II/X/MMXXX, ciclo 2030, segundo sol, da primeira semana de Divizé, pântano da desolação. Uma área cheia de armadilhas mortais, areia movediça, plantas venenosas e água envenenada. O aparecimento de terrenos como este pântano foi mais uma das muitas mudanças que a torre trouxe para o mundo.
Por entre as árvores secas e mortas, no solo estéril, propício à vegetação venenosa, um menino com aparência abatida corre pela sua vida.
Rugidos aterrorizantes e cheios de fome ecoam pelo pântano.
Ofegante, com todas as suas forças, o menino corre, pois sabe que se parar, os mortos o alcançarão. E assim ele continuou, por mais que seu corpo lhe pedisse para desistir, ele continuou correndo por sua vida, mas o destino tinha um plano diferente para ele.
Correndo cegamente, sem discernir o seu caminho, ele caiu diretamente na areia movediça. Seus pés estavam presos, e não importava o quanto ele se esforçasse, com suas forças era impossível se soltar, e quanto mais ele tentava sair, mais ele afundava. Naquele instante em sua face, só se via o desespero.
Neste momento, os rugidos ficaram ainda mais altos, e os mortos pareciam ser tomados de euforia ao farejar o cheiro do medo que exalava pelo ar, correndo ainda mais rápido em direção à sua presa. Logo, o menino podia ver correndo em sua direção, três dos mortos, criaturas brutais que comiam tudo que tinha vida.
Quanto mais se aproximavam, mais fácil era de discernir suas características. Olhos brancos sem pupila, não tinham mais cabelos em seu corpo, seus ouvidos eram atrofiados, como se fossem voltados para dentro de suas cabeças, sua pele era seca como uma múmia e suas roupas estavam destruídas.
Neste momento, tudo com o que o menino poderia contar, eram verba ex lux.
Depois que Verbum deu a luz aos homens, os homens buscaram formas de usá-la. Os indivíduos que estudavam a luz, eram conhecidos como eruditos da luz, e eram respeitados por sua sabedoria e tratados como líderes do povo.
Por meio de longas meditações, alguns entre esses eruditos descobriram meios de usar as palavras, para manifestar o poder da luz, e essas palavras foram nomeadas verba ex lux, em oposição á verba ex tenebra usada pelos viri sanguinium.
Porém, muitos entre eles, cegos pela ganância guardaram este conhecimento para si, tornando necessário que alguém pertencesse aos seus grupos para que tivesse acesso aos seus ensinamentos.
Apenas alguns poucos indivíduos escolheram espalhar seu conhecimento a todos. Mas a grande maioria de gananciosos os suprimiam e os rotulavam como mentirosos e servos da torre.
Quando a era das peregrinações começou, o povo seguiu esses líderes, e diversos grupos entre eles tiveram diferentes compreensões das instruções dadas por Album. Logo, surgiram diversas facções entre os eruditos, e cada facção formou grupos de peregrinos diferentes para ir em busca da terra santa de acordo com seu proprio entendimento.
.
.
.
O conhecimento ainda era pouco difundido, e aqueles que seguiam a uma facção mas adquiriam o conhecimento da luz por outros meios eram geralmente rejeitados e exilados pela facção como traidores e corrompidos, até mesmo perseguidos e mortos. Essa regra colocava medo nos corações dos vivos, tornando-os mais submissos e obedientes às facções.
E infelizmente, ou felizmente, o menino não havia sido aceito por nenhuma facção. Seu nome era Christian, 12 anos, órfão, pobre e fraco, nenhuma facção, das quais ele buscou auxílio o aceitou.
Vivendo sozinho, em um mundo cheio de perigos e dificuldades, sem saber como usar o poder da luz, Christian não sentia mais o prazer de viver neste mundo.
Vendo a morte diante de si, uma calma inesperada tomou conta de sua mente. Então, respirando fundo, enchendo de ar os seus pulmões, ele fechou seus olhos e relembrou do porquê estava ali.
Ele estava procurando comida, sua fome já durava dias. Ele estava faminto e se não se alimentasse, a morte logo o tomaria para si.
Sem que ninguém o visse, Cristian perseguiu de longe um grupo de peregrinos dos quais ele havia visto no dia anterior durante a sua busca por alimento. Ele tinha esperança de que com eles abrindo caminho para si, ele pudesse de alguma forma encontrar algo para saciar sua fome, ou que pudesse ao menos conseguir sobras de alimento daquele grupo.
Porém, o que ele não esperava era que o grupo de peregrinos se depararia com uma horda do exército dos corruptos, que logo cercou o grupo e os aniquilou com seus números.
E infelizmente, mesmo que ele estivesse escondido e fazendo seu melhor para não ser visto, Cristian, durante a sua fuga foi descoberto por alguns dos mortos, que logo o perseguiram famintos por uma nova presa.
Com intenção de despistá-los, ele correu para o pântano que estava próximo dali. As pessoas locais deram a esse lugar o nome de, Pantano da Desolação, mais um dos muitos ambientes que foram envenenados e transformados pela torre. Talvez se Christian soubesse disso, não teria entrado ali e não estaria na atual situação. Recordando-se dos acontecimentos, um suspiro sai de sua boca:
-Parece que finalmente chegou o momento!
Sua voz parecia estranhamente calma e soava muito madura para sua idade. Então, ele fechou os seus olhos e se concentrou no sentimento de seu coração, aquele mesmo que Album deixou a todos, e logo, ele se viu em seu COR, diante de seu coração, envolto por enormes chamas ardentes.
Mesmo com todas as dificuldades, Cristian nunca havia sentido ódio ou qualquer rancor contra alguém. Desde que viu aquela luz nos céus e ouviu a voz de Verbum, ele sentiu uma sensação de familiaridade e conforto dentro de seu peito, que jamais havia sentido, junto a um forte desejo de ouvi-lo e vê-lo novamente, até que Album apareceu.
Quando Christian o viu nos céus, ele sentiu seu coração arder, e estava certo de que daria tudo só para encontrá-lo novamente, e isso só se tornou mais forte com o passar do tempo.
Sua maior paixão era fechar os seus olhos e se colocar diante do fogo abrasador que envolvia seu coração, pois ali, sua fome, suas preocupações e medos, pareciam ser consumidos naquela chama, e tudo o que sobrava, era paz.
Cristian estava calmo pois a morte não mais o assustava, mas também ansioso, pois sentia que quando seu tempo chegasse ao fim, seu maior desejo se realizaria, pois sabia que veria mais uma vez Verbum e Album diante de si, e a ansiedade de vê-Los tomava seu coração.
O que o impedia de livremente entregar sua vida à morte por todo esse tempo, sempre foi a impressão de que perderia algo muito importante se o fizesse, por isso sempre deu seu melhor para sobreviver e seguir em frente mesmo que seu desejo fosse outro. Logo, diante das chamas que envolviam seu coração, Cristian falou:
-Esse é o fim, em breve verei Vossa beleza outra vez mais, enfim minha vida chega ao fim, enfim posso entregá-la em Suas mãos, Album, Verbum, obrigado por tudo!
Quando a voz Christian ecoou em seu COR, um brilho muito forte brotou de seu coração, e uma luz dourada que o impedia de abrir seus olhos brilhou por toda a sua volta. Então ele ouviu uma Voz, que transmitia as mais puras virtudes a todos que a ouviam, e dizia:
- Quem perde a vida por minha causa, a achará.
Quando Christian ouviu a voz, sentiu novamente seu coração arder, e logo experimentou a mesma familiaridade que sentiu com Verbum e Album. Cheio de entusiasmo, Christian gritou de volta:
-Quem és tu?
A majestosa voz lhe respondeu:
-Eu Sou. Agnus...
Quando o nome de Agnus retumbou em seu COR como um trovão, a luz que brilhava diminuiu aos poucos em direção à sua fonte. Então quando Cristian pôde finalmente abrir os olhos, um grande livro de capa dourada, como o mais puro ouro, estava lá ao lado de seu coração.
Ele olhou à sua volta, tentando encontrar a fonte da voz, mas não a encontrou. Intrigado em relação ao livro, Christian foi em sua direção e estendeu sua mão direita para alcançá-lo. No momento em que sua mão o tocou, o Livro, sozinho, abriu-se em sua primeira página, que estava preenchida com escritos incompreensíveis. Era uma linguagem que nenhum homem poderia compreender por si.
Estes escritos despertaram o interesse de Christian e ele sentia uma certa familiaridade com aquela linguagem escrita naquela página, e isso só alimentava ainda mais seu interesse.
Passando os olhos pelos escritos, ele logo percebeu que havia uma linha em que de alguma forma ele parecia compreender, mesmo que não reconhecesse aquela linguagem usada para compor os escritos. Então, voltando seus olhos para essa linha, Cristian tentou ler, e sua boca pronunciou:
-Fiat Lux!
No mesmo instante, Cristian saiu do seu COR e abriu os olhos. E antes que tivesse tempo para observar o seu entorno, uma coluna de luz dourada desceu dos céus em sua direção, retumbando um som trovejante, como a explosão de uma estrela, envolvendo a si mesmo e aos três mortos que já estavam próximos de alcançá-lo.
Quando a luz o envolveu ele sentiu uma sensação confortável tomar conta de si, suas feridas foram curadas, seu fôlego restaurado, e sua fome saciada. Quanto aos mortos, Cristian os viu ser incinerados à cinzas em poderosas chamas, assim como ocorreu na época em que Verbum havia aparecido.
Logo Cristian se viu sendo elevado da areia movediça, e a luz que gentilmente o envolvia, o levou á terra firme com muito cuidado, como uma mãe, que com delicadeza levanta seu filho do chão depois dele cair enquanto aprendia a andar.
Fora da areia movediça, não mais em perigo, Christian começa a sair de seu estado atordoado, e olhando a sua volta, procura os mortos que o perseguiam. Porém, logo, lembranças do que lhes aconteceu surgem em suas recordações.
Logo, Chirstian percebe que a luz não mais o envolve, de modo que tudo parecia ter sido um sonho.
Não entendendo o que acabava de acontecer, Christian fechou os olhos novamente para entrar em seu COR, vendo-se novamente diante de seu coração envolto em chamas que pareciam ainda mais poderosas do que antes, queimando com ainda mais intensidade, e ao lado de seu coração, estava o grande livro dourado:
-Então, o que aconteceu? Porque as chamas se intensificaram de repente? Já fazia tanto tempo que não ocorria nenhuma mudança nas chamas. Devo verificar tudo depois... por agora, devo sair deste lugar perigoso, sinto que se eu permanecer aqui, posso acabar morrendo envenenado ou afogado na lama do pântano.
Assim, saindo dali, Cristian fez seu caminho para fora do pântano da desolação, seguindo na direção oposta, de onde os mortos emboscaram o grupo de peregrinos.