O vilarejo estava tranquilo na manhã em que Kieran finalmente tinha acordado. Ele estava deitado em uma cama simples, suas roupas estavam limpas, mas o corpo ainda estava dolorido pelos ferimentos internos. A luz suave da manhã filtrava-se pelas janelas, e o som de passos do lado de fora ecoava pelas paredes de madeira da cabana onde ele havia sido tratado.
Kieran tentou se levantar, mas uma pontada de dor percorreu seu corpo, forçando-o a recuar e respirar fundo. Seus músculos ainda estavam fracos, e as feridas, embora curadas por fora, deixaram danos internos que não iriam desaparecer tão cedo. Ele estava longe de estar em plena forma, e isso o frustrava. Para alguém que sempre lutou pela própria sobrevivência, estar incapacitado desse jeito era uma tortura mental.
Logo, Leonhardt entrou na sala, visivelmente desgastado, mas mantendo a compostura. Ele carregava um prato com comida simples e uma expressão indecifrável. Kieran observou o jovem caçador se aproximar e não pôde deixar de notar o peso nos ombros de Leonhardt, como se algo o estivesse sufocando por dentro.
"Você está acordado," Leonhardt comentou, colocando o prato na mesa ao lado da cama. "Achei que fosse dormir por mais uma semana."
Kieran soltou um riso curto, seguido de uma careta de dor.
"Eu já dormi o bastante. Mas parece que meu corpo tem outras ideias," ele respondeu com amargura. "Obrigado por me trazer de volta, mas eu ainda sinto como se tivesse sido atropelado por uma horda de monstros."
Leonhardt deu de ombros.
"Você devia se acostumar. Não pode ser caçador sem tomar algumas surras de vez em quando."
Kieran olhou para ele, avaliando as palavras. A conversa simples entre os dois logo mudaria de tom, e eles sabiam disso.
Depois de alguns momentos de silêncio, Kieran se sentou mais ereto, ignorando a dor que ainda persistia.
"Então... me diga, Leonhardt," Kieran começou, com o olhar fixo no jovem caçador. "O que significa ser um caçador para você? Parece que, para muitos, é só uma questão de glória, de quantos monstros podem abater e de quantos títulos podem carregar."
Leonhardt ergueu uma sobrancelha, sentindo a provocação nas palavras de Kieran.
"É isso que você acha?" ele respondeu com um tom desafiador. "Eu caço monstros para proteger as pessoas. Não tem nada a ver com glória... Bem, talvez um pouco. Mas, no fim das contas, alguém precisa fazer esse trabalho."
Kieran riu, um riso seco e cínico.
"Proteger pessoas? É isso que você acha que está fazendo? Cada caçador que conheci estava mais preocupado em se provar para os outros, em garantir seu lugar em algum pódio imaginário." Kieran fez uma pausa, a dor em sua voz não sendo apenas física, mas emocional. "Eu perdi amigos e família... e vi monstros mais humanos do que alguns caçadores que encontrei."
Leonhardt cerrou os punhos, o rosto endurecendo.
"E o que você sabe sobre ser um caçador?" ele retrucou, sua voz ficando mais firme. "Você não tem ideia do que é crescer com a expectativa de ser o melhor, de ter que ser perfeito em tudo porque... porque seu nome carrega um peso que você nunca pediu."
Kieran inclinou a cabeça, percebendo a tensão que crescia dentro de Leonhardt.
"Seu nome... ou o nome da sua família?" ele perguntou com cautela.
Leonhardt bufou, virando-se para o outro lado da sala, sua frustração evidente. O legado dos Valerius, o peso de ser o filho de Caelum, o caçador mais respeitado de todos, estava começando a esmagá-lo.
"Você acha que eu escolhi ser o 'Leão da Luz do Dia'?" Leonhardt disse, sua voz baixa, mas cheia de raiva contida. "Acha que eu gosto de ser conhecido por um título que nem fui eu que conquistei de verdade? Meu pai... ele me treinou para ser o caçador perfeito, o herdeiro da glória dos Valerius. Mas e eu? Onde fica o Leonhardt nisso tudo?"
Kieran o observava em silêncio, entendendo mais do que queria admitir. Ele também carregava um peso que não escolheu, um legado que ele ainda não compreendia completamente. Mas o que Leonhardt estava enfrentando era diferente — era uma batalha interna, uma luta para se provar digno de si mesmo, não do nome que herdou.
"Então por que você faz isso?" Kieran perguntou, sua voz agora mais suave. "Se não é por você, por que continuar?"
Leonhardt olhou para Kieran, sua expressão confusa, como se não tivesse uma resposta clara.
"Porque... é o que eu sei fazer," ele disse, sua voz perdendo a firmeza. "Eu fui criado para ser o melhor. Meu pai me disse que eu tinha que ser o mais forte, o mais temido... o caçador mais poderoso que já existiu. Eu... eu não sei ser outra coisa."
O silêncio entre eles cresceu. Kieran sabia o que era ser moldado por forças externas, mas também sabia que, em algum ponto, você precisa fazer uma escolha. Ele encarou Leonhardt com um olhar que misturava compaixão e severidade.
"Você precisa descobrir quem é Leonhardt Valerius... não o caçador, mas o homem. Porque, no fim, títulos não vão te dar paz. Eles só vão te destruir."
Leonhardt ficou em silêncio, as palavras de Kieran penetrando fundo em sua mente. Ele sempre acreditou que precisava carregar o legado de sua família, mas agora, pela primeira vez, ele questionava se isso era realmente o que ele queria.
Com o tempo, o vilarejo ao redor de Kieran começava a se agitar. As cicatrizes da batalha recente ainda eram visíveis nas casas destruídas e nos rostos dos aldeões, mas eles trabalhavam com determinação para reconstruir o que haviam perdido. Apesar de ferido e ainda debilitado, Kieran observava tudo ao seu redor enquanto o Bestiário começava a retornar.
O livro mágico, que agora parecia flutuar em sua mente, falava diretamente com ele, como uma presença invisível. As páginas se folheavam sozinhas, revelando palavras e símbolos estranhos que Kieran ainda não compreendia completamente.
"Eu suguei as almas dos golens," disse uma voz firme e sobrenatural. "Se você deseja se tornar mais forte, evitar acidentes como esse aconteçerem novamente, você deve continuar a fazer o mesmo... absorva as almas dos monstros e complete as páginas que faltam."
Kieran olhou ao redor, percebendo que ninguém mais ouvia a voz, apenas ele. O Bestiário estava pressionando para que ele aceitasse esse poder, para que abraçasse seu destino. Mas a ideia de absorver almas não o deixava confortável. Havia algo sombrio e perigoso nessa perspectiva, como se cada alma sugada o afastasse um pouco mais da humanidade que ainda lhe restava.
Ele fechou os olhos, tentando ignorar a tentação. Não era hora para isso. Pelo menos, não agora.
Do lado de fora da casa, Leonhardt trabalhava incansavelmente ao lado dos aldeões. A tensão em seus ombros e a maneira como evitava o contato visual revelavam o peso da culpa que o jovem caçador carregava. Ele havia destruído casas e quase matado Layla, uma garotinha que mal tinha idade para compreender o que estava acontecendo. Sua arrogância, cegada pelo desejo de ser o mais forte, o fez causar mais destruição do que salvar vidas.
Ele ergueu uma viga de madeira com facilidade, os músculos tensos, mas a mente muito mais carregada do que seu corpo. Cada martelada que ele dava na madeira era um lembrete da sua falha. Ele tentava se redimir ajudando o vilarejo, mas, no fundo, sabia que isso não bastava.
"Ei, você já fez o suficiente por hoje," disse um dos aldeões, observando o trabalho incansável de Leonhardt. "Por que não descansa um pouco?"
Leonhardt balançou a cabeça, sem parar o que fazia.
"Ainda há muito o que consertar," ele respondeu, evitando qualquer pausa que o fizesse pensar mais sobre o que havia feito.
Os olhos de Leonhardt se moviam para a casa onde Kieran estava. Ele sabia que, de alguma forma, aquele guerreiro misterioso o via de forma diferente, enxergava suas falhas e a falsidade por trás de sua busca por glória. Kieran não precisava dizer nada, o peso das palavras e dos atos falava por si só.
"Eu... quase a matei," murmurou Leonhardt para si mesmo, enquanto o suor escorria por seu rosto. "Por quê? Por que eu sempre falho quando mais importa?"
Enquanto Leonhardt lidava com sua culpa do lado de fora, Kieran ainda estava no interior, enfrentando um dilema diferente. O Bestiário continuava a falar, persistente e implacável.
"Você não pode fugir disso. Se quiser sobreviver, se quiser proteger aqueles ao seu redor, precisa de poder. Poder que só pode ser alcançado ao completar as páginas. As almas dos monstros são a chave para se tornar aquilo que está destinado a ser."
Kieran abriu os olhos, encarando o teto de madeira. Ele sabia que o caminho à frente era perigoso, tanto física quanto emocionalmente. Mas, mais do que isso, ele sabia que seu destino não seria fácil. O Bestiário oferecia poder, mas a que custo?
Ao longe, ele ouvia o som de marteladas. Ele sabia que, assim como Leonhardt tentava lidar com sua culpa através de ações, ele próprio teria que tomar decisões difíceis em breve. A questão não era se ele deveria se tornar mais forte, mas até onde estava disposto a ir para alcançar esse poder.
Com um suspiro pesado, Kieran levantou-se da cama, apesar da dor ainda persistente. Ele sabia que a jornada de ambos — dele e de Leonhardt — estava apenas começando. E o verdadeiro desafio não seria apenas enfrentar monstros externos, mas também aqueles que existiam dentro deles.
O peso do destino pressionava seus ombros, mas ele ainda não estava pronto para sucumbir.
Enquanto Kieran caminhava lentamente em direção à porta, ele olhou para o horizonte, onde as ruínas do vilarejo começavam a tomar forma novamente. Lá fora, entre a poeira e os sons de reconstrução, ele viu Leonhardt, sozinho em sua própria batalha interna.
A escolha de Kieran estava clara, mas as palavras do Bestiário ecoavam em sua mente como um lembrete sombrio:
"O poder está à sua disposição. Tudo o que precisa fazer é aceitá-lo."
O vilarejo estava renascendo, mas tanto Kieran quanto Leonhardt sabiam que, por dentro, suas próprias batalhas ainda estavam longe de terminar.
Dóris e seu pai, Hyir, caminhando pela trilha que leva à cidade. A atmosfera é tranquila, com a floresta ao redor proporcionando um contraste ao peso que Dóris sente desde o encontro com o idoso.
Hyir pergunta casualmente sobre como ela está, mas Dóris responde de forma distraída, seus pensamentos dominados pelo idoso e as palavras enigmáticas que ele deixou. Ela considera contar ao pai sobre o encontro, mas hesita, sabendo que ele talvez não compreenda.
Enquanto caminha, Dóris se recorda das palavras do idoso sobre Hati e Sköll, sentindo uma conexão crescente com algo maior. Ela não entende completamente, mas algo dentro dela mudou. Seus sentidos parecem mais aguçados, e ela começa a perceber pequenas mudanças ao seu redor – o vento, os sons da floresta – tudo parece mais intenso.
Ao chegarem à cidade, Dóris observa o movimento dos moradores e se sente desconectada de tudo. A cena descreve a cidade como um lugar familiar, mas que agora parece estranho para ela. Enquanto Hyir vai tratar de negócios com comerciantes locais, Dóris fica sozinha, perdida em pensamentos.
Enquanto caminha pela cidade, Dóris avista o idoso novamente, desta vez à distância, sentado em um banco de pedra, observando-a. Ela sente um arrepio, e suas palavras ecoam em sua mente. O idoso faz um sinal sutil, e ela sente que deve ir até ele.
Quando Dóris se aproxima, o idoso a cumprimenta com um sorriso enigmático. Ele menciona que sabia que ela o procuraria, dizendo que as vozes de Hati e Sköll não são fáceis de ignorar. Gylfaginning revela mais detalhes sobre os deuses-lobos, explicando que eles representam a dualidade do caos e da ordem, da perseguição eterna pelo poder e pela harmonia.
"Você já pode sentir, não é? O mundo não é mais o mesmo para você. Tudo parece diferente agora, mais vívido. Hati e Sköll escolheram você, e com isso vem grande poder... e responsabilidade."
Dóris se sente intrigada, mas também assustada. Ela pergunta por que foi escolhida, e o idoso responde que o poder estava adormecido nela desde o nascimento, esperando o momento certo para ser despertado.
O idoso se levanta e, antes de partir, dá a ela um conselho enigmático: "Nem todo poder deve ser usado de imediato. Hati e Sköll estão em você, mas sua força pode ser tanto uma bênção quanto uma maldição. A escolha de como usá-lo é sua."
Após o encontro com o idoso, Dóris se sente inquieta. Ela decide se afastar do movimento da cidade e encontra um lugar tranquilo para refletir. Enquanto está sozinha, ela fecha os olhos e tenta sentir o poder que Gylfaginning mencionou.
Nesse momento, Dóris começa a sentir uma presença dentro de si, como se as essências de Hati e Sköll estivessem pulsando em suas veias. Seu coração acelera, e ela abre os olhos de repente, percebendo que pode ouvir sons que antes passavam despercebidos – o farfalhar distante de folhas, o bater de asas de pássaros a quilômetros de distância. A jovem sentia que seus sentidos estavam mais aguçados, e ela sabia que esse era apenas o começo.
De volta à estalagem, Dóris mal conseguia prestar atenção ao que seu pai dizia. Hyir, preocupado, notou a mudança no comportamento da filha, mas não pressionou, acreditando que ela ainda estava abalada pela longa viagem.
Dóris, por outro lado, estava completamente consumida pelos pensamentos sobre seu futuro. As palavras de Gylfaginning ecoavam em sua mente: "Você está ligada a algo muito maior."
Ela sabia que não poderia continuar sua vida normalmente. O poder de Hati e Sköll a chamava, e ela sentia que logo seria testada de maneiras que não estava preparada.
Enquanto Dóris lidava com suas próprias questões, a narrativa volta para Leonhardt. Ele estava do lado de fora, ajudando os aldeões a reconstruir as casas destruídas durante o ataque dos golens. Seus movimentos eram firmes e decididos, mas sua mente estava longe dali. Ele ainda sentia o peso de suas ações impulsivas, especialmente por quase ter matado a pequena Layla durante a batalha.
Cada martelada era uma tentativa de silenciar as palavras de seu pai, Caelum Valerius, que ecoavam em sua cabeça: "Você deve ser o mais forte, o mais temido." Leonhardt não queria ser apenas o herdeiro da tradição familiar. Ele desejava ser reconhecido por quem ele era, não pelo legado que carregava.
"Eu não quero ser apenas o herdeiro da família Valerius. Quero ser reconhecido pelo meu próprio poder, pelas minhas próprias conquistas. Não pelo sangue que corre em minhas veias."
Do lado de fora, Leonhardt continuava ajudando os aldeões a reconstruir as casas, tentando compensar sua culpa. Ele acreditava que, ao ajudar, poderia de alguma forma aliviar o peso de sua ignorância e impulsividade. Ainda assim, o vazio permanecia.
O sol começava a se pôr quando ele olhou para o céu, refletindo sobre suas ações. Ele sabia que não poderia continuar vivendo à sombra de seu pai e da responsabilidade de ser o maior caçador. Ele precisava encontrar sua própria identidade, sua própria redenção.
O capítulo termina com Leonhardt e Dóris, ambos lutando com seus próprios dilemas internos. O destino de ambos está entrelaçado de maneiras que eles ainda não compreendem completamente, mas cada um deles está prestes a embarcar em uma jornada que mudará suas vidas para sempre.