Disparei para a primeira ruela que avistei, meus sapatos quase sem sola deslizando na fina camada de neve que cobria o chão. Ouvi o som de botas pesadas batendo atrás de mim quando tomei a curva para uma segunda ruela que se ramificava da primeira.
Minha respiração queimava em meu peito enquanto procurava um lugar para me esconder, mas aquele trecho da cidade era desconhecido para mim. Não havia montes de lixo onde pudesse me encolher, nem prédios dilapidados para escalar. O cascalho congelado e pontiagudo rasgava a sola fina de um dos meus sapatos, e a dor penetrava meu pé enquanto eu lutava para continuar correndo.
Quando dobrei a terceira esquina, deparei-me com um beco sem saída. Já havia escalado metade de uma parede quando senti uma mão firmemente agarrar meu tornozelo e me puxar para baixo.
Bati a cabeça nas pedras do calçamento, e o mundo girou vertiginosamente enquanto o guarda me erguia do chão, segurando-me pelo pulso e pelo cabelo.
— Garoto esperto, não é? — ofegou ele, o hálito quente em meu rosto. O homem exalava o odor de couro e suor. — Já devia saber que não se deve fugir — acrescentou, sacudindo-me com raiva e puxando meu cabelo. Soltei um grito ao sentir a viela balançar ao meu redor.
Ele me prensou contra a parede com brutalidade.
— Você deveria saber que não deve vir à Serrania — continuou, sacudindo-me ainda mais. — Você é burro, menino?
— Não — murmurei, atordoado, tateando a parede fria com a mão livre. Minha resposta parecia enfurecê-lo ainda mais.
— Não? — repetiu ele, cuspindo a palavra. — Você me deixou em uma encrenca, guri. Posso ser denunciado. Se você não é burro, deve estar precisando de uma lição.
O guarda me girou e me lançou ao chão. Escorreguei na neve engordurada do beco, bati com o cotovelo e senti meu braço dormente. A mão que carregava um mês de comida, cobertores quentes e sapatos secos se abriu. Uma coisa preciosa voou para longe e caiu sem emitir um som quando tocou o chão.
Mal consegui perceber. O ar zumbiu antes que o porrete atingisse minha perna.
— Não venha para a Serrania, entendeu? — rosnou o guarda, o porrete batendo novamente, agora nas omoplatas. — Tudo que fica além da Rua Fellow é proibido para vocês, filhinhos-da-puta. Entendeu?
Ele me deu uma bofetada no rosto, e senti o gosto de sangue quando minha cabeça roçou nas pedras cobertas de neve.
Enrosquei-me feito uma bola, enquanto ele sibilava:
— Eu trabalho na Rua da Moeda e no Mercado da Moeda. Portanto, nunca mais volte aqui — disse, pontuando cada palavra com uma porretada. — Entendeu?
Fiquei caído, trêmulo, na neve revolvida, torcendo para que aquilo tivesse acabado. Torcendo para que ele fosse embora.
— Entendeu? — repetiu o guarda. Deu-me um pontapé na barriga, e senti algo romper-se dentro de mim.
Gritei e devo ter balbuciado algo. Ele continuou a me chutar até que eu não me levantei, então se afastou.
Acho que desfaleci, ou fiquei aturdido. Quando recobrei os sentidos, a escuridão começava a se instalar. Eu estava gelado até a medula. Rastejei pela neve lamacenta e pelo lixo molhado, procurando o lumen de prata com dedos tão dormentes de frio que mal conseguiam se mover.
Um dos meus olhos estava inchado e fechado, e eu sentia o gosto de sangue, mas continuei a buscar até a última réstia de luz vespertina desaparecer. Mesmo depois que o beco ficou negro como piche, continuei a revirar a neve com as mãos, embora soubesse, no fundo do coração, que meus dedos estavam dormentes demais para sentir a moeda, mesmo que eu esbarrasse nela.
Usei a parede para me erguer e comecei a andar. Meu pé ferido tornava meu progresso lento. A dor dava pontadas a cada passo, e eu tentava usar a parede como apoio, para aliviar um pouco do peso sobre ele.
Dirigi-me em direção à Beira-Mar, a parte da cidade que mais se parecia com um lar para mim. Meu pé também ficou dormente e rígido de frio e, embora isso inquietasse minha mente racional, minha parte prática estava aliviada por ter menos uma parte do corpo doendo.
Seriam quilômetros até meu esconderijo secreto, e meu progresso hesitante era agonizantemente lento. Em algum ponto do caminho, devo ter caído. Não me lembro como, mas recordo claramente de ter me deitado na neve e percebido o quão encantadoramente confortável ela era. O sono começou a me envolver como um cobertor pesado; como a morte.
Fechei os olhos. Lembro-me do silêncio profundo da rua deserta ao meu redor. Eu estava entorpecido e cansado demais para sentir medo. No meu delírio, imaginei a morte como um grande pássaro com asas de fogo e sombra, pairando lá no alto, observando pacientemente, esperando por mim...
Mas sabia que não seria assim. Já havia morrido uma vez, e em meu âmago tinha certeza de que não seria uma experiência nada agradável.
Adormeci, e o grande pássaro estendeu suas asas ardentes sobre mim. Senti um calor delicioso, mas logo as garras começaram a me rasgar a pele. Este sim era o sentimento que eu me lembrara de outra vida...
Mas não. Era apenas a dor das minhas costelas partidas quando alguém me virou de barriga para cima.
Com a visão turva, abri um olho e vi um demônio parado ao meu lado. Em meu estado confuso, ver o homem mascarado como demônio me fez despertar de susto, e o calor sedutor que eu sentira um minuto antes se dissipou, deixando meu corpo mole e pesado como chumbo.
— Olhe! Há um garoto caído aqui na neve! — disse o demônio, levantando-me.
Agora desperto, percebi que a máscara dele era totalmente negra. Era Enkanis, o Senhor dos Demônios. Ele me ergueu sobre minhas pernas bambas e começou a sacudir a neve que me cobria.
Pelo olho bom, vi uma figura com máscara verde-clara parada nas proximidades.
— Vamos... — disse o outro demônio, em tom urgente, e sua voz feminina soou oca por trás da fileira de dentes pontiagudos.
Enkanis a ignorou.
— Você está bem?
Não consegui pensar em uma resposta, então me concentrei em manter o equilíbrio enquanto o homem continuava a sacudir a neve com a manga de sua capa negra. Ouvi o som de trombetas distantes.
O outro demônio olhou nervosamente para a rua.
— Se não formos logo, ficaremos enterrados na neve até as canelas — sibilou a mulher, nervosa.
Enkanis tirou a neve do meu cabelo branco encardido com seus dedos enluvados de preto, então parou e se inclinou para olhar meu rosto mais de perto. Sua máscara negra destacou-se estranhamente em minha visão embaçada.
— Pelo corpo de enegrecido Deus, Holy, alguém espancou esse menino. E no Dia do Solstício, ainda por cima.
— Guarda — murmurei, com uma voz rouca, sentindo o gosto de sangue ao pronunciar a palavra.
— Você está congelando — comentou Enkanis, começando a friccionar meus braços e pernas para tentar fazer o sangue voltar a fluir. — Você terá que vir conosco — disse ele. As trombetas tornaram a soar mais perto, misturadas com o burburinho de uma multidão.
— Não seja idiota — disse o outro demônio. — Ele não está em condições de correr pela cidade.
— Ele não está em condições de ficar aqui — rebateu Enkanis.
Continuou a massagear vigorosamente meus braços e pernas. Um pouco da sensação foi retornando devagar, um calor que formigava e espetava, mais parecido com um arremedo lastimável do calor que eu sentira um minuto antes, quando começava a adormecer. Eu sentia fisgadas de dor a cada vez que ele friccionava um machucado, mas meu corpo estava cansado demais para se encolher.
A demônia de máscara verde se aproximou e pôs a mão no ombro de Enkanis.
— Agora precisamos ir, Garret! Outra pessoa cuidará dele. — Tentou puxar o homem consigo, mas sem sucesso. — Se nos encontrarem aqui com ele, acharão que fomos nós.
O homem com a máscara negra balbuciou algum palavrão que eu não entendi, balançou a cabeça e começou a procurar algo sob a capa.
— Não torne a se deitar — disse-me, em tom urgente. — Encontre um lugar fechado, onde possa se aquecer.
O som da multidão estava próximo o suficiente para ouvir vozes isoladas, misturadas com o barulho de cascos de cavalos e o estalar de rodas de madeira. O homem da máscara negra estendeu a mão.
Levei um momento para identificar o que ele segurava.
Um crimo de prata, mais grosso e mais pesado que o lumen que eu havia perdido. Era tanto dinheiro que eu mal podia conceber.
— Vamos, pegue.
Ele era um demônio de escuridão: capa negra com capuz, máscara negra, luvas negras. Enkanis parou diante de mim, estendendo um pedaço de prata que refletia o brilho do luar, lembrando-me da cena em que Tarzul vende sua alma em "Daeonica".
Peguei o crimo, mas estava com a mão tão dormente que não pude senti-lo. Precisei olhar para ter certeza de que meus dedos o seguravam. Imaginei sentir o calor se espalhando por meu braço, e por um momento, me senti mais forte. Sorri para o homem da máscara negra.
— Fique com as minhas luvas também — disse ele, tirando-as e colocando-as sobre meu peito.
Então a mulher de máscara verde puxou meu benfeitor antes que eu pudesse expressar minha gratidão. Observei-os se afastarem, suas capas escuras transformando-os em sombras que recuavam nas ruas enluaradas de Notrean.