No trabalho, a cabeça de Bia fervilhava. Ela sabia que Nika estava próxima... lembrava de seus lábios macios sobre os dela... Deveria conciliar seus pensamentos, concentrar-se no trabalho... No entanto, não conseguia.
Sabia que o doutor Celso era humano e mesmo gostando muito dela, por vezes pareceu gostar até demais, não suportaria aquela situação. Ele queria um trabalho bem feito. Haviam centenas de moças mais jovens que ela que desejavam sua vaga.
Ela precisava de seu emprego. As coisas não estavam fáceis em sua casa.
Com o país em crise, as pessoas, sem dinheiro para pagar um advogado, procuravam a Defensoria Pública ou até mesmo os chamados advogados de porta de cadeia, que pegavam causas por qualquer quantia irrisória.
Agora, havia também as despesas com a faculdade de Maira. Se pelo menos ela estivesse com boas notas... E esse namoro secreto...
E Nika... Onde estaria Nika? Naquele dia, não a vira.
Voltando à realidade, Bia prometeu se concentrar no seu trabalho. Da mesma forma que prestara serviços domésticos em troca de um lar, da mesma forma que escondera o abuso sexual por parte do pai durante quase um ano, com esse mesmo afinco tiraria Nika da cabeça... Conseguiria trabalhar com afinco ali também.
Na hora do almoço, soube por outras pessoas que Nika não viera trabalhar. Estava doente.
Os mesmos homens conversavam entre si que devia ser problemas com a namorada.
E como Bia sentiu inveja daquela namorada secreta... Se ela tivesse Nika em seus braços, jamais a faria sofrer...
Mas Bia sentiu-se velha... E inexperiente.. Como ela poderia competir com uma menina que provavelmente teria a idade de Nika e de sua filha?
Não era jovem e por outro lado não sabia quase nada sobre sexualidade. Excluindo os episódios de estupros, Allan havia sido seu único parceiro sexual.
Durante a tarde, seus esforços foram compensados e Bia conseguiu trabalhar com afinco, deixando seu patrão satisfeito. Ele não queria outra secretária. Queria apenas que Bia voltasse a ser como era antes.
Mas das noites ninguém consegue fugir... E as noites de insônia são infinitamente mais longas.
Em capítulos, seu passado voltava à tona. Em 1987, quando foi encontrada nua e abraçada com Maressa, seus pais a taxaram de "doente" e "anormal".
E por anos, ela questionou esses estigmas. Depois de morar com os pais de Allan e voltar a estudar, ela continuava sem interesse pelo sexo oposto.
Pensar em sexo, para ela, era pensar em dor, em invasão, em traumas. E ela não queria proximidade com nada que trouxesse isso para ela novamente.
Pesquisando, Bia soube que em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da lista de doenças mentais do Código Internacional de Doenças.
A decisão também desvinculou a orientação sexual da ideia de enfermidade.
E essa data foi tão importante que passou a marcar o Dia Internacional de Combate à Homofobia.
Cinco anos antes, o Conselho Federal de Psicologia brasileiro já havia deixado de classificar a homossexualidade como desvio sexual.
Então hoje Bia tinha consciência que seus traumas vinham do comportamento dos seres do sexo oposto, e das dores causadas por eles. Eles sim, que eram doentes e ruins.
Aos dezesseis anos, terminando o antigo segundo grau, Bia esperava ansiosa por sua festa de colação de grau. Com todas as dificuldades da vida, Bia concluiria os estudos sendo um ano mais jovem do que os demais colegas. Allan seria o seu padrinho.
Bia estava linda em seu vestido branco e dançou a primeira valsa de sua vida. Seria perfeito se a proximidade de Allan não a perturbasse.
Na volta para casa, mais uma vez a vida de Bia seria marcada pela tragédia.
Allan e o pai viajavam no banco da frente. A mãe de Allan e Bia no banco traseiro.
E não puderam escapar de um caminhão desgovernado que tombou sobre eles. Quando a ambulância chegou, não havia o que fazer. Os pais de Allan estavam mortos entre as ferragens. Allan e Bia estavam sós.
Tocado por uma depressão profunda, ele ficou em crise por várias semanas.
E um dia em sua cama, dirigiu-se a Bia:
– Você é a única pessoa que me resta no mundo! Por favor, nunca me deixe... Nunca vá embora de minha vida! – Pediu entre lágrimas.
E agora, pensando em Nika, era a esse homem que seus pensamentos estavam traindo.