Depois de horas de viagem e algumas paradas entre postos de gasolina e banheiros de pequenas lojas, finalmente avistaram a placa. Era verde, com letras brancas, quase escondida pela vegetação. Passaram devagar para ler os escritos.
Bem-vindo a Rio Denso
Pop. 2.019
Poucas letras que transmitiam um alívio enorme. Estavam cansados de passar tantas horas dentro do carro, e, mesmo com a noite de sono no hotel onde haviam parado, ainda sentiam dores pelo corpo.
Augusto estacionou o veículo no acostamento para que tirassem a primeira foto na nova cidade, bem ao lado da placa. Ajustou o temporizador do celular e o deixou apoiado por uma caixa sobre o capô do carro para que os três pudessem aparecer.
Todos concordaram que a foto tinha ficado ótima. O ar parecia mais puro e o vento mais gelado e gostoso em Rio Denso. Entraram no carro para que chegassem logo ao destino. Mais cinco minutos, talvez, e atravessariam o portal da nova cidade.
***
O médico dirigiu em velocidade baixa para que ele, Elisa e Rob pudessem apreciar os detalhes da cidade. As casas eram simples e não havia a poluição visual dos muros que se encontravam por todo canto em São Paulo. As ruas eram ornadas com flores que nenhum deles jamais tinha visto. Elas intercalavam em cores que iam do rosa ao roxo, passando por tons mais claros, como o branco e o amarelo.
As casas variavam entre cores claras também. Algumas eram de madeira rústica, trazendo ainda mais beleza para o lugar. A maioria mantinha jardins e gramados que convidavam a deitar e ler um bom e velho livro, repousando das dores de cabeça do dia-a-dia. O céu estava intenso, não havia nenhuma nuvem. Apenas a imensidão azul e o sol dando boas-vindas à família.
Avistaram um rio de águas escuras que corria ao lado da estrada. O médico logo ligou o nome da cidade com a cor das águas e abriu um sorriso. Augusto traria o filho e a esposa para que fizessem um piquenique na beira do rio, depois se banhariam e curtiriam a natureza exuberante.
E, enfim, chegaram ao centro, de onde já era possível avistar a casa que o hospital dera a Augusto. Ficava no topo da colina, no ponto mais alto da cidade. Um casarão branco guarnecido pela grande árvore. O médico gostou ainda mais depois de vê-lo pessoalmente. Só mais uma parada no mercado, para se abastecerem para o jantar, e então casa nova, vida nova.
O mercado ficava atrás da igreja da cidade. Augusto estacionou próximo, decidiu deixar Elisa e Rob babando pelo local enquanto ia fazer as compras.
— Filho, que tal descer desse carro e respirar um ar puro, hein? Tá a fim de conhecer a igreja com a mamãe?
Rob pareceu satisfeito e respondeu com um aceno de cabeça. Augusto se virou para Elisa, que também assentiu.
— Vou comprar nosso rango. — Alisou a barriga e passou a língua entre os lábios. Rob imitou o pai. — Já volto.
Elisa saiu primeiro do carro e avistou um parque que ficava à frente da igreja. Algumas pessoas se reuniam para jogar conversa fora, outras jogavam alguns jogos que ela não conseguia distinguir do local onde estava.
Árvores grandes aproveitavam a hora de sol ameno para projetar sombras aconchegantes sobre o parque todo. Uma mulher olhou na direção da família recém-chegada, cutucou o homem ao lado, que, por sua vez, chamou a atenção de outro. Em segundos, quase todos encaravam Elisa e Rob, como se tivessem avistado uma dupla de alienígenas.
Elisa continuou a percorrer o local com os olhos e avistou um homem negro, vestido de bata branca, na porta da igreja. Não era muito religiosa, mas achou que seria, no mínimo, educado cumprimentá-lo. Afastou-se de Rob por um instante e foi até o padre.
A princípio, o homem tinha um sorriso largo de boas-vindas, até ver o menino descer do carro. O rosto se contorceu numa carranca, os olhos ferveram de ódio. Dardejou o olhar da mãe para o filho várias vezes.
O sorriso de Elisa murchou e ela franziu o cenho.
Virou-se para olhar na direção do filho, deu de cara com olhos curiosos e amedrontados. Todos pareciam querer arrancar um pedaço do menino, pareciam olhar para o mal. Uma senhora segurou o braço da neta com força suficiente para deixar uma marca roxa. Uma mãe que carregava um bebê no colo ajustou a criança novamente no carrinho e se afastou a passos largos. Um senhor levou a mão ao coração, como se visse um fantasma. Os que permaneceram no local pareciam petrificados com a visão.
Elisa se voltou mais uma vez para o sacerdote, que lhe deu as costas e bateu a porta da igreja com violência.
O garoto ficou estático. Não passava por sua cabeça que ele era o motivo de toda aquela reação constrangedora.
Nesse momento, Bóris começou a latir e se debater dentro do carro.
Elisa olhou para o filho parado ao lado do carro, sem saber o que tinha acontecido. Forçou os pés a seguirem até ele, passando pelos moradores e os encarando com um olhar furioso. Quando chegou perto o bastante do garoto, perguntou:
— O que aconteceu, querido?
Rob tentou falar alguma coisa, não conseguiu encontrar as palavras certas. Por fim, apenas disse:
— Não sei. Quando eu saí, eles ficaram assim.
Elisa o abraçou e um alarme de perigo disparou na mente. Era como se sentisse um mal palpável contra o filho, coisas que só sexto sentido de mãe pode detectar. Afagou os cabelos de Rob e lhe deu um beijo na testa. Virou-se mais uma vez, as pessoas haviam esvaziado a praça.
Augusto voltou do mercado com as mãos lotadas de sacolas. A alegria que o guiava se tornou pó quando viu a mulher e o filho pálidos, mirando um parquinho sem vida. Ela apenas fez sinal com a mão para que não perguntasse nada. Abriu a porta do carro, colocou Rob no assento traseiro e passou o cinto em torno do garoto, entrou sem dizer palavra e esperou pelo marido, que tratou de agilizar as compras no bagageiro e ligar o carro.
— Vamos pra casa... por favor — disse Elisa.
Ao sair, Augusto ainda percebeu olhos curiosos xeretando entre as cortinas da igreja. O olhar do padre lhe era familiar, já tivera de salvar muita gente que havia chegado ao hospital com aquela mesma expressão. O sacerdote fechou as cortinas quando percebeu o médico corresponder à encarada.
Atravessaram o centro admirando a nova casa, lá no alto, como se ela fosse um refúgio seguro.
— Mamãe? — Rob quebrou o silêncio.
— Hum...
A mente da mulher parecia estar distante.
— Quero chegar logo lá em cima. — A vozinha saiu fraca, sentida. Mas forte o suficiente para trazer a mãe de volta ao carro.
Ela se virou para olhá-lo no banco traseiro. Permitiu-se um sorriso acalentador.
— Ah, é? Posso saber o porquê?
— É que acho que lá é seguro.
Augusto olhou através do retrovisor. Quis sorrir, mas, daquela vez, o mal-estar espiritual falou mais alto.