas de outras crianças, e a música alta ao redor.
De repente me vejo de volta ao passado em uma lembrança maldita, eu tinha nove anos...
Minha mãe segurava a minha mão enquanto nós andávamos entre as barraquinhas e brinquedos, meus pequenos olhinhos brilhavam com a beleza do lugar, o chão de terra pouco incomodava enquanto eu via as outras crianças se divertindo, tudo que eu queria era me juntar a elas.
—Logo logo querido, papai já vem, tá bom?
Ao longe consigo ver meu pai em uma barraquinha, por que não consigo me lembrar do rosto dele? Por que não consigo me lembrar de nada dele? Eu consigo me lembrar que tenho um pai, mas não consigo me lembrar de nada sobre esse homem, nome, idade, nada! É como se ele não existisse, mas mesmo assim, eu me lembro que ele existe.
O pior é que nem mesmo a minha mãe parece se lembrar dele, ela sempre disse que me teve na época que ainda era stripper e que não tomava boas decisões na vida e acabou me tendo com um cara qualquer, ela me contou isso quando eu tinha 16, disse que não tinha vergonha desse passado mas não queria contar isso a uma criança.
Eu nunca a questionei ou odiei por ter sido o que ela era, mas sempre me esforcei pra não seguir seus passos, não quero acabar tendo que contar a mesma coisa pro meu filho ou filha.
Mas essa não é a questão, eu tenho essa memória vívida de um homem que deveria ser meu pai, mas minha mãe nega sua existência, ela está escondendo coisas de mim?
Dessa parte eu me lembro como se fosse ontem, mamãe se distrai por um segundo e eu me separo dela, decido ir pra parte de trás da lona do circo, onde eu havia visto algumas pessoas maquiadas entrarem, me esgueirando por entre as pessoas, eu levanto o tecido e adentro.
Do outro lado estava escuro, muito escuro, eu podia ouvir a música do lado de fora sendo abafada pelas cortinas, ouço uma voz me chamando, uma voz inocente e fofa, me chamando mais adiante na escuridão.
"Me siga!" Ela dizia. "Vou te mostrar uma coisa incrível, o palhaço mais incrível do mundo!"
Um receio tomou conta de mim, a verdade é que eu nunca fui fã de palhaços mas não era uma fobia tão grande quanto hoje em dia, dei um passo pra trás e imediatamente ouvi a voz tentando outra vez me atrair para o escuro.
"Ele canta!" Outro passo...
"Ele dança!" Mais um...
"Ele vai te fazer gargalhar!" Outro...
Uma melodia circense se iniciou ao meu redor, estava quase me aproximando da saída enquanto a música ia se intensificando e se tornando uma música digna de um filme de terror, me aproximo mais e mais da saída, até que minhas costas atingiram a parede.
Foi o que eu achei.
Uma mão tocou meu ombro, uma mão enorme, senti garras encostarem na minha pele levemente, olhei pra cima com o resto da coragem que ainda me restava...
O rosto demônioco de um bobo da corte me olhando, a boca cheia de dentes afiados, a boca salivando como se estivesse diante de um banquete delicioso, a pele branca com uma maquiagem mal feita e a roupa colorida como uma armadilha chamativa, eu era a presa, e estava ao alcance de uma mordida fatal.
Quando voltei a mim, estávamos na entrada do circo, o portão velho e enferrujado com a mensagem de bem-vindos e uma placa velha com o rosto de um palhaço estampado nela.
Tenho certeza que quer que quase me matou anos atrás...
Ainda estava aqui... Nos esperando...