À nossa volta só podia se ouvir o silêncio e a brisa leve soando pelo lugar como um assobio mórbido. Era possível ver as barraquinhas velhas e destruídas pelo tempo espalhadas por todo o lugar, alguns brinquedos antigos ainda estavam alí, um carrossel antigo com os cavalos desfigurados pela idade, ao longe havia também uma montanha russa com partes dos trilhos quebradas e uma roda gigante que já não rodava mais, um cenário de filme de terror.
O céu parecia ter vontade própria, a azul matinal se tornará um cinza nublado, era como se o lugar todo se entristecia.
O vento bateu em um balanço próximo, fazendo o som do metal enferrujado rangendo ecoar pelo lugar, nenhum de nós se atrevia a dizer uma palavra sequer, estávamos concentrados em achar pistas por alí.
Ao longe era possível ver a grande tenda branca e vermelha, estendida alí como se nada tivesse acontecido.
Andamos mais a frente até acharmos pegadas na areia, alguém ainda estava aqui?
Me abaixei ao lado e a toquei, ouvi gritos, várias e várias vozes gritando em desespero, me levantei instantâneamente e invoquei o Hatter, olhava para todos os lados em busca de um só sinal de vida, mas estava tudo silencioso como sempre esteve.
—Você tá bem?—Ouvi Hebron me perguntando mas apenas levei meu indicador aos lábios, sinalizando para fazer silêncio.
Fiquei procurando com o olhar por longos segundos até voltar meu olhar à pegada.
Os gritos começaram quando eu a toquei e cessaram quando eu parei de tocá-la...
Levei a ponta dos meus dedos à terra outra vez, eu não estava mais no circo, pelo menos não na minha época.
O caos havia se instaurado à minha volta e as chamas se espalharam rapidamente pelo local enquanto as pessoas corriam desesperadas com seus filhos para a saída, haviam corpos carbonizados pelo chão e outras pessoas haviam sufocado com a fumaça, muitas crianças haviam morrido também.
No meio de todas aquelas pessoas eu podia ver um pai carregando sua filha nos braços vindo em minha direção, acabou pisando exatamente onde estava a pegada e tropeçando, o mesmo atravessou meu corpo quando atingiu o chão, er como se eu fosse um fantasma.
O fogo começou a engolir o homem que apenas gritou pra sua filha fugir dali enquanto o mesmo era consumido pelas chamas, neste momento, onde ele havia apenas aceitado a morte, tive a impressão que o mesmo havia apontado a mão pra mim em um pedido de socorro silencioso, mas como isso seria possível? Eu não estava realmente ali...
De repente tudo à minha volta se apagou, me deixando sozinho no escuro com aquele cadáver queimado.
Estava tudo silencioso, como se o fogo tivesse finalmente destruído tudo e matado a todos, fiquei um bom tempo observando aquele corpo, vendo a pele queimar até se tornar uma casca negra e morta, alguns pedaços de pele e carne haviam se desprendido e era possível ver os ossos por dentro.
De repente sinto alguma coisa me agarrar, levei um susto quando vi o corpo se levantar como um zumbi, pude ver a pele naquela mão derretendo e deixando apenas um esqueleto agarrando meu pulso.
—Minha... Garotinha...—Falou com dificuldade, como essa coisa ainda consegue falar?—Eu tentei... Mas não consegui... Meu sacrifício foi em vão...
Um líquido preto e viscoso desceu por suas órbitas vazias como lágrimas, lágrimas de pura angústia.
—Minha garotinha... Me desculpe...—Não consigo assistir o sofrimento dessa alma torturada, invoco o Hatter e atiro em sua cabeça, acabando com seu sofrimento.
Sua mão perdeu toda a força que ainda lhe restava e pude me soltar, tudo ficou em silêncio mais uma vez.
A pele do cadáver começou a derreter por completo deixando apenas um esqueleto deitado no chão com um buraco de bala no crânio.
Finalmente baixei a guarda e me levantei, eu tinha que sair daquela visão o quanto antes, o que quer que ela fosse ou significasse.
Me virei lentamente em direção a saída e caminhei lentamente até ela, meus passos eram lentos e arrastados, era como se eu sentisse todo o cansaço daquelas vítimas em meu próprio corpo, além do mais, eu havia acabado de presenciar uma tragédia e uma das cenas mais grotescas que já havia presenciado, não estava muito afim de correr, eu na verdade não estava afim de nada.
Parei no portão de entrada e me inclinei sobre o portão, precisava pegar um ar.
Mas então percebi que o som de passos não havia cessado, alguém caminhava logo atrás de mim.
Mas não havia ninguém alí além de mim e do...
Não me virei rápido o bastante, senti uma mão agarrar meu pescoço e não consegui mais sentir o chão sob meus pés, não conseguia ver nada a minha frente até que as chamas se acenderam, o esqueleto do homem estava a minha frente, me enforcando com uma força descomunal, o fogo se espalhava por seus ossos como vermes famintos correndo sobre a carne de um cadáver, o branco dos ossos se tornou preto queimado pelo fogo.
—Minha garotinha...—Ele repetia isso em um lamento infernal, aquele líquido preto escorria dos seus olhos sem parar.
Precisava agir rápido, ilusão ou visão do passado, aquilo machucava de verdade, o Hatter apareceu atrás de mim apontando sua arma pra ele, mas o esqueleto agarrou seu pulso e desviou a arma da sua cabeça, meu braço ficou imobilizado junto com o do Hatter, eu podia sentia a mão ossuda daquela coisa na minha pele.
—Salve... A minha... Garotinha...—O fogo atravessou seu corpo e chegou em sua mão, logo senti um calor insuportável em meu pulso, quando o esqueleto me soltou, pude ver uma espécie de tatuagem no meu antebraço logo abaixo do pulso, uma espécie de caveira em chamas.
A mandíbula do esqueleto se abriu e uma rajada de fogo foi disparada em meu rosto, aquilo queimava, queimava demais, eu estava morto, eu sabia que estava...
De repente abri meus olhos outra vez, mas dessa vez eu já não estava mais no meu corpo, estava agora no corpo do homem, no momento em que o mesmo havia tropeçado, eu sentia a mesma dor que ele, e sentia a impotência de não poder mexer meu corpo.
A filha dele estava ao longe, uma figura enorme apareceu atrás dela e a estendeu a mão, a garotinha segurou sua mão e os dois voltaram pra dentro do parque em chamas, a mão do homem se estendeu na direção deles antes dele finalmente colapsar e morrer.
Quando voltei a mim estava de volta ao mundo real, Hebron me observa atentamente enquanto eu me levantava.
Olhei pro meu braço, a marca estava alí, eu ainda podia sentir uma leve ardência nela, o que foi tudo aquilo?
—Ouve um incêndio aqui...—Sussurrei olhando à minha volta, aquele cenário em chamas não sabia da minha cabeça.
—Esse lugar tá bem inteiro e conservado, um incêndio não deixaria esse lugar assim.—Podia parecer que ele dizia o óbvio, mas a verdade é que ele não duvidava de mim, se ouve um incêndio e o lugar foi restaurado logo depois, isso só poderia ser obra de um Fable.
—Tem alguém aqui, uma garotinha que sobreviveu ao incêndio, ela foi resgatada por alguém e trazida pra dentro do circo, talvez o usuário a tenha pego.
—Por que de tantas vítimas ele escolheria logo ela? O que tem de especial nessa garotinha?—A indagação era válida, talvez ela também fosse uma usuária, não sei se esse usuário é do tipo que gosta de treinar outras pessoas, mas é uma opção.
—Só tem um jeito de descobrir.—Voltei minha atenção à grande tenda no centro do parque, era alí que o usuário estava, não havia dúvidas quanto a isso.
Começamos uma caminhada silenciosa até o lugar, observamos tudo no caminho sem deixar passar nada, havia um trem fantasma bastante medonho com as decorações de terror feitas pra assustar crianças nos fazendo ter arrepios com a aparência decrépita, um dos robôs tinha parte do rosto rasgado deixando o esqueleto de metal dentro visível.
Haviam várias estátuas de palhaços deterioradas pelo parque também, uma mais feia que a outra, cada vez que passamos por uma eu tive que me aproximar um pouco mais do Hebron, espero que ele não me ache esquisito por isso, palhaços malditos.
Estávamos na frente da tenda, a entrada estava aberta dando visão da imensidão escura do outro lado, uma música abafada podia ser ouvida bem lá no fundo, era uma música animada de circo, mas naquela altura qualquer coisa parecia vinda de um filme de terror então aquela melodia inocente mais parecia o som de um circo dos horrores.
Esperei Hebron entrar primeiro, eu jamais entraria naquele lugar primeiro.
O Big Bad apareceu atrás dele, provavelmente estava ciente que daquele ponto em diante devemos ficar alertas a todo momento, aquele era território inimigo afinal, por isso chamei o Hatter e cobri suas costas enquanto avançamos contra a escuridão.
Conforme andamos a foi ficando mais alta, ao longe era possível ver uma luz bem fraca iluminando uma pequena caixa de música no chão de areia, a música provavelmente vinha dela.
Chegamos mais perto, mais perto, e mais perto...
Quando estávamos a pelo menos dois metros da caixa, ouvimos o som de uma risada ecoar pelo lugar, paramos imediatamente e colamos nossas costas um no outro, apontava a arma para a escuridão apenas esperando o primeiro movimento pra descarregar o tambor em quem quer que fosse.
Outra risada soou, essa sendo mais estridente, mostrando uma felicidade incomum pra alguém se escondendo na escuridão de um parque de diversões abandonado.
Depois tudo ficou no mais absoluto silêncio, ficamos um bom tempo apenas ouvindo a respiração um do outro até que Hebron decidiu acabar logo com aquilo, ele se abaixou e pegou a caixa, o rosto de um palhaço estava estampado nela, mais precisamente de um bobo da corte, a pequena manivela girava incessantemente conforme a música tocava, Big Bad a tirou de suas mãos e a esmagou, mesmo assim a música não parou...
De repente um som de vidro se quebrando ecoou pelo lugar e o chão embaixo dos meus pés pareceu desaparecer, não havia mais nada embaixo dos meus pés e eu estava caindo.
Demorou quase um minuto até que eu tocar no chão outra vez ou o que quer que fosse aquilo, seja lá o que fosse era macio, me levantei com dificuldade e olhei a minha volta estava muito escuro e Hebron não estava comigo alí, eu sentia que estava de pé sobre uma montanha de algumas coisa, talvez travesseiros?
Peguei uma das coisas mas ainda assim não conseguia distinguir o que era no escuro, através do tato eu sentia que era uma pelúcia, mas não conseguia ver do que.
Uma luz se fez presente, forte, uma luz neon brilhando ao longe, quase caí pra trás quando percebi o rosto enorme de um palhaço ao longe, ele tinha a boca aberta e língua se estendia como um tapete, era apenas outra estátua mas dessa vez sem inocência nenhuma, ele tinha uma expressão sádica no rosto pintado de branco e vermelho e tinha várias manchas de sangue, eu podia ver que a sua boca era a entrada pra algum lugar.
Quando olhei o que tinha em mãos levei outro susto, era uma pelúcia do mesmo maldito palhaço e eu estava em uma pilha delas.
Acabei escorregando e fui deslizando pela montanha de pelúcias até meus pés tocarem o espaço negro no chão.
Mais luzes se ascenderam a minha volta revelando um lugar simplesmente macabro, uma versão demoníaca do parque, em todas as barracas em volta existia uma estátua do palhaço como os donos delas, os olhos de todas elas me seguiam como se estivessem olhando diretamente pra minha alma, havia cadáveres decapitados em guilhotinas por todo o lugar, os jogos das barraquinhas tinham pessoas como alvo e as mesmas tinham dardos perfurando todo o seu corpo, havia uma daquelas rodas de arremessador de facas onde uma pessoa estava amarrada com uma faca perfurando seu peito, uma estátua de palhaço tinha uma caixa que ao invés de conter pipoca tinham órgãos humanos encharcados de sangue.
Havia um carrocel ainda girando com pessoas sem os olhos sentadas nos cavalos, as mesmas tinham um sorriso "feliz" em seus rostos sem vida, havia cadáveres parecidos na roda gigante e na montanha russa, as duas também funcionam sozinhas, aquilo era pesadelo, com certeza eu morri e só não tinha percebido ainda.
A música não havia parado de tocar, na verdade estava ainda mais alta, não podia ver Hebron em lugar algum, eu estava realmente sozinho.
Chamei o Hatter e o mantive o mais próximo possível de mim mesmo, por enquanto ele era a única coisa que me mantinha seguro, caminhei lentamente por aquele cenário terrível, só havia um lugar pra onde eu deveria ir: pra dentro da boca daquela estátua de palhaço gigante.
Comecei a caminhar pela língua daquela coisa e observei o interior da sua boca, havia uma forte luz neon roxa vindo daquele lugar, podia ver alguma coisa balançando de um lado e para o outro.
Eram armadilhas, lâminas indo e vindo, havia pelo menos uma dúzia delas, esse lugar está me testando.
Passei pela primeira sem dificuldade, a segunda e terceira não foram diferentes, acabei tropeçando e se não fosse o Hatter me segurando teria perdido a cabeça na quarta, passei pela quinta com dificuldade e senti a lâmina cortando o ar a centímetros das minhas costas, já a última lâmina...
Era simplesmente rápida demais, eu não iria conseguir passar alí, era humanamente impossível, mas foi só aí que me toquei, eu estava com tanto medo que havia esquecido que meu Fable é capaz de criar portais e me amaldiçoei mentalmente por isso, abri um portal ao meu lado e saí do outro lado da lâmina.
Segui pelo corredor escuro até chegar em um labirinto de espelhos, não conseguia ver o outro lado, era apenas uma imensidão negra repleta de espelhos, acompanhada do néon roxo.
Mas isso já não é nenhum desafio, avancei pelo labirinto em linha reta com o Hatter, toda vez que uma parede estava à minha frente eu abria um portal pro outro lado, demorei apenas alguns segundos até chegar ao outro lado.
Eu estava agora no palco, o grande círculo de areia se estendeu a minha frente, estava estranhamente vazio, nem uma viva alma estava alí.
Caminhei silenciosamente até o centro atento aos arredores, havia uma arquibancada em volta do lugar, com quatro degraus de altura, mas nem mesmo ali havia pessoas.
De repente as luzes se acenderam, iluminando o lugar, tive que cobrir os olhos por conta da claridade e então percebi que o lugar onde antes não haviam pessoas se encheu de "vida", os cadáveres sorridentes de antes estavam sentados na arquibancada e por algum motivo aplaudiram e vibraram.
Uma voz feminina ecoou pelo lugar enquanto os holofotes focavam em cima de uma torre de trapézio:
—Abram alas para a palhaça mais linda, mais maravilhosa, mais esbelta do mundo! Com vocês: Jasper!
Os holofotes finalmente se focaram revelando a figura em cima da torre, uma mulher vestida como uma boba da corte, sua roupa azul e branca listrada era praticamente uma segunda pele, não possuía abertura alguma e tinha um símbolo de trevo de quatro folhas no peito, o chapéu de bobo dela possuía uma máscara de carnaval preta integrada nele, tinha uma bota com salto no lugar dos sapatos, a pele branca não era de tatuagem, parecia ser a cor natural da sua pele, seu corpo em geral era bem esguio, seus olhos eram quase cinza igual aos da Karol e seu cabelo azul curto fazia uma franja no olho esquerdo, quase o cobrindo por inteiro.
Podia ter uma aparência diferente mas não tenho dúvida alguma, esse é o mesmo Fable que me atacou da última vez.
A mesma saltou do topo da torre e sorriu mostrando os dentes afiados antes de avançar contra mim.
Não demorei a invocar o Hatter e disparar contra ela, ela bem ágil, fez acrobacias e deu piruetas e acabou desviando dos projéteis.
Ao se aproximar de mim a mesma agarra meu pescoço e me ergue do chão com uma só mão.
—Não devia ter voltado garotinho.—A enorme língua dela passou sobre seus lábios pintados de vermelho e a mesma gargalhou ao me ver me debatendo.
—Devia ter me matado quando teve a chance.—Retruquei já com um plano em mente.
O Hatter estava imobilizado pelo pescoço junto comigo, então decidi usar o resto do seu corpo, abri um portal do meu lado e fiz atravessar seu punho, na mesma hora ela foi acertada pelo soco através do outro lado do portal e me soltou, com ela ainda atordoada acertei um tiro certeiro na sua cabeça, vendo seu corpo cair no chão sem vida.
Mas é claro que nada pode ser tão fácil, seu corpo se levantou e começou a flutuar diante de mim, chamas azuis se acenderam por todo o seu corpo e o ferimento de bala se fechou em segundos, aproveitei a chance e atirei outra vez, mas a bala derreteu em pleno ar, o calor que ela emanava era insuportável.
—Esse lugar é minha casa, aqui eu sou Deus!—Ela lançou uma rajada de fogo contra mim.
Tentei abrir um portal pra me defender mas alguma coisa bloqueou meus poderes e acabei sendo atingido em cheio.
O fogo se espalhou pelo meu corpo rapidamente, porém eu não senti nada.
Aquilo não me machucava, ao mesmo tempo senti a marca no meu antebraço arder, aquela marca brilhava intensamente enquanto as chamas se dissiparam lentamente.
Jasper me olhava incrédula, sorri de lado ao ver sua reação.
—Não pode me ferir.
O Hatter apareceu ao meu lado e então senti alguma coisa tomar conta do corpo.
—A dor e angústia das vítimas de um massacre marcaram a pele do receptáculo, tornando-o arauto do ressentimento e vingança.
A voz que saia de mim era do Hatter ao mesmo tempo que caminhei, vi o mesmo ao meu lado, a arma em sua mão começou a pegar fogo e logo derreteu lentamente, o metal derretido começou a se fundir à pele do Hatter, cobrindo todo o seu braço agora era uma espécie de armadura com o metal negro moldado na forma de um braço esquelético, a ombreira era feita com quatro placas de metal afiadas retorcidas pra cima.
—O fogo do inferno é mais quente que qualquer outra brasa.—Vi a parte inferior daquela armadura se acender, se tornando um laranja vibrante, e logo a palma da mão do Hatter começou a pegar fogo.
Jasper avançou contra mim mas o Hatter foi mais rápido, e lançou uma bola de fogo nela e a acertou em cheio, ela foi jogada pra trás com uma força violenta, o mundo a nossa volta começou a ruir como vidro as paredes se rachando em pedaços assim como o vidro e logo estava de volta naquela tenda, Hebron me olhou assustado, mas seu espanto era direcionado ao Hatter.
—O seu Fable... Ele não é pistoleiro, ele é um Arcanum!