Chereads / A Crônica do Contador de Histórias / Chapter 28 - XXVII. RODA PT.2

Chapter 28 - XXVII. RODA PT.2

Um a um, eles cruzaram a linha, e, um a um, Ardonai os atingiu com o martelo. No entanto, após cada homem ou mulher cair ao chão, Ardonai se ajoelhava ao lado deles, murmurava-lhes palavras, dava-lhes um novo nome e aliviava parte de sua dor.

Muitos desses homens e mulheres abrigavam demônios ocultos em seu interior, que, ao sentirem o impacto do martelo, fugiam em desespero, soltando gritos estridentes. Com essas pessoas, Ardonai conversava um pouco mais, mas ao final, sempre as abraçava, e todas, sem exceção, sentiam-se gratas. Algumas até dançavam de alegria, libertas das sombras terríveis que antes habitavam seus corações.

No final, sete permaneceram do outro lado da linha. Ardonai lhes perguntou três vezes se desejavam atravessá-la, e três vezes eles recusaram. Após a terceira negativa, Ardonai saltou sobre a linha e desferiu em cada um deles um golpe poderoso, que os derrubou ao chão.

Mas nem todos eram realmente homens. Quando Ardonai golpeou o quarto, o som que ecoou foi como o de ferro esfriando, acompanhado pelo cheiro forte de couro queimado. Aquele não era um homem, mas um demônio escondido na pele de um humano. Quando a verdade foi revelada, Ardonai o agarrou e, com uma força avassaladora, partiu o demônio em suas mãos, amaldiçoando seu nome e banindo-o de volta às trevas eternas, morada daqueles de sua espécie.

Os três restantes permitiram que Ardonai os derrubasse. Nenhum deles era um demônio, embora alguns dos que caíram tivessem demônios fugindo de seus corpos. Ao terminar, Ardonai não se dirigiu aos seis que se recusaram a cruzar a linha, nem os confortou para aliviar a dor de suas feridas.

No dia seguinte, Ardonai partiu para completar sua missão. Viajou de cidade em cidade, oferecendo a cada vilarejo a mesma escolha que havia oferecido antes. Os resultados eram sempre os mesmos: alguns cruzavam a linha, outros permaneciam, e havia aqueles que não eram homens, mas demônios, e estes Ardonai destruía sem hesitação.

Mas houve um demônio que escapou de Ardonai. Enkanis, cujo rosto estava sempre envolto em sombras. Enkanis, cuja voz cortava como uma lâmina a mente dos homens.

Sempre que Ardonai parava para oferecer aos homens a escolha do caminho, Enkanis já havia passado por lá, deixando um rastro de destruição: colheitas murchavam, poços eram envenenados, e os homens eram instigados a se voltarem uns contra os outros, cometendo assassinatos e roubando crianças de suas camas durante a noite.

Após sete anos de busca incessante, os pés de Ardonai o haviam levado por todo o mundo. Ele havia expulsado quase todos os demônios que atormentavam a terra. Todos, exceto um. Enkanis continuava livre, causando o caos por onde passava, como se fosse mil demônios em um só.

Ardonai o perseguia, e Enkanis fugia. Primeiro, Ardonai estava a dias de distância, depois a dois, e finalmente a meio dia. Por fim, chegou tão perto que podia sentir o frio deixado por sua passagem e ver os rastros gelados onde ele colocara as mãos e os pés, cobertos por uma camada negra de gelo.

Sabendo-se caçado, Enkanis chegou a uma grande cidade. O Senhor dos Demônios usou todo o seu poder, e a cidade foi devastada. Enkanis fez isso na esperança de que Ardonai demorasse a alcançá-lo, mas o Deus Andarilho apenas parou para designar sacerdotes que cuidassem do povo na cidade arruinada.

Durante seis dias, Enkanis continuou sua fuga, e seis grandes cidades foram destruídas. No sétimo dia, porém, Ardonai chegou antes que ele pudesse utilizar seu poder, e a sétima cidade foi salva. Por isso, o número 7 é considerado sagrado e é celebrado no raen.

Enkanis, sentindo-se pressionado, dedicou todo o seu ser à fuga. Mas, no oitavo dia, Adornai não parou para dormir nem para comer. E assim, ao final do dia-da-cega, conseguiu alcançá-lo. Saltou sobre o demônio e o golpeou com seu martelo de forja. Enkanis desabou como uma pedra, mas o martelo de Adornai se partiu e ficou caído na poeira da estrada.

Ardonai ergueu o corpo inerte do demônio e o carregou durante toda a longa noite. Na manhã do nono dia, chegou à cidade de Aturia. Quando os homens viram Ardonai trazendo o corpo do demônio, acreditaram que Enkanis havia sido derrotado. Mas Ardonai sabia que não era tão simples. Nenhuma lâmina ou golpe comum poderia matar Enkanis. Nenhuma cela poderia mantê-lo preso com segurança.

Então, Ardonai levou Enkanis à forja e pediu ferro. O povo trouxe todo o ferro que possuíam. Mesmo sem ter descansado ou se alimentado, Ardonai trabalhou durante todo o nono dia. Com dez homens acionando os foles, ele forjou uma grande roda de ferro.

Ardonai trabalhou a noite inteira, e, ao toque da primeira luz da manhã do décimo dia, martelou a roda pela última vez, finalizando-a. A roda, toda feita de ferro negro, era mais alta que um homem. Tinha seis raios, cada um mais grosso que o cabo de um martelo, e seu aro tinha a largura de uma mão. Pesava o equivalente a quarenta homens e era gélida ao toque. O som do seu nome era terrível, e ninguém ousava pronunciá-lo.

Ardonai reuniu o povo ao seu redor e escolheu um sacerdote dentre eles. Depois, ordenou que cavassem um fosso enorme no centro da cidade, com quase cinco metros de largura e seis de profundidade.

Ao nascer do sol, ele deitou o corpo do demônio sobre a roda. Ao primeiro contato com o ferro, Enkanis começou a se agitar em seu sono, mas Ardonai o acorrentou à roda com firmeza, martelando os elos e fundindo-os com uma força maior do que qualquer cadeado.

Ardonai deu um passo atrás e, com um estremecer perturbado, Enkanis começou a se mover, como se despertasse de um pesadelo. O demônio se contorceu nas correntes, arqueando o corpo enquanto lutava contra o aço que o prendia.

Onde a roda tocava sua pele, era como se facas e agulhas penetrassem sua carne, uma dor fria e cortante como a de uma geada impiedosa, ou a picada de mil insetos. Enkanis se debatia, urrando, enquanto o ferro queimava, picava e gelava sua alma.

Para Ardonai, os gritos do demônio eram uma melodia doce. Exausto, ele se deitou ao lado da roda e mergulhou num sono profundo.

Quando despertou, o crepúsculo já tingia o décimo dia. Enkanis ainda estava preso à roda, mas seus urros haviam cessado; ele já não se debatia como um animal enjaulado. Com grande esforço, Ardonai ergueu a borda da roda, apoiando-a contra uma árvore próxima. Enkanis o amaldiçoou em línguas esquecidas, arranhando e mordendo como uma fera desesperada.

— Tu mesmo te impuseste este destino — disse Ardonai com uma calma inabalável.

Naquela noite, a cidade celebrou.

Ardonai ordenou que cortassem uma dúzia de sempre-verdes para alimentar a fogueira que ardia no fundo da grande cova escavada. O povo cantou e dançou ao redor das chamas durante toda a noite, pois sabiam que o último e mais temível demônio havia finalmente sido capturado. Enquanto isso, Enkanis permanecia pendurado na roda, imóvel como uma serpente à espreita, observando a multidão com olhos sombrios.

Ao amanhecer do décimo primeiro dia, Ardonai falou com Enkanis pela última vez. O demônio estava enfraquecido, sua pele macilenta, os ossos pressionando contra a carne. Mas o poder ainda o envolvia, um manto negro que ocultava seu rosto nas sombras.

— Enkanis — chamou Ardonai. — Esta é tua última chance de falar. Faça-o, pois sei que ainda tens poder para isso.

— Senhor Ardonai, não sou Enkanis — respondeu o demônio, sua voz repentinamente carregada de tristeza, um lamento que tocou o coração dos presentes. Mas, logo depois, um som metálico ecoou, e a roda vibrou como um sino. Enkanis arqueou-se de dor diante do som, e então seu corpo pendeu inerte, os pulsos frouxos, enquanto o eco da roda se apagava.

— Não tentes me enganar, criatura das trevas. Não mintas — disse Ardonai, seus olhos tão frios e implacáveis quanto o ferro que prendia o demônio.

— E o que queres então? — sibilou Enkanis, sua voz como pedras raspando contra pedras. — Sejas tu despedaçado, o que desejas de mim?

— Tua estrada é curta, Enkanis, mas ainda podes escolher um lado para seguir.

Enkanis riu, um som amargo e cruel.

— Tu me ofereces a mesma escolha que darias ao gado? Pois bem, se é assim, eu aceito teu caminho, eu me arrepe...

Antes que terminasse, a roda voltou a reverberar, um som profundo e sombrio como o de um sino mortal. Enkanis lançou seu corpo contra as correntes e, mais uma vez, seu grito abalou a terra, estilhaçando pedras num raio de quilômetros.

Quando o som cessou, Enkanis ficou pendurado, trêmulo e arfante.

— Eu te avisei para não mentir, Enkanis — disse Ardonai, sua voz implacável.

— Então que seja o meu caminho! — bradou o demônio, com ódio. — Não me arrependo! Se pudesse escolher novamente, só teria corrido mais rápido. Teu povo é o alimento da minha raça, gado para ser devorado! Se me desses meia hora, eu faria coisas que deixariam esses miseráveis boquiabertos, loucos de terror. Beberia o sangue de seus filhos e me banharia nas lágrimas de suas mulheres!

Antes que pudesse continuar, suas palavras foram cortadas pelo esforço extenuante de se debater contra as correntes.

— Que assim seja — declarou Ardonai, aproximando-se da roda.

Por um instante, pareceu que ele abraçaria Enkanis, mas, em vez disso, suas mãos agarraram os aros de ferro, e com força sobre-humana ele ergueu a roda acima da cabeça. Com passos firmes, carregou-a até a cova e a lançou nas brasas ardentes.

Durante a noite, a fogueira fora alimentada por sempre-verdes, e agora, no alvorecer, as chamas haviam cedido lugar a uma cama de brasas incandescentes. A roda caiu com um estrondo, espalhando faíscas e cinzas ao aterrissar. Enkanis, suspenso pela roda, foi envolto pelo calor infernal, sua roupa se carbonizando lentamente.

Mesmo sem tocar diretamente o fogo, o calor era tão intenso que a carne do demônio começou a escurecer, seus gritos ecoando enquanto sua pele fumegava. Mas, apesar das chamas que o consumiam, seu rosto permaneceu oculto na sombra, como uma chama negra que se erguia de sua alma.

Por um longo momento, tudo ficou em silêncio. Então, com um esforço tremendo, Enkanis forçou as correntes que o prendiam, tentando libertar-se. Um som agudo, como o de um sino se partindo, ecoou, e um de seus braços se soltou. As correntes incandescentes voaram, e o som foi seguido pela gargalhada sombria de Enkanis.

Num instante, sua outra mão se libertou, mas antes que pudesse agir, Ardonai saltou para dentro da cova, aterrissando com tanta força que o ferro vibrou. Ele agarrou as mãos do demônio e as pressionou novamente contra a roda.

Enkanis gritou, tomado pela fúria e pelo desespero, pois, embora visse que Ardonai estava em chamas, percebeu que a força do deus superava a das correntes que ele havia quebrado.

— Tolo! — exclamou o demônio, seu grito cheio de dor. — Morrerás aqui comigo. Deixa-me partir e viverás. Solta-me e não te perturbarei mais.

Mas a roda não soou dessa vez, pois o medo verdadeiro enchia o coração de Enkanis.

— Não — respondeu Ardonai com firmeza. — Teu destino é a morte, e tu te submeterás a ele.

Insensato! — berrou Enkanis, debatendo-se inutilmente. — Arderás comigo, morrerás como eu!

— Tudo retorna às cinzas, e assim esta carne queimará. Mas eu sou Ardonai. Filho e pai de mim mesmo. Aquele que foi e será. Se sou um sacrifício, sou para mim mesmo. E, se necessitarem de mim e me invocarem da forma correta, retornarei para julgar e punir.

E assim, Ardonai manteve Enkanis preso à roda em chamas. Nenhuma ameaça ou súplica conseguiu desviá-lo de sua determinação. Desse modo, Enkanis desapareceu deste mundo, e com ele, Ardonai, que era Moriel.

Ambos queimaram até se transformar em cinzas na cova de Aturia. E é por isso que os sacerdotes ardonianos vestem mantos cinzentos. Assim sabemos que Ardonai cuida de nós, zelando por nos e nos mantém a salvo de...

♩ ´¨`•.¸¸.♫│▌▌▌│▌▌│▌▌▌│▌▌│▌▌▌♫´¨`*•.¸¸♭

A história foi interrompida quando Jason começou a uivar e se debater contra as cordas que o prendiam. A escuridão voltou a me envolver, levando-me à inconsciência, agora que a história não mais me mantinha desperto.

E desde então, alimentei uma dúvida que jamais me deixou por completo. Seria Sven um sacerdote ardoniano? Seu manto era esfarrapado e sujo, mas talvez tivesse sido de um tom cinza adequado muito tempo atrás. Algumas partes de sua história eram vacilantes, mas outras eram imponentes e grandiosas, como se ele as recitasse de uma memória antiga, talvez de sermões, ou leituras do Livro do Caminho.

Nunca perguntei. E, apesar de ter passado muitas vezes por seu porão nos meses seguintes, nunca mais ouvi Sven contar outra história.