A chuva batia incessante contra as janelas rachadas do pequeno apartamento, o som ecoando pela sala de estar como um lamento sombrio. Elias Ferreira, sentado num sofá desgastado com uma pequena rachadura no encosto, olhava fixamente para o nada, enquanto suas mãos seguravam um copo de café frio e amargo. As contas empilhadas na mesa do centro eram um lembrete cruel de sua vida em constante declínio. A cada mês que passava, ele se afundava mais nas dívidas, e parecia não haver fim para o ciclo de miséria em que estava preso.
Ele havia sido, um dia, um homem com sonhos. Formado em engenharia, imaginava que o mundo estaria ao seu alcance, mas a realidade havia sido provada ser implacável. As oportunidades eram poucas, e as cirurgias estavam fora de seu alcance. Agora, aos 28 anos, Elias trabalhava como entregador de aplicativos, correndo pelas ruas da cidade em sua velha moto, tentando juntar o suficiente para não ser despejado de seu apartamento minúsculo no bairro mais decadente de São Paulo.
O mundo parecia ter se esquecido dele, mas o verdadeiro golpe havia sido pessoal. Um acidente de carro trágico havia levado seus pais e, com eles, qualquer segurança que ele pudesse ter no futuro. Desde aquele dia, ele estava sozinho, abandonado à sua própria sorte. Ele vivia para sobreviver, um ciclo interminável de trabalho exaustivo e preocupações que o consomem diariamente.
Naquela tarde chuvosa, Elias sentiu que algo estava diferente. O peso de sua situação era o mesmo, mas havia uma sensação de inquietação crescendo em seu peito.
Elias suspirou profundamente, deixando o copo de café de lado e esfregando o rosto com as mãos. Ele precisava sair para fazer mais entregas, mas a chuva pesada e o frio que atravessava as paredes finas do apartamento eram um desestímulo brutal. Ele se levantou, pegou o celular velho que vibrava constantemente com notificações de mais pedidos e, após uma olhada rápida nas mensagens, decidiu que não poderia ficar parado.
— Droga, mais um dia — murmurou, ajeitando o casaco surrado e pegando o capacete que estava no canto da sala.
Antes de sair, Elias deu uma última olhada em seu reflexo no pequeno espelho da entrada. Os olhos cansados e as olheiras profundas revelavam a batalha que ele travava diariamente, não só com o mundo, mas consigo mesmo. Ele se virou bruscamente, abriu a porta e saiu para enfrentar a chuva.
O tempo lá fora estava ainda mais frio do que parecia de dentro do apartamento. A chuva caía como lâminas geladas, e o vento cortava seu rosto, mas ele não tinha escolha. Montou na sua moto, uma velha Yamaha enferrujada que era praticamente sua única companheira fiel, e ligou o motor, que roncou como um animal moribundo.
Enquanto acelerava pelas ruas molhadas e escuras de São Paulo, algo começou a incomodá-lo. Uma sensação estranha percorreu sua espinha, como se algo o estivesse observando. Ele olhou pelos retrovisores, mas não viu nada além das luzes borradas dos faróis refletindo nas poças d'água. Ainda assim, a sensação persistia.
— Deve ser o cansaço... Preciso dormir mais, — resmungou para si mesmo, tentando ignorar o desconforto crescente.
Mas o desconforto logo se transformou em algo mais palpável. No cruzamento de uma avenida deserta, ele avistou algo incomum. No meio da pista, envolto pela chuva e neblina, havia uma figura. Uma sombra alta e distorcida, que parecia não pertencer àquele mundo.
Elias diminuiu a velocidade, os olhos fixos na silhueta. O que era aquilo? Um morador de rua? Um animal? Quando estava a poucos metros de distância, o "objeto" se moveu, revelando uma face grotesca. Não era humano. Pelo menos, não mais. A criatura tinha um corpo deformado, coberto de pele cinza e rachada, com olhos brilhantes e ferozes que o encaravam.
O pavor tomou conta de Elias. Ele brecou a moto abruptamente, quase caindo no processo. Seu coração batia forte no peito, e ele tentou recuar, mas o pneu da moto escorregou em uma poça, e ele perdeu o equilíbrio, caindo de lado no asfalto molhado. O capacete bateu no chão, e ele sentiu o impacto atordoá-lo por um momento.
— O que é isso? — murmurou, a voz fraca, tentando entender o que estava diante de seus olhos.
Antes que pudesse processar, a criatura avançou com uma velocidade inumana, suas garras se estendendo para atacá-lo. Elias rolou para o lado, desviando por pouco. O chão estava escorregadio, dificultando sua fuga, mas o medo o impulsionava. Ele se levantou o mais rápido que pôde, mas antes de alcançar a moto, a criatura já estava em cima dele.
Num reflexo desesperado, Elias puxou um pedaço de ferro que estava jogado na calçada, talvez um resquício de uma construção próxima, e brandiu contra o monstro. O metal atingiu o rosto da criatura com um som surdo, e a força do golpe a fez recuar, mas só por um segundo. Aquilo não era suficiente para derrotá-la.
— Isso... Isso não pode estar acontecendo — disse Elias, sentindo o desespero se transformar em pânico. Ele sabia que não tinha chance contra algo assim. Era um mero humano, comum, fraco, sem nada especial.
O monstro rosnou, suas presas à mostra, pronto para atacá-lo novamente. Elias recuava, sem saber o que fazer. A moto estava longe demais para ser uma opção, e o ferro em sua mão não parecia mais do que um brinquedo inútil diante daquela criatura.
Foi então que ele ouviu algo. Uma voz. Não uma voz comum, mas uma presença em sua mente, fria e autoritária.
*"Você está prestes a morrer."*
Elias piscou, tentando afastar o som, achando que era sua mente pregando peças devido ao medo extremo. Mas a voz voltou, mais forte.
*"Você deseja sobreviver?"*
Ele não tinha tempo para entender o que estava acontecendo. O monstro avançou novamente, e desta vez Elias sabia que não teria escapatória. Seus músculos estavam tensos, a adrenalina percorrendo seu corpo, mas não havia para onde correr.
— Sim! — gritou ele, sem pensar, movido apenas pelo puro instinto de sobrevivência.
O tempo pareceu parar por um momento, e uma luz intensa surgiu diante de seus olhos. Por um segundo, o mundo ao seu redor desapareceu, engolido por uma escuridão absoluta, seguida por um brilho que tomou forma dentro dele. Era como se algo estivesse se rompendo, como se correntes invisíveis estivessem sendo quebradas dentro de sua alma.
Quando a luz se dissipou, Elias sentiu algo diferente. Seu corpo não era mais o mesmo. Ele estava mais forte, mais rápido. Antes que pudesse sequer processar as mudanças, a criatura atacou novamente, mas desta vez, Elias se moveu com uma precisão que nunca havia experimentado antes. Ele se esquivou facilmente e, com um movimento fluido, girou o pedaço de ferro e atingiu o monstro com uma força devastadora. O som dos ossos quebrando ecoou na rua vazia.
A criatura cambaleou para trás, surpreendida, mas antes que pudesse reagir, Elias já estava sobre ela. Uma força que ele jamais imaginou possuir o tomava, e em questão de segundos, ele desferiu o golpe final, cravando o ferro diretamente no coração da criatura. O monstro emitiu um grito agudo e agonizante, antes de se desfazer em pó diante de seus olhos.
Ofegante, Elias caiu de joelhos no chão molhado, o corpo tremendo. Ele olhou para suas mãos, sujas de sangue e chuva, mas não podia acreditar no que acabara de acontecer. Como ele havia feito aquilo? O que havia mudado?
— O que... o que está acontecendo comigo? — sussurrou para si mesmo, a respiração ainda irregular.
*"Você foi escolhido."* A mesma voz fria soou novamente em sua mente.
Elias se levantou lentamente, o coração acelerado, tentando entender o que estava acontecendo. A rua estava deserta novamente, como se nada tivesse acontecido. Apenas as marcas no chão e o pó remanescente da criatura eram provas do que havia ocorrido.
— Quem... quem está aí? — perguntou, olhando ao redor, tentando encontrar a fonte daquela voz.
*"Você despertou. E agora, o verdadeiro teste começa."*
Antes que pudesse fazer mais perguntas, Elias ouviu passos ecoando na rua. Mas não era o som de uma única pessoa. Parecia um exército. Ele virou-se na direção do som e, para seu horror, mais criaturas começaram a surgir das sombras. Eram inúmeras, todas tão grotescas quanto a primeira, com olhos brilhantes e garras afiadas.
Elias deu um passo para trás, sentindo o pânico subir novamente. Ele havia derrotado uma, mas aquilo... aquilo era impossível.
*"A luta não terminou. Você tem duas opções: morrer aqui ou aceitar o que você se tornou."*
— O que eu me tornei? — Elias perguntou, quase em um sussurro, ainda tentando processar.
*"Você se tornou um guerreiro das sombras. Agora, lute."*
O mundo à sua volta parecia se fechar, e a chuva continuava a cair, misturando-se à sensação de desespero. As criaturas avançavam, e Elias sabia que não tinha outra escolha. Ele não entendia o que estava acontecendo, mas de uma coisa ele tinha certeza: ele não queria morrer.
Com um grito de pura determinação, Elias pegou o pedaço de ferro com firmeza e avançou em direção às criaturas, sentindo a força que agora percorria suas veias.
A batalha estava apenas começando.
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O som de garras rasgando o ar e golpes secos se misturava com os trovões distantes. Elias lutava como se sua vida dependesse disso, e de fato, dependia. Cada criatura que ele derrubava parecia ser substituída por outra, mais feroz, mais brutal. Mas algo dentro dele havia despertado naquela noite. Ele sentia um poder crescendo, como uma fera adormecida, algo que não sabia que tinha.
Ele não era mais apenas Elias Ferreira, o entregador falido, o homem comum. Algo havia mudado profundamente, e ele sabia que sua vida nunca mais seria a mesma.
Quando a última criatura caiu, o corpo de Elias estava exausto, mas ele ainda estava de pé. Sangue escorria de cortes em seu rosto e braços, mas a adrenalina o mantinha consciente. Ele olhou ao redor, para os corpos das criaturas desfeitas, e tentou entender o que tudo aquilo significava.
Antes que pudesse processar, porém, uma nova presença surgiu na rua.