Chereads / A Crônica do Contador de Histórias / Chapter 33 - XXXII. FALSIDADE

Chapter 33 - XXXII. FALSIDADE

Quando Cherryl finalmente silenciou, percebi o quão profundamente havia me perdido em sua história. Ele reclinou a cabeça, esvaziando as últimas gotas de vinho de seu robusto caneco de cerâmica, e o colocou no balcão com um som seco e decisivo.

Um murmúrio de perguntas, comentários e agradecimentos ecoou pelas crianças, que, até então, estavam imóveis como estátuas. Cherryl fez um gesto para o homem do bar, que lhe serviu um novo caneco de cerveja, enquanto as crianças lentamente saíam para a rua, uma a uma.

Esperei até que a última delas partisse antes de me aproximar de Cherryl. Seus olhos azuis, afiados como diamantes, pousaram sobre mim, fazendo meu coração tropeçar nas palavras.

— Obrigado. Eu... queria agradecer — gaguejei, sentindo minha voz rouca, talvez pela falta de uso. — Meu pai teria amado essa história. Ela é... — interrompi-me, lutando para encontrar as palavras certas. — Eu gostaria de lhe dar isto — e tirei do bolso um meio lumen de ferro. — Eu... não sabia o que estava acontecendo, por isso não paguei.

Cherryl me observou com atenção antes de responder, sua voz grave e sábia:

— As regras são simples — disse ele, enumerando nos dedos nodosos. — Primeiro: não fale enquanto eu estiver contando a história. Segundo: se puder, pague uma moeda, mesmo que pequena.

Seu olhar se deteve no meio lumen que eu havia colocado no balcão.

Sem querer revelar o quanto eu precisava daquele dinheiro, procurei outra coisa para dizer.

— O senhor conhece muitas histórias?

Ele sorriu, e o emaranhado de linhas em seu rosto se rearranjou, como se seu sorriso fosse parte da própria história.

— Conheço apenas uma história, mas às vezes, pequenos pedaços dela se apresentam como se fossem histórias inteiras — respondeu ele, tomando um gole de sua bebida. — Essa história cresce em todos os lugares: nas mansões dos cealdamos, nas oficinas dos cealdaras, na Cordilheira das Tempestades, no vasto mar de areia. Nas casas de pedra dos parsemanos, cheias de silêncio falado. E, de vez em quando — ele sorriu novamente —, essa história brota em tabernas sombrias nas ruelas das Docas, aqui em Notrean.

Seus olhos brilhantes me fitavam, como se eu fosse um livro que ele pudesse ler.

— Não há boa história que não toque na verdade — retruquei, repetindo algo que meu pai costumava dizer, tentando preencher o silêncio desconfortável. Era estranho conversar de novo com alguém; estranho, mas reconfortante. — Há tanta verdade aqui quanto em qualquer outro lugar, eu acho. É uma pena, porque o mundo poderia usar um pouco menos de verdade e um pouco mais de...

Minha voz foi diminuindo, sem saber ao certo o que mais eu queria. Olhei para minhas mãos e desejei que estivessem mais limpas.

Cherryl empurrou o meio vintém de volta para mim. Peguei-o, e ele sorriu, pousando a mão calejada em meu ombro com a leveza de um pássaro.

— Todos os dias, exceto no dia-do-luto. Ao soar do sexto sino, mais ou menos.

Eu estava prestes a ir embora, mas hesitei.

— Essa história... — fiz um gesto vago com as mãos — ...o pedaço que o senhor contou hoje... é verdade?

— Todas as histórias são verdadeiras. Mas essa, em particular, realmente aconteceu, se é isso que você quer saber — disse Cherryl, bebendo outro gole com calma. Seus olhos dançavam com um brilho travesso quando ele acrescentou: — Mais ou menos. Para contar uma história direito, é preciso ser um pouquinho mentiroso. A verdade em demasia confunde os fatos. A franqueza excessiva soa como falsidade.

— Meu pai dizia a mesma coisa.

Ao mencionar meu pai, um turbilhão de emoções me inundou. Só ao perceber os olhos de Cherryl me seguindo foi que notei que estava recuando, nervoso, em direção à porta. Parei e me forcei a sair de costas para a saída.

— Estarei aqui, se puder.

Ouvi o sorriso na voz dele atrás de mim.

— Eu sei.

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Saí da taberna com um sorriso no rosto, alheio ao fato de que ainda estava nas Docas e corria perigo. Sentia-me leve e alegre, pois logo teria a chance de ouvir outra história. Há muito não sentia tanta expectativa.

Voltei para minha esquina e passei três horas mendigando, sem conseguir sequer um mero cobre. No entanto, nada disso foi capaz de abater meu ânimo. O dia seguinte seria o dia-do-luto, mas logo em seguida haveria mais histórias!

Contudo, enquanto me sentava ali, uma vaga inquietação começou a se infiltrar em mim. Era como se eu estivesse esquecendo algo, uma sensação que ofuscava minha rara felicidade. Tentei ignorá-la, mas ela persistiu, como um mosquito invisível que não consegui enxergar ou eliminar. Ao final do dia, estava certo de que havia esquecido algo — algo na história que Cherryl havia contado.

Partes da minha mente ainda estavam adormecidas e minhas memórias dolorosas acumulavam poeira atrás da porta do esquecimento. Eu me acostumara a evitá-las, assim como alguém evita pisar em uma perna ferida.

No dia seguinte, a sorte sorriu para mim. Consegui roubar um feixe de trapos de uma carroça e vendê-lo a um trapeiro por quatro lumens de ferro. Faminto demais para pensar no amanhã, comprei uma generosa fatia de queijo, uma linguiça quente, um pão fresco e uma torta de maçã morninha. Por fim, num impulso, fui até a porta dos fundos de uma estalagem próxima e gastei meu último lumen em um caneco de cerveja forte.

Sentei-me nos degraus de uma padaria do outro lado da rua, observando o movimento enquanto desfrutava minha melhor refeição em meses. O crepúsculo rapidamente deu lugar à escuridão, e a cerveja começou a me deixar ligeiramente tonto, mas agradável. No entanto, quando a comida se acomodou em meu estômago, a sensação incômoda retornou, ainda mais forte do que antes. Franzi o cenho, irritado por algo estragar um dia que, de outro modo, havia sido perfeito.

A noite se adensou até que a estalagem à minha frente se afundasse numa poça de luz. Algumas mulheres passeavam perto da porta, murmurando em voz baixa e lançando olhares discretos para os homens que passavam.

Terminei a cerveja e estava prestes a atravessar a rua para devolver o caneco quando avistei o brilho de uma tocha se aproximando. Reconheci o cinza característico de um sacerdote ardoniano e decidi esperar que ele passasse. Bêbado no dia-do-luto e responsável por um furto recente, pensei que quanto menos contato eu tivesse com o clero, melhor.

O sacerdote usava um capuz e a tocha que carregava criou uma barreira entre nós, tornando impossível ver seu rosto. Ele se aproximou das mulheres ali por perto e um murmúrio baixo de discussão se fez ouvir. O tilintar de moedas cortou o silêncio, e eu me escondi mais na sombra do portal.

O ardoniano deu meia-volta e retornou pelo caminho por onde veio. Continuei imóvel, tentando não chamar sua atenção e evitando a necessidade de correr para me proteger enquanto minha cabeça girava. Desta vez, porém, a tocha não ocultou seu rosto. Quando ele se virou e olhou na minha direção, não consegui ver nada além da escuridão sob o capuz; apenas sombras.

Ele seguiu seu caminho, alheio à minha presença, ou talvez indiferente a ela. No entanto, eu permaneci onde estava, incapaz de me mover. A imagem do encapuzado, com o rosto escondido nas sombras, abriu uma porta em minha mente, e as lembranças começaram a escorregar. Recordei um homem de olhos vazios e sorriso de pesadelo, o sangue em sua espada. Pensei em Grim, cuja voz era um vento gelado: "Esta é a fogueira dos seus pais?"

Mas não era Grim a fonte de minha inquietação, e sim o homem sentado junto ao fogo. O homem cujo rosto se escondia na escuridão. Xehanort. Era essa a sensação vaga que pairava nas beiradas da minha consciência desde que ouvi a história de Cherryl.

Corri para os telhados e me envolvi em meu cobertor esfarrapado. As peças da história e da memória foram se encaixando lentamente. Comecei a admitir algumas verdades dolorosas. O Sombraim era real. Xehanort era real. Se a história contada por Cherryl era verdadeira, Lanis e Xehanort eram a mesma pessoa. O Sombraim havia matado meus pais, minha trupe inteira. Mas por quê?

Outras lembranças surgiram na superfície da minha mente, fervilhando. Vi o homem de olhos negros, Grim, ajoelhado à minha frente. Seu rosto inexpressivo, sua voz cortante e fria. "Parece que os pais de alguém", dissera ele, "andaram cantando o tipo inteiramente errado de canção."

Eles haviam assassinado meus pais por causa de uma canção. Haviam matado toda a minha trupe. Passei a noite inteira acordado, com essas ideias dominando meus pensamentos. Aos poucos, percebi que eram a verdade.

E o que fiz então? Jurei encontrar e matar todos os responsáveis? Talvez. Mas, mesmo que tenha feito esse juramento, no fundo eu sabia que isso era impossível. Notrean me ensinou a ser prático. Erradicar o Sombraim? Matar Lanis?

Como poderia sequer começar? Teria mais sorte tentando roubar a Lua. Pelo menos eu sabia onde procurá-la à noite.

No entanto, havia algo que eu poderia fazer. No dia seguinte, perguntaria a Cherryl qual era a verdade por trás de suas histórias. Não era muito, mas era tudo o que eu tinha. A vingança talvez estivesse fora do meu alcance, mas ainda havia uma esperança de descobrir a verdade.

Agarrei-me a essa esperança durante as horas sombrias da madrugada, até que o sol nasceu e eu finalmente adormeci.