O vento cortante da Rússia soprava impiedosamente sobre a floresta, carregando consigo o cheiro de terra molhada e neve prestes a cair. O grupo havia retornado ao Vaticano, mas algo em Keyon continuava quebrado, como se uma parte de sua alma tivesse sido arrancada e deixada para apodrecer nas profundezas da batalha que travou com o demônio da água. Apesar de sua fachada de tranquilidade, seus olhos, sempre profundos e introspectivos, agora carregavam a marca de algo mais sombrio.
Durante os dias que se seguiram à sua recuperação, o grupo de exorcistas — Ayla, Kieran, Mira e Lucas — ficou quieto, cada um lidando com seus próprios pensamentos. O desconforto era palpável. Enquanto se preparavam para enfrentar os novos desafios que surgiriam, todos sabiam que a missão de resgatar Keyon da sua própria escuridão ainda não havia terminado.
O Vaticano, sempre vigilante, não era um lugar onde o tempo passava sem consequências. As missões de exorcismo continuavam a ser organizadas, as lendas e os rumores de novas ameaças se espalhavam como fogo, e os demônios estavam mais ativos do que nunca. Os dias seguintes à volta de Keyon foram gastos em preparação. Cada membro do grupo, especialmente Ayla, tentou fazer com que ele se sentisse acolhido e tranquilo, mas a presença de algo desconhecido e maléfico ainda pairava sobre ele. Não era só sua relação com seu pai, o demônio, que o atormentava, mas também o despertar das suas habilidades demoníacas, que agora pareciam querer tomar controle de seu corpo.
Os treinos começaram logo após a volta. Mas era evidente que Keyon não estava no mesmo ritmo que antes. Seus poderes com a terra estavam mais fortes, mas de forma descontrolada. Ele podia sentir a terra ao seu redor como nunca antes, como se fosse uma extensão de si mesmo. Seu poder fluía com uma naturalidade inusitada, mas sempre que o controlava por um longo período, algo dentro dele se revirava, algo que o chamava para o abismo.
Kieran, que sempre foi um observador atento, logo percebeu a mudança. Em um de seus treinamentos com Keyon, ele o viu fazer a terra fluir como se fosse água, moldando-a em formas complexas com uma facilidade desconcertante.
— Isso não está certo, Keyon, — disse Kieran com seriedade. — O que está acontecendo com você?
Keyon respirou profundamente, sentindo a pressão de suas novas habilidades e a crescente tentação de sucumbir àquilo que chamava de "seu lado demoníaco". Mas, ao invés de admitir o que sentia, ele apenas sorriu, tentando esconder o que realmente estava acontecendo.
— Eu estou controlando melhor. Não se preocupe. Estou no controle. — Mas seus olhos não mentiam. A sombra estava lá, espreitando, à espera.
Mira, sempre perceptiva, reparou na tensão entre os dois. Ela sabia o que estava acontecendo, mas não sabia como ajudá-lo. Durante as semanas em que estiveram separados, ela estudara profundamente as artes demoníacas, e algo lhe dizia que Keyon estava no limiar de uma transformação irreversível. Cada vez que ele utilizava seus poderes, sua humanidade parecia desvanecer-se um pouco mais. A preocupação que ela sentia se tornava mais pronunciada a cada dia.
— Keyon, você precisa ser honesto com nós, — ela disse suavemente, enquanto observava o jovem exorcista em seu treino. — Esse poder... não está mais só em suas mãos.
A voz de Mira fez com que ele parasse. Ele sabia que ela estava certa. Ele estava se perdendo, lentamente. Seus poderes, que antes eram apenas uma extensão de seu treinamento e força, agora estavam se tornando parte de algo mais profundo e sombrio. Algo que ele não compreendia completamente, mas sabia que não podia ignorar. Não mais.
Na manhã seguinte, após uma noite em que Keyon não conseguiu descansar, ele decidiu procurar respostas. Foi até o Arquivo do Vaticano, um lugar secreto onde documentos antigos sobre demônios, magia e linhagens ocultas eram guardados. Ali, ele procuraria qualquer pista sobre seu pai — o demônio da terra — e sobre o que estava acontecendo com ele.
Enquanto ele caminhava pelos corredores silenciosos, o som de suas botas ecoava nas paredes de pedra, como se o próprio Vaticano estivesse observando cada passo seu. Ele finalmente encontrou o que procurava: um livro antigo, com páginas amareladas e a capa desgastada. O título, em letras douradas, dizia apenas: "Linhagens Demoníacas: Os Filhos do Abismo".
Ao abrir o livro, Keyon encontrou registros de antigos demônios ligados aos elementos, sendo o mais notável o do Demônio da Terra, seu pai. O livro descrevia-o como uma figura temível, cuja magia sobre a terra era incomparável. Mas o que realmente chamou sua atenção foi a menção a uma linhagem especial — uma linhagem que não só herdava os poderes do elemento da terra, mas também sucumbia à corrupção e ao caos. Cada filho dessa linhagem acabava perdendo a humanidade e, com isso, caía na escuridão.
— Não pode ser... — Keyon sussurrou para si mesmo, seu rosto empalidecendo enquanto ele absorvia cada palavra.
Ele se viu refletido naquelas páginas, sentindo o peso daquilo que havia descoberto. Seu pai não era apenas um demônio poderoso. Ele era a personificação do que Keyon temia se tornar: uma criatura consumida por seu próprio poder, sem controle, sem humanidade.
À medida que ele fechava o livro, o chão de pedra abaixo de seus pés tremeu levemente. O poder da terra dentro dele reagiu, como se chamasse uma força que não podia mais controlar. O ar ao seu redor se tornou denso, a pressão aumentava como uma tempestade prestes a se desatar.
Foi nesse momento que ele sentiu. O poder. O peso da sua linhagem. A sombra que o acompanhava. Seu corpo estava começando a ceder ao instinto demoníaco que despertava dentro de si. Ele lutava para manter o controle, mas sua mão tremia, e seus olhos brilhavam com uma luz dourada.
— Não... não agora... — ele sussurrou, mas era tarde demais.
A terra ao seu redor começou a se agitar. As pedras e o chão tremiam violentamente, como se uma força invisível estivesse tentando rasgar o próprio chão do Vaticano. O poder de Keyon havia ultrapassado seus limites.
No instante em que a tempestade interior de Keyon se desatou, Ayla e Kieran correram pelos corredores do Vaticano, alertados pela energia descontrolada. Kieran, com seu corvo Nyx à frente, já sabia que algo estava errado. Ayla, com o olhar decidido, estava a poucos passos de Kieran.
— Ele não pode deixar isso tomar conta dele, — Ayla disse, a preocupação evidente em sua voz.
Quando chegaram ao arquivo, o que viram foi Keyon no centro da sala, seus olhos dourados brilhando como o fogo, enquanto o chão ao seu redor rachava. Uma onda de terra se ergueu, ameaçando engolir tudo ao redor. Ayla rapidamente ergueu uma barreira mágica, protegendo os dois.
— Keyon! — Ayla gritou, correndo até ele. — Você está em perigo! Não deixe isso te consumir!
Mas Keyon, perdido no turbilhão de emoções e poder, não ouviu. O controle sobre o elemento terra havia desaparecido completamente. Ele estava preso na tempestade de seu próprio interior, uma tempestade criada pela herança demoníaca que não podia mais ignorar.
Com um último esforço, Ayla lançou um feitiço de contenção, tentando restaurar o equilíbrio. Ela sabia que a batalha de Keyon não seria apenas contra os demônios externos, mas contra o próprio demônio que ele carregava dentro de si.
E naquele momento, Keyon desabou, caindo inconsciente no chão rachado, a tempestade se acalmando ao seu redor.