Que belo "seja bem-vindo ao novo mundo", hein...
Eu não esperava que o primeiro contato com outras pessoas começasse e terminasse daquela forma. Eu não sabia o porquê de eles terem feito aquilo comigo. Estava com medo, amarrado no fundo de um navio como um animal. Toda vez que alguém passava por mim, eles carregavam algum tipo de olhar odioso ou cuspiam palavras maldosas.
Por que isso? Ainda não tinha certeza, mas sabia que estava sendo levado para algum lugar, e não demorou muito tempo para descobrir onde.
E seu nome era Tártaros. Dizia-se que essa prisão-fortaleza havia sido construída com o único propósito de deter monstros, criminosos hediondos e outros vermes que o mundo escondia. Por séculos, ela permaneceu impenetrável e inescapável, tanto uma fortaleza em tempos de guerra quanto um túmulo de onde ninguém jamais conseguiu escapar.
Erguida dentro e sobre um maciço monte de pedra, no topo de uma montanha solitária, podia-se ver um castelo no meio do oceano frio do norte. Tártaros dominava a paisagem ao redor com uma imponência fria e inabalável, e com razão para isso.
A estrutura parecia ter sido esculpida diretamente das entranhas da montanha, suas torres e muralhas quase indistinguíveis das rochas naturais que a cercavam, fruto de um trabalho magnífico engenhoso e é claro longo.
Rodeada por mar revolto de todos os lados e com a única passagem de entrada sendo um uma caverna a nível do mar, sua localização tornava qualquer tentativa de resgate ou invasão praticamente impossível.
Para os ousados piratas ou para os inimigos mais corajosos e pretensiosos do império , a fortaleza não oferecia nenhum valor estratégico nem possuía algum tesouro dentro.
Era apenas um gigantesco bloco de pedras esculpido ao redor de runas antigas, de forma que nenhum tipo de poder conseguisse ser usado naquele lugar. Era um túmulo para os vivos, onde desapareciam aqueles que o mundo havia esquecido e aqueles que nunca o haviam visto.
Assim que desembarcamos do navio, fui transferido para um pequeno barco. Seis homens remavam enquanto quatro guardas me vigiavam de perto. Meus pulsos e tornozelos foram acorrentados com correntes pesadas e "estranhas", e, enquanto isso, eu sentia o frio do metal corroendo qualquer esperança de fuga.
Por que tanto cuidado com alguém como eu? A razão, eu ainda não sabia, mas as correntes pareciam pesar mais com cada remada que nos aproximava da entrada ou era apenas eu deixando o medo se sair melhor ?
O barco finalmente alcançou a entrada de uma caverna escura, localizada logo abaixo das escarpas. A caverna era a única entrada e saída conhecida para Tártaros, um túnel natural que serpenteava através da rocha até os níveis mais profundos e superiores da prisão.
Quando pisamos em terra firme, os guardas me empurraram, forçando-me a seguir o caminho que se estendia na penumbra. Apenas uma única tocha iluminava o corredor estreito, cujas paredes de pedra úmida refletiam o som pesado de nossas botas. O silêncio era absoluto, exceto pelo som do mar batendo nas rochas lá fora.
Conforme subíamos as escadas esculpidas na rocha, cada passo ecoava de forma ameaçadora, como se as próprias paredes estivessem testemunhando minha marcha para qualquer que fosse o meu destino.
Enquanto absorvia o ambiente ao meu redor, a realidade cruel me atingiu: eu provavelmente morreria naquele lugar. A aparente calma que eu demonstrava por fora mal disfarçava o pânico crescendo dentro de mim. Eu estava prestes a ter um colapso nervoso. Suava descontroladamente, meu coração batia acelerado, quase saindo do meu peito, e minha garganta doía, querendo dizer alguma coisa... mas o que diria?
Os guardas que me escoltavam eram figuras sombrias. Eu não conseguia ver nem o rosto nem os olhos deles, que pareciam desaparecer por detrás dos elmos. Um deles, mais impaciente, não hesitava em me empurrar com força sempre que eu reduzia o passo, irritado com o fato de que eu frequentemente desviava meu olhar para as celas abandonadas nas laterais do caminho. Não que eu conseguisse ver alguém lá dentro; as portas eram completamente seladas, com apenas uma pequena portinhola embaixo delas, que parecia poder se abrir e fechar.
As portas dessas celas eram sólidas. Quando não eram grossas portas de madeira revestidas em ferro, eram apenas blocos de pedra selados com uma única entrada, com várias barras de ferro enferrujadas que guardavam o que quer que estivesse do outro lado.
O ar estava pesado com o cheiro de sal, mofo e… morte. A sensação de claustrofobia se intensificava a cada curva do túnel, já que o espaço no corredor parecia diminuir.
Finalmente, após o que pareceu uma eternidade, cruzamos um longo corredor até chegarmos a uma sala espaçosa e relativamente sombria.
No centro dessa sala, um homem estava sentado atrás de uma enorme mesa de madeira, cercado por montanhas de livros e pilhas de documentos e papéis velhos e amarelados.
A luz fraca da tocha lançava sombras grotescas sobre o amontoado de papéis, fazendo a figura do homem parecer quase irreconhecível. Ele levantou a cabeça lentamente, com olhos cansados e inexpressivos, como se eu fosse apenas mais um dentre milhares que haviam passado por ali.
— Então, esse é o nosso monstro...
A voz do homem era fria, desprovida de qualquer compaixão. Ele gesticulou levemente com o queixo enquanto permanecia sentado em sua poltrona de couro desgastado, em um escritório mal iluminado, repleto de pilhas de documentos e livros empoeirados.
A única luz vinha de algumas velas espalhadas aqui e ali, que projetavam sombras longas e distorcidas nas paredes de pedra. O homem deveria estar em seus quarenta anos.
Julguei sua idade pelas rugas na testa e as profundas olheiras que rodeavam seus olhos.
Seu olhar altivo era impenetrável, e seus olhos avaliavam-me como se estivesse observando uma criatura exótica atrás de uma gaiola.
Ele provavelmente estava escrevendo algo antes de eu chegar, pois, assim que entrei, ele imediatamente guardou o pincel. Agora, comigo e os guardas na cela, ele finalmente se levantou da poltrona.
— Eu sou Anor D'leark — disse ele, em um tom elegante e com ligeira emoção, como se o nome significasse algo grandioso e inquestionável. Talvez signifique alguma coisa. Talvez não. Não importa.
— Senhor Anor, sei que deve ouvir isso frequentemente, mas quero que saiba que não sou um monstro — respondi, com minha voz hesitante.
Cada palavra que eu proferia parecia inútil, mas, por mais fútil que fosse, eu precisava tentar. Eu não sabia por que estava ali.
Eu também não sabia o que eles viam em mim. Monstro? Mas por quê? Minha mente, confusa, estava fragmentada, e eu não conseguia encontrar respostas. O que eu fiz? Quem eu era antes daquele navio? As memórias vinham em flashes, mas a maioria era apenas um borrão e não fazia sentido, por mais que eu pensasse sobre aquilo.
Eu não havia percebido que tipo de expressão estava fazendo naquele momento, mas parecia agradável aos olhos daquele homem.
Anor sorriu com desdém, sua voz agora soando zombeteira, como se falasse com uma criança.
— Eu sei perfeitamente que você é inocente, meu rapaz.
Ele riu baixinho, como se estivesse contando uma piada que só ele entendia. — Se fosse um verdadeiro monstro, por que acha que estaria aqui?
As palavras dele flutuavam no ar, carregadas de um significado que eu não conseguia decifrar. Algo no modo como ele falava fazia com que tudo parecesse mais sombrio, mais... tortuoso.
— Se você fosse verdadeiramente um monstro... — continuou Anor, inclinando-se para frente da sua mesa. — Nós não estaríamos tendo essa discussão. Você já estaria apodrecendo debaixo da terra. Aqui, na Prisão de Tártaros, trancamos apenas aqueles que consideramos... inofensivos.
"Inofensivo." A palavra soou como uma piada disfarçada de sentença. Havia algo profundamente errado naquele lugar, algo que eu ainda não conseguia compreender. Anor D'leark se levantou da cadeira e deu a volta na mesa, aproximando-se de mim.
Colocou a mão em meu ombro de forma quase afetuosa, um gesto que parecia destinado a me acalmar, mas que só serviu para aumentar meu desconforto.
— Vamos ver sua cela, garoto — disse ele, como se estivesse conduzindo um hóspede em uma visita.
Descemos uma longa escadaria em espiral, que parecia afundar nas profundezas da terra.
Pensando agora quão grande aquele lugar deveria ser ? bem não importa agora.
O ar se tornava cada vez mais denso e úmido, e o cheiro de mofo impregnava as paredes de pedra.
Os sons de passos ecoavam de forma sinistra à medida que nos aprofundávamos. O silêncio era perturbador, como se a própria prisão quisesse minha alma.
Ao chegarmos ao último nível, fui guiado até uma cela fria e desolada. O espaço era pequeno, com uma cama tosca esculpida diretamente na rocha no canto. Arranhões cobriam as paredes, algumas marcas se assemelhavam a escritas antigas, mas eu não sabia ler, então aquilo pouco importava.
"Mas como eles arranhavam as paredes?" Isso eu não conseguia saber; talvez fosse melhor não pensar muito nisso talvez eu já saiba a resposta e não queira aceitar.
Anor seguiu meu olhar, e um sorriso zombeteiro surgiu em seu rosto enquanto ele apontava para uma das frases gravadas na pedra.
— "Os Deuses irão me salvar", dizem eles. — Ele sorriu de maneira cruel. — As pessoas sempre tentam se apegar a algo, não é? Um sonho, uma esperança, algo que as mantenha vivas por mais um dia.
Ele caminhou lentamente pela cela, observando os arranhões como se fosse um inspetor, antes de virar-se para mim.
— Alguns fazem calendários, contando os dias de suas sentenças, esperando que algum dia possam sair daqui. Mas não se preocupe…
Ele fez uma pausa, o sorriso desaparecendo de seu rosto.
—...Porque nenhum deles jamais cumpriu sua sentença até o fim.
Um frio percorreu minha espinha. Antes que eu pudesse processar o que ele disse, Anor começou a tirar o pesado sobretudo que usava. Ele o dobrou com calma, como se estivesse se preparando para um trabalho rotineiro.
— Mas não fique tão triste. Todo ano, no aniversário do seu encarceramento, nós o visitaremos. É apenas uma surra... para nós. Mas, para você... bem, acho que hoje, farei uma ocasião especial. Afinal, não é todo dia que um "Æthar" vem parar em minha cela.
"Æthar?"
O que era isso? Eu não sabia...Mas de certa forma aquela palavra não me parecia estranha.
Antes que eu pudesse reagir, ele acenou para os guardas que estavam de prontidão. Em questão de segundos, minhas mãos foram presas nas correntes da parede, e fui forçado a me virar de costas para ele. Eles levantaram a parte de trás das minhas roupas, expondo minhas costas.
— Se estiver se perguntando por que seus deuses os deixaram para apodrecer aqui, não se iluda pensando que algo como deuses se importam com pessoas como nós — disse Anor, com uma voz relaxada.
Eu murmurei, minha voz fraca:
— Se os deuses não se importam, por que razão nos enviaram para cá?
Por que eu disse isso, eu não sei. Foi algo que veio do fundo da minha alma e eu apenas respondi.
Será que foi pelo olhar de um daqueles seres havia me dado ? Aquele com os olhos dourados ?...
Sou realmente um miserável por pensar dessa forma, não sou?
Anor parou por um momento, surpreso, mas logo sua expressão de surpresa se transformou em um sorriso cruel.
— Há há há... Esse é o espírito. Acho que gostei de você. Vamos fazer um trato, então. Eu o chicoteio, e você o chama. E, quando ele aparecer, eu paro. Que tal? Parece justo, não?
Com um olhar perverso, ele desferiu o primeiro golpe.
O chicote rasgou o ar antes de se cravar nas minhas costas. Um choque gelado atravessou meu corpo, fazendo minhas pernas tremerem. O som da corrente chacoalhando contra a parede ecoava junto aos meus gritos sufocados. O metal frio das algemas apertava meus pulsos, quase tão implacável quanto a dor.
— Grrr...
Eu segurei o primeiro grito, não porque eu não quisesse gritar, mas porque a dor era tão forte que me paralisava.
— Ghaaa!!!... — gritei, incapaz de conter o som.
Golpe após golpe, meus gritos ecoaram por toda a prisão, até que minha voz se extinguiu no ar frio daquela noite.
Foi naquele momento que comecei a pensar que, talvez, a morte não fosse tão ruim quanto parecia.