Augusto sentiu uma sensação de que alguém os observava. Virou a cabeça para o lado, percorrendo a extensão da floresta de pinheiros, mas não encontrou nada. Elisa percebeu que o marido olhava para a mata e perguntou o que se passava. O médico respondeu que não era nada, que só estava observando as árvores e como elas eram bonitas. Não queria trazer preocupações desnecessárias para a mulher e o filho.
Logo após o café da tarde, Elisa chamou o marido para entrarem, precisava de ajuda para preparar o jantar. Augusto chamou o filho e disse:
— Campeão, vamos entrar para preparar o jantar. Pode ficar aqui fora brincando, mas tome cuidado com o penhasco e não entre na floresta. Não sabemos que tipo de bichos pode ter lá...
O garoto assentiu e voltou a correr pelo terreno, com o cachorro logo atrás.
Elisa soltou um suspiro quando entrou na cozinha. Apesar da pia e balcões estarem instalados, imaginou que não haveria panelas e nem pratos ou talheres disponíveis. Após procurar em tudo, confirmou o pensamento.
— Não tem panelas para cozinhar — disse ela —, nem facas e pratos. Acho que ainda dá tempo de ir ao Centro procurar algo para usar enquanto nossa mudança não chega.
Augusto se dispôs a ir até lá procurar, mas, quando se ofereceu, ela recusou.
— Eu mesma irei. Fique aqui e limpe o que precisa ser limpo. Acredito que em menos de meia-hora eu deva estar de volta.
Ainda receoso, o médico concordou.
Elisa dirigiu um olhar afetuoso ao marido e, por fim, falou:
— Espero que esteja tudo limpo quando eu chegar, Senhor Vianna.
Ele gargalhou.
— Sim, senhora comandante.
***
Elisa foi o caminho todo até o centro da cidade repassando o ocorrido daquela tarde, na frente da igreja. Por mais que não quisesse ir até lá novamente, sabia que precisava. Moraria naquela cidade agora e não poderia se trancar em casa por medo do ocorrido. Além do mais, o filho não estava com ela agora, então nada poderia acontecer a ele. Pensar nisso a deixou mais tranquila.
Estacionou o carro no começo da rua principal. Iria andando até o supermercado e aproveitaria para dar uma olhada nas vitrines das lojas.
Passou por uma confeitaria. Tudo lá dentro parecia delicioso. Bolos de chocolate, jujubas, sorvetes. Tudo que Augusto não aprovaria se ela levasse para casa. Bem, casar com um médico tinha seus pontos ruins também.
Estava quase chegando no supermercado, onde imaginava que haveria alguns pratos e panelas disponíveis para venda — pelo menos em São Paulo, ela sabia que teria —, quando uma velha apareceu na sua frente:
— Vocês precisam ir embora, senhora. Precisam, precisam. Este lugar não é de Deus. Me ouviu? Pegue seu lindo garoto e o doutor, e vá enquanto pode. Depois que eles pegarem vocês, nada fará lhes soltarem. Nem orações, nem feitiços. Nada! Essa cidade não é mais de Deus. Vocês precisam ir embora. Precisam, precisam! — A mulher pegou Elisa pelos braços e começou a sacudi-la. — PRECISAM IR EMBORA, ANTES QUE SEJA TARDE!
Filetes de saliva voavam pela boca da velha, e Elisa podia ver a dentadura da mulher se mover de um lado para o outro, prestes a saltar da boca asquerosa.
Ela se desvencilhou da velha e correu na direção do mercado. Estava tremendo, o coração bombardeando o peito. O que tinha sido aquilo?
Havia pessoas na rua, todas de olhos vidrados em quem estava causando aquele barulho. Ao entrar no supermercado, Elisa deu de frente com um homem que devia ser o dono do estabelecimento. Ele amorteceu a colisão, aparando a mulher pelos ombros.
— Não dê ouvidos a essa aí.
Elisa focou o rosto do comerciante com olhos arregalados e chorosos. Moveu a boca, só não conseguiu convencer a voz a sair.
O homem prosseguiu:
— Ela ficou louca depois que o filho desapareceu. Era um rapaz bom. Ninguém sabe se ele está vivo ou não. O que acontece é que ela acabou enlouquecendo, e por isso e vive por aí, falando essas coisas sem sentido.
Apesar de ainda assustada e enraivecida, recebeu as palavras e procurou justificar um pouco da paranoia da velha. Afinal, ela também enlouqueceria se Rob sumisse sem deixar rastros.
— Há quanto tempo... — A voz de Elisa engasgou, ela pigarreou, engoliu em seco e retomou. — Há quanto tempo o filho dela está desaparecido?
Ele se dirigiu para trás do balcão.
— Há muito tempo, senhora. Sumiu quando tinha uns cinco anos. Ou seriam quatro? Não lembro muito bem.
Ela assentiu e perguntou ao homem se ele teria o que precisava para a janta. Felizmente, tinha. Ela pegou o que precisava e voltou para o carro o mais depressa possível, observando tudo ao redor. Não queria encontrar com a mulher novamente.
***
O percurso de volta para casa foi ainda mais difícil do que a ida ao mercado. Pensar que aquela mulher perdeu um filho acabou lhe sendo, de certa forma, uma tortura também. Elisa era mãe, e mães compadecem dos sofrimentos umas das outras quando se trata dos filhos. E não importa o tempo que tenha decorrido, filhos são insubstituíveis.
Ao chegar em casa, contou o ocorrido a Augusto:
— E se acontecer com Rob? Eu não suportaria. Viemos pra cá pensando em segurança. E se acontecer com ele? E se levarem ele embora também?
O médico, que estava com um pano em mãos, utilizado para limpar a pia e os balcões, deixou-o de lado e foi na direção da mulher.
— Mas isso foi há muito tempo, Elisa. Pelo que você me explicou, parece que essa mulher sofre de algum transtorno. Bem provável que ela estivesse delirando, só isso.
O problema é que ele não acreditava no que dizia, era só uma justificativa para camuflar as preocupações reais. Ainda em sua mente, associava todas as coisas estranhas daquela cidade ao pessoal que o obrigara a se mudar. Cogitou a ideia de ir embora, claro, mas era impossível. Sabia disso. Aquelas pessoas os infernizariam, e ele não sabia o porquê.
As palavras dele não pareceram acalmá-la. Ela o olhou com lágrimas escorrendo pelo rosto e falou:
— Mesmo assim, e se acontecer? Vamos embora, por favor?! Sinto que há algo de estranho aqui, e que a gente está correndo perigo.
Augusto a abraçou, ela começou a chorar.
— Está tudo bem, querida. Vai dar tudo certo e nada de mal acontecerá ao nosso garoto, eu prometo. Infelizmente, não podemos sair. A casa em São Paulo já está vendida, e eu não consegui emprego em nenhum outro lugar.
Ela o olhou por alguns segundos. Sabia que ele tinha razão. Estavam encurralados numa cidade estranha, com pessoas estranhas. Ficou mais alguns minutos nos braços do marido, até aliviar o choro.
— Eu sei — disse, soltando-se de Augusto. — Estou melhor. Vamos preparar a janta. Logo anoitecerá, e você e Rob precisam acordar cedo. — Deu um beijo no marido e foi para a cozinha.
***
Já havia anoitecido quando Rob entrou para tomar banho. Bóris estava no andar de cima da casa, ao pé da porta do banheiro, esperando o companheiro se arrumar e descer as escadas para jantar. Tinha a cabeça relaxada sobre as patas da frente, curtindo o som da água caindo dentro do banheiro, mas algumas pancadas na porta o fizeram erguê-la, o olhar atento na direção da escada. Parecia que só a audição canina tinha escutado alguém chamar. Assim, passados poucos segundos, houve mais batidas na porta. Mais alto dessa vez.
Augusto caminhou até a entrada. Estranhava o fato de alguém bater àquela hora porque não conheciam praticamente ninguém ainda.
O susto foi inevitável quando ele abriu a porta.
— Boa noite, Senhor Vianna, que bom vê-lo novamente.
Era o homem de São Paulo, o que havia lhe entregue o cartão. Ou não seria? O homem à sua frente tinha cabelos esbranquiçados, assim como a barba gigante, mas o sorriso, o olhar... Era o homem de São Paulo, sim, tinha certeza. Mas como? Augusto congelou num olhar trêmulo para o homem. Como a barba havia crescido tanto em tão pouco tempo?
O sujeito ficou esperando Augusto processar o que estava acontecendo, e, por fim, disse:
— Não vai me convidar para jantar? Estou morto da fome e receio que tenhamos alguns assuntos a tratar sobre o seu primeiro dia no hospital amanhã e o primeiro dia de aula de Rob na escola nova.
O médico, sem dizer uma palavra, saiu da frente da porta, quase que de forma mecânica, dando espaço para o homem entrar. Ele estendeu a mão para Augusto e disse:
— Me chamo Benjamin Mendonça, mas pode me chamar só de Ben.