Fiquei alí olhando pros olhos dela pelo que pareceu uma eternidade, ela parecia tão hipnotizada quanto eu, não desviava o olhar nem por um segundo. Nossa troca de olhares só cessou quando a Jasper gemeu de dor, a garota se ajoelhou ao seu lado.
—Podia ter pegado leve com ela.—Nem acredito na ousadia dessa garota em dizer isso quando as cicatrizes das garras da amiga dela estão enfeitando o meu peito.
—Pergunta pra ela se ela pegou leve com a gente.
Levantei a camisa dando visão daquelas cicatrizes, ela arregalou os olhos instantaneamente, olhou a Jasper como quem está prestes a dar uma bronca em uma criança. Ela só rola os olhos e cruza os braços, foi mesmo ela quem cuidou da garota? Pela maneira como ela se comporta eu poderia jurar que a criança aqui é ela.
—Enfim, o que estavam fazendo naquele lugar velho?
—Meu Fable sentiu o cheiro do Flying Dutchman no circo, nós simplesmente seguimos o rastro.
—São vocês...—Ela se levantou, olhando pra gente como se tivesse visto um fantasma.—Os caras que querem destruir o culto...
—Como sabe disso?
—Pelo jeito você é novo nisso, as notícias correm rápido entre os usuários, não duvido que já tenham alcançado os ouvidos do Flying Dutchman.
Se eu soubesse disso já teria pulado fora dessa a muito tempo, se o que ela diz é verdade, esse cara já deve ter colocado todos os usuários dele em alerta máximo, se não aumentarmos os nossos números logo ele vai nos esmagar.
—Ele veio até mim no circo dois dias atrás e me disse que alguém viria pra tirar a Mika de mim, vejo agora que não era verdade, mas se só estavam atrás dele, como sabiam sobre a Mika?
Como eu vou explicar pra esse demônio em forma de palhaça que eu tive uma visão com o pai morto da tal Mika e ele me disse pra salvar ela? Falando nisso, Jasper estava lá naquele dia, nós nos encontramos, tenho certeza que ela lembra de mim...
Será que ela se lembra do meu pai?
—Eu tive uma espécie de visão, eu toquei em uma pegada no chão e acabei me deparando com o incêndio de anos atrás, eu vi o pai da Mika morrendo e você levando ela pra dentro, depois disso pareceu como se a alma dele tentava falar comigo, me disse: Salve minha garotinha.
Eu nunca vi uma pessoa demonstrar tamanha dor no olhar como agora, Mika parecia lutar contra as lágrimas enquanto apertava o colar de jóias contra o peito.
—Fables Arcanum são raros, mais raro ainda é um que permite o usuário ter visões, eu não dava nada pro Mad Hatter, mas pelo jeito o seu Fable é mais especial do que eu pensei, garoto.—Acho que agora o Hebron se impressionou de verdade, eu também estou impressionado, nunca imaginaria que o Hatter tivesse essas habilidades.
—Jasper, você se lembra de mim, não lembra? Eu estava lá naquele dia.
Ela ficou séria, acenou positivamente.
—Eu lembro como se fosse ontem, o meu falecido usuário era o dono do circo, ele era um criminoso procurado por canibalismo, dizia que as crianças tinham um gosto melhor que os adultos, o circo não passava de uma maneira de atraí-las, eu atraía as crianças com potencial pra se tornarem usuárias no futuro, enquanto ele atraía as normais, um dia eu atraí um garotinho mas fui parada pelo pai dele, era um usuário também.—Isso! Era isso que eu queria saber, então ela se lembra do meu pai, e ele era um usuário.—O seu pai enfrentou o meu usuário e no meio da comoção eles atearam fogo no circo, meu usuário morreu no fogo mas ao invés de eu desaparecer junto com ele eu acabei ganhando consciência.
—Ouvi falar de algo assim, alguns Fables podem existir além do usuário, podem até encontrar novos usuários pra se manterem vivos.
Por que diabos ele não me disse isso antes? Isso explicaria a Isabella não ter morrido nem quando decapitada, talvez a Snow White possa trazer ela de volta à vida. Fiquei indignado agora, mas não disse nada, queria ouvir o resto da história.
—Esse foi o meu caso sim, eu despertei no meio do fogo, eu vi uma garotinha chorando ali e algo dentro de mim me disse pra ajudar, eu usei magia pra restaurar o circo e cuidei da Mika por um tempo, até mudei minha própria forma pra parecer mais amigável pra ela até ela ser adotada.
—Mas pra mim você é a única mãe que eu já tive.—Mika ajudou a Jasper a se levantar.
—Mika, eu sou só o Fable velho de um canibal morto, você tem uma família de verdade agora.
—Quando aquela mulher parar de bancar a megera eu talvez tente tolerar ela.
—Se ela não é sua Fable, como você consegue ver, ouvir e tocar nela?—Pelo jeito o Hebron não sabe de tudo.
—A Jasper fez uma espécie de vínculo temporário comigo até o meu próprio Fable despertar. Não estamos ligadas diretamente então o dano dela não passa pra mim.
—Perdão por atrapalhar a conversa, mas você lembra do homem que me defendeu? Aparência, nome? Até o Fable ajuda.
—Ah eu me lembro sim, ele...
Maldição, isso não pode ser verdade, ela estava prestes a falar! Uma lâmina atravessou o peito dela por trás, eu conheço bem essa lâmina, Snow White!
—Espero não estar atrapalhando nada.—Isabella, ela estava sentada sobre a janela atrás de nós, como ela nos encontrou? Essa casa fica na área mais afastada de Ivory!—Vocês acreditariam se eu dissesse que estava de passagem quando vi vocês aí?
A Snow White puxou a foice, o sangue negro da Jasper já manchando o vestido da Mika, ela parecia perplexa, as lágrimas já corriam do seu rosto. A Jasper caiu ao chão.
—Big Bad!—O Hebron foi pra cima da Isabella, a Snow White se moveu pra defender ela.
Eu iria atrás dela também, mas ao ver ela chorando...
Me ajoelhei ao seu lado, a pele da Jasper tinha algumas rachaduras, como se ela fosse feita de porcelana, cada vez mais aumentando, em movimento sutil ela acariciou a bochecha da sua garotinha, limpando as lágrimas que caíam por alí. Balbuciou um "Eu te amo" com o que ainda restava das suas forças, seu corpo se quebrou, se tornando uma espécie de cinzas, sendo levadas pelo vento.
Mika não dizia nada, só chorava em silêncio, queria poder dizer que sei como ela se sente, mas não sei, a única coisa que eu posso fazer é tentar confortá-la, segurei seu ombro...
Na mesma hora que meus dedos tocaram sua pele, senti a tatuagem no meu antebraço queimando e uma forte dor de cabeça me atingiu, ouvi um alto gemido de dor vindo da Mika, ela puxava os cabelos com força, tentei puxar minha mão de volta mas não consegui, estou grudado nela feito cola.
De repente a voz de uma mulher soou na minha cabeça.
Ah minha querida, outra vez a sua vida é assolada pela perda, que pena...
Eu ouvia essa voz, mas não era comigo que ela falava. Será que... Mika?
A morte sempre é mais rápida que você e acaba levando aqueles que você ama com ela, não está cansada disso? Por que não me deixa guiar-te pelo caminho do controle? Eu sou vós, vossa força, vosso poder, vossa vontade é minha majestade, agora até vossa morte sou seu poder para comandar e usar como quiser.
A máscara de carnaval da Mika havia retornado, mas não era a mesma de antes, agora era uma máscara de caveira branca com uma pintura florida, ainda tinham aquelas telinhas brancas que escondiam os olhos. Ela não parecia mais estar com dor, parecia com estar com raiva, ela ficou de pé e a minha mão finalmente desgrudou dela, mas mesmo assim podia ouvir a voz, a silhueta flutuante de uma mulher apareceu atrás dela mas eu não conseguia ver nenhum detalhe, era só uma sombra.
A partir de hoje, nem mesmo a morte estará fora do seu controle, pela sua vontade eu tomo forma, pela vossa vontade, meu nome passa a ser...
—La Muerte!
A figura se mostrou completamente, longos cabelos castanhos balançando contra o vento com duas flores douradas os enfeitando, usava dois brincos dourados, olhos dourados intensos como duas bolas de fogo em suas órbitas, a maquiagem do rosto era uma caveira com detalhes floridos assim como a máscara da Mika, o vestido tomará que caía preto tinha detalhes floridos negros na base da saia, olhando melhor, não era maquiagem no rosto, a pele dela é pálida, um branco imaculado por qualquer ação do tempo, a expressão era neutra, como se estivesse morta, mas a maneira como ela abraçava a Mika por trás era quase como uma mãe abraçaria sua filha.
Hebron e Isabella já haviam parado de lutar pra ver a elegância na forma de um Fable, até eu estava surpreso, os Fables que eu vi até agora eram monstros horrorosos, acho que se eles representam a nossa maturidade, ou falta dela, a Mika deve ser tão madura que o Fable dela reflete isso com uma aparência maravilhosa.
—Ela me criou, era uma mãe pra mim...—Ela cerrou os punhos, La Muerte se moveu como um raio, se posicionando em frente a Mika, percebi que o ataque ia ser potente então criei um portal discreto ao lado do Hebron, ele percebeu e atravessou.—E você tirou ela de mim...
Isabella avançou com a Snow White. La Muerte era rápida, parecia até teleporte, mas pelo vento se deslocando da pra perceber que ela está correndo em uma velocidade sobre humana, a Mika estava se movendo na mesma velocidade, as duas pareciam estar dançando em uma valsa e a cada passo o vento na sala ficava mais forte. Foi tudo tão rápido, no momento que Snow White ia acertar a foice nelas a La Muerte girou na direção das duas segurando o vestido, parou abruptamente e o soltou em um movimento elegante, Isabella e seu Fable foram mandadas longe por uma rajada de vento.
Atravessaram a janela atrás delas, caindo do segundo andar daquela casa velha.
A Mika caiu no chão, exausta, o Hebron foi até ela pra ajudar e eu fui ver a Isabella, ela estava caída lá, tinha uma poça de sangue se formando em baixo dela e dava pra ver as pernas quebradas com os ossos aparecendo, olhei a Mika por cima do ombro com um sorriso.
—Você conseguiu! Dessa vez ela não vai levantar tão cedo.—Falei cedo demais, quando voltei minha atenção pra ela ela não estava mais lá, só tinha o sangue e mais nada.—Mais que inferno! Ela fugiu!
Eu não era o único irritado a Mika estava em pé como um raio, olhando furiosa pro nada abaixo de nós.
—Desgraciada! É melhor fugir mesmo! Vou caçar você até no inferno sua vaca!—Se ela não estivesse de máscara agora, tenho certeza que poderia ver as veias saltando na testa dela, pela intensidade na voz dela até os astronautas em órbitas ouvirem os gritos.
—Ei! Me escuta!—Segurei o rosto dela pra que ela me escutasse, essa parte da cidade é bem vazia mas ainda seria melhor evitar de gritar ameaças aos quatro ventos.—Se acalma, tá? Sinto muito pela sua perda, mas não é a hora de perder a cabeça, temos que ficar calmos por enquanto, tá?
Falei o mais suavemente possível, não quero ser eu o próximo a levar aquela lufada de vento na cara, pouco a pouco a expressão no rosto dela ia se suavizando até ela se acalmar totalmente. Até ouvir um soluço baixo, ela agarrou o colar de jóias outra vez. Merda, ela vai chorar.
—Vem cá.—Puxei ela pra um abraço e senti ela esconder o rosto na curva do meu pescoço, a maquiagem dela já deve estar toda borrada, mas não importa agora. O que importa é que ela tá chorando e eu odeio ver uma garota chorando.
Podia ouvir ela balbuciando coisas entre os soluços, "Eu amava ela...", "Ela era minha mãe...", "Por que teve que ser ela?" Senti algo familiar naquela situação, eu sinto que... Eu sinto um déjà vu. Não sei porque, mas acho que já tive que consolar alguém assim antes, mas quem? Os meus amigos não são tão próximos pra eu ter me aproximado de algum deles assim, e a minha mãe...
Será que...
Mesmo eu tendo certeza que eu já vi alguém, qualquer um, nessa mesma situação de perda, mesmo que eu me esforce pra lembrar eu não consigo...
—Isso é culpa nossa...—Até o Hebron parecia se sentir mal por ela, e não posso negar nossa parcela de culpa nisso, o Flying Dutchman esperava que a Jasper nos matasse, como ela não foi capaz disso, mandou a Isabella matá-la.
—Não...—Ela se separou de mim, as lágrimas tinham mesmo borrado a maquiagem dela.—Não foram vocês que a mataram, ela vai pagar caro por isso.
Deu uma breve olhada pro Hebron, essa era a nossa oportunidade.
—Podemos nos ajudar, ela é uma das usuárias do Flying Dutchman, se nos ajudar a encontrar ele, nós te ajudamos a matar ela.
Ela pareceu pensativa por um instante, agora que eu percebi, as roupas dela mudaram completamente, aquele vestido agora era um suéter turtleneck rosa e uma calça legging preta, os saltos agora eram sapatos de caminhada, parecia o visual de alguém que acabou de acordar e saiu pra começar o dia com um caminhada. A máscara de caveira havia sumido.
—O que aconteceu com as suas roupas?
—Novatos...—Ela rolou os olhos.—Aquele era um traje Fable, alguns usuários são capazes de criar esses trajes usando seus Fables, eles podem parecer roupas comuns mas projetam uma barreira mágica em volta do usuário, além de servirem como disfarces.
Fuzilei Hebron com os olhos.
—Você sabia disso?
—Sabia.
—E por que não disse nada?
—Porque essas coisas são caras e é bem difícil encontrar alguém que faça algo de boa qualidade, eu mesmo nunca tinha visto um pessoalmente.
—Dinheiro pra mim não é problema, eu posso só pedir pra minha mãe.
—Melhor não ficar pegando dinheiro dos seus pais.—Mika se pronunciou.—Deixa isso comigo, tenho um amigo que me deve um favor e o Fable dele foi quem fez o meu traje, se quiser eu arranjo um encontro com ele na boate em que ele trabalha.
—O que você acha Hebron?
—Acho que é uma boa, os usuários por aí já sabem quem nós somos mas as pessoas comuns não, seria ruim se nos vissem matando um usuário.
—Tudo bem, eu vou falar com ele e aviso vocês quando for o encontro.
Ela estava prestes a sair quando segurei seu braço, ela ainda não nos contou uma coisa.
—Você não nos falou o seu nome.
Ela arregalou os olhos, seu rosto se avermelhou com vergonha instantâneamente.
—Nossa, que grosseria minha.—Coçou a nuca, estava bastante envergonhada.—Meu nome é Mikaella Baxter.
—Luke Ridley.
—Hebron Adams.
Ela sorriu mostrando aqueles dentes brancos e perfeitamente alinhados, um sorriso maravilhoso, do tipo que te faz sorrir também, tenho certeza que eu mesmo estou sorrindo feito um idiota agora.
Assim que ela sai o Hebron vem ao meu encontro.
—Se continuar comendo ela com os olhos assim vai acabar engravidando a garota.
—O que!? Do que você tá falando!?
—Eu vi o jeito que você olha pra ela, mal conheceu e já tá de olho, né?
—Claro que não! Tá doido!?—Eu não sei se ele tá rindo da situação ou do meu rosto corado, provavelmente é dos dois, mas não quero estender esse assunto.—Enfim, a pista que nós seguimos acabou não dando em nada, qual é o próximo passo?
Ele levou uma mão ao queixo, pensativo. Ficou assim por um tempo.
—Estamos muito desorganizados, precisamos nos concentrar em nos fortalecer e aumentar nossos números se quisermos vencer a ceita.—Ele olhou ao redor, observando a as paredes velhas da casa.—Esse lugar daria um ótimo esconderijo se já não tivessem nos descoberto.
—A minha família tem várias propriedades não sendo usadas na cidade, podemos usar alguma delas.
—Certo, mas ainda tem uma questão, nenhum lugar vai ser seguro enquanto souberem das nossas identidades. Felizmente tem um jeito de resolver isso, tem vários pontos na cidade considerados "neutros" lutas entre usuários são proibidas nesses lugares, podemos tornar uma dessas propriedades em um ponto neutro e usamos ela como esconderijo.
—E como fazemos isso?
—Tem uma usuária bastante respeitada no governo, ela tem tipo uma organização criminosa infiltrada na prefeitura da cidade, se a gente fizer um favor pra ela garantimos os serviços dela.
—Você cuida disso?—Ele sorri pra mim.
—Vou falar com ela e aviso vocês.
Ele está prestes a sair quando abro um portal à sua frente, ele me olha por cima do ombro confuso.
—Vai uma carona?—Ele sorri antes de sair pelo portal.
Assim que me vi sozinho, um suspiro de cansaço, me sentei largado no sofá velho enquanto tentava processar tudo o que aconteceu nas últimas horas, principalmente no que descobri sobre o meu pai, se ele tivesse sobrevivido ao incêndio teria voltado então ele provavelmente está morto, mesmo assim, por que a minha mãe mentiria pra mim?
Isso é demais pra minha cabeça, tudo isso só me leva a crer que ela está escondendo alguma coisa, mas será que se eu revelasse pra ela que eu descobri a verdade ela me revelaria o que sabe?
Duvido muito disso, mas o que mais me choca é eu não me lembrar de nada disso, acho que meu cérebro bloqueou as memórias daquele dia pelo trauma, e minha mãe decidiu não fazer nada a respeito, mas por que? Essa é a pergunta que não quer calar, o que aconteceu com o meu pai naquele incêndio que fez a minha mãe inventar uma história toda pra não revelar a verdade?
Apesar disso, fico feliz por termos uma nova aliada, pelo jeito é bem forte também, mas com isso acabei pensando em outra coisa, o Mad Hatter é arcanum? E ele é capaz de dominar a tal magia Fable e me faz ter aquelas visões, mas pareceu mais que isso, pareceu que o Hatter absorveu o poder daquela visão, e jeito que ele falou através de mim. Me chamou de "receptáculo".
Além disso, quando eu toquei na Mika, pareceu muito que o que acordou o Fable dela fui eu, espero estar enganado, porque não quero sair por aí transformando pessoas em usuárias sem querer, se bem que seria um poder bastante útil se for isso mesmo.
É difícil saber do ele é realmente capaz, mas pra ser honesto, eu me sinto muito foda!