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Chapter 35 - XXXIV. RESTAURAÇÃO

De volta aos telhados, meu refúgio secreto, envolvi-me em meu cobertor e chorei.

Chorei como se algo dentro de mim tivesse se despedaçado, e as lágrimas jorrassem como uma torrente sem fim.

Quando o cansaço venceu meus soluços, a madrugada já estava avançada. Permaneci deitado, fitando o céu, exausto, mas incapaz de dormir. Pensei em meus pais e na trupe, e fiquei surpreso ao perceber que as lembranças, antes tão amargas, agora tinham um sabor diferente.

Pela primeira vez em anos, recorri a um dos truques que Marcy me ensinara para acalmar e aguçar a mente. A prática se mostrou mais difícil do que eu lembrava, mas consegui.

Se você já passou uma noite inteira imóvel e acordou com o corpo enrijecido pela inatividade, talvez compreenda a sensação que percorreu minha mente ao despertar nos telhados de Notrean, depois de tantos anos.

Passei o restante da noite explorando as portas da minha mente. Lá dentro, encontrei memórias há muito esquecidas: minha mãe compondo versos para uma canção, a dicção para o palco, três receitas de chá para acalmar os nervos e favorecer o sono, e escalas para dedilhar no alaúde.

Minha música... Será que realmente se passaram anos desde a última vez que toquei um alaúde?

Mergulhei em pensamentos sobre o Sombraim, sobre o que seu grupo fez com minha trupe, sobre o que eles tiraram de mim. As lembranças do sangue e do cheiro de cabelo queimado reacenderam uma raiva profunda e sombria em meu peito.

Admito que, naquela noite, alimentei pensamentos sombrios e vingativos; mas os anos em Notrean haviam me ensinado a importância de um senso prático. Sabia que a vingança não passava de uma fantasia infantil. Eu tinha apenas 13 anos. O que eu poderia fazer?

Havia, no entanto, uma certeza que me ocorreu enquanto revivia aquelas memórias. Algo que Xehanort dissera a Grim. "Quem o protege dos Mayr? E dos Cantores? E dos Sithes? De todos que desejam vê-lo cair?"

O Sombraim tinha inimigos. Se eu conseguisse encontrá-los, talvez eles me ajudassem. Eu não sabia quem eram os Cantores ou os Sithes, mas todos sabiam que os Mayr eram cavaleiros da Igreja, a mão direita forte do Império Aturense. Infelizmente, todos também sabiam que não havia um único Mayr nos últimos 300 anos. Eles foram dispersos com a queda do Império Aturense.

Mas Xehanort os mencionara como se ainda existissem. E a história de Cherryl sugeria que os Mayr começaram com Felitos, e não com o Império Aturense, como sempre me ensinaram. Era claro que havia muito mais nessa história, coisas que eu precisava descobrir.

Quanto mais eu pensava, mais perguntas surgiam. Obviamente, o Sombraim não matava todos que colhiam histórias ou entoavam canções sobre eles. Todos conheciam ao menos uma ou duas histórias sobre o grupo (que até mesmo apareciam nas crônicas do Grande Valoran) e toda criança já cantou a velha quadrinha sobre seus sinais.

O que tornara a canção de meus pais tão diferente?

Eu tinha perguntas. E só havia um lugar para onde eu poderia ir procurar as respostas.

Examinei minhas posses miseráveis. Eu tinha um cobertor esfarrapado e um saco de aniagem recheado de palha, que usava como travesseiro. Uma garrafa com meio litro de água, um pedaço de pano de vela que firmava com tijolos para usar como quebra-vento nas noites frias, dois cubos de sal grosso e um sapato gasto, pequeno demais para mim, mas que eu esperava trocar por algo mais útil.

E 27 lumens de ferro em moeda comum, meu tesouro para tempos de necessidade. Dias antes, aquilo parecia uma fortuna, mas agora eu sabia que jamais seria o suficiente.

Ao nascer do sol, tirei "Crítica e Retórica" de seu esconderijo sob um caibro. Desembrulhei o retalho de lona que usava para protegê-lo e fiquei aliviado ao encontrá-lo seco e intacto. Alisei o couro macio com as mãos, e segurei o livro junto ao rosto, inalando o aroma da carroça de Marcy — uma mistura de especiarias, levedura e um toque amargo de ácidos e sais químicos. Era o último vestígio tangível do meu passado.

Abri a primeira página e li a dedicatória que Marcy escreveu há mais de três anos:

"Vanitas,

Defenda-se bem na Academia. Deixe-me orgulhosa.

Lembre-se da canção de seu pai. Cuidado com a insensatez.

Sua amiga,

Marceline."

Balancei a cabeça e virei a página.

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A placa sobre a porta dizia: RESTAURAÇÃO. Interpretei isso como um bom presságio e decidi entrar.

Atrás de uma escrivaninha, um homem estava sentado. Presumi que fosse o proprietário. Era alto e desengonçado, com cabelos ralos e um ar de irritação ao desviar os olhos de seu livro de contas para me encarar.

Desejando evitar formalidades, aproximei-me e coloquei o livro sobre a mesa.

— Quanto você me daria por isso? — perguntei.

Ele folheou o livro com um olhar profissional, apalpando as páginas e examinando a encadernação. Deu de ombros.

— Dois iyanes.

— Vale mais do que isso! — retruquei, indignado.

— Vale o que alguém estiver disposto a pagar — respondeu ele, com desdém. — Ofereço um e meio.

— Dois crimos, e mantenho o direito de recompra por um mês.

Ele riu secamente, como se tivesse ouvido uma piada absurda.

— Isso aqui não é uma casa de penhores. — E empurrou o livro de volta em minha direção, enquanto pegava sua pena.

— Vinte dias? — insisti.

O homem hesitou por um momento, lançou um olhar rápido ao livro novamente, e então pegou sua bolsa de moedas. Tirou dois crimos de prata, pesados e brilhantes. Era mais dinheiro do que eu tinha visto em muito tempo.

Ele deslizou as moedas pela mesa. Refreei o impulso de agarrá-las imediatamente e disse:

— Vou precisar de um recibo.

Desta vez, ele me olhou com tanta severidade que comecei a sentir o peso de meu estado. Com a sujeira de um ano nas vielas cobrindo-me, era difícil imaginar que ele me veria como algo além de um ladrão tentando negociar um livro roubado.

Ainda assim, após um momento, ele deu de ombros e rabiscou algo em um pedaço de papel. Com um gesto, apontou onde eu deveria assinar.

Olhei para o papel, que dizia:

"Eu, abaixo assinado, atesto que não sei ler nem escrever."

Encarei o homem. Ele mantinha a expressão séria. Molhei a pena e, com cuidado, desenhei as letras D. D., como se fossem iniciais.

Ele abanou o papel para secar a tinta e empurrou o "recibo" de volta para mim.

— O que significa D? — perguntou, com um leve toque de humor nos lábios.

— Derrogação — respondi. — Significa anular e invalidar algo, geralmente um contrato. O segundo D é de Decrepitar. Que significa lançar alguém ao fogo.

Ele me olhou, confuso.

— Decrepitação é a punição por fraude em Janui. Acho que recibos falsos se enquadram nessa categoria.

O silêncio pairou no ar como uma espada suspensa.

— Aqui não é Janui — ele disse, com uma calma calculada.

— É verdade — admiti. — O senhor tem um senso apurado para desfalques. Talvez eu deva acrescentar um terceiro D.

Ele riu, um som seco, mas então sorriu.

— Você me convenceu, jovem mestre — disse. Pegou um novo pedaço de papel e o colocou diante de mim. — Escreva você mesmo o recibo, e eu assinarei.

Peguei a pena e escrevi:

"Eu, abaixo assinado, concordo em devolver o exemplar do livro "Crítica e Retórica" com a dedicatória "Para Vanitas" ao portador desta nota, em troca de dois lumens de prata, desde que ele apresente este recibo até o dia..."

Levantei os olhos.

— Que dia é hoje?

— Larden, dia 38.

Eu tinha perdido a noção do tempo. Nas ruas, os dias se misturam, exceto pelo fato de que as pessoas ficam um pouco mais bêbadas no paeten e um pouco mais generosas no dia-do-luto.

Mas, se estávamos no dia 38, eu só teria cinco dias para chegar à Academia. Marcy havia me dito que as inscrições se encerravam no dia-da-pira. Se eu perdesse essa oportunidade, teria que esperar dois meses pelo próximo período letivo.

Coloquei a data no recibo e tracei uma linha para o livreiro assinar. Ele parecia intrigado quando lhe passei o papel. E não percebeu que o recibo mencionava lumens, em vez de crimos. Os crimos valiam significativamente mais. Isso significava que ele acabara de concordar em me devolver o livro por menos do que pagou.

Minha satisfação diminuiu ao perceber a tolice disso tudo. lumens ou crimos, eu não teria dinheiro para recomprar o livro em duas semanas. Se tudo corresse bem, eu nem estaria em Notrean no dia seguinte.

Apesar de sua inutilidade, o recibo ajudou a aliviar a dor de me despedir do último vestígio de minha infância. Soprei o papel, dobrei-o com cuidado e o guardei em um bolso, depois peguei meus dois crimos de prata. Fiquei surpreso quando o homem estendeu a mão.

Ele sorriu, meio arrependido.

— Desculpe pelo recibo. Mas você não parecia alguém que voltaria. — Deu de ombros. — Tome — acrescentou, colocando um iyane de cobre em minha mão.

Concluí que ele não era um sujeito tão ruim assim. Retribuí o sorriso e, por um instante, quase me senti culpado pela forma como redigi o recibo.

Também me senti um pouco culpado pelas três penas que havia furtado, mas só por um instante. E, como não havia uma maneira conveniente de devolvê-las, roubei um tinteiro antes de sair.