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Chapter 34 - XXXIII. HERESIA

No dia seguinte, acordei envolto em um torpor ao ouvir o toque dos sinos. Contando quatro badaladas, perguntei-me quantas mais teria ouvido enquanto dormia. Pisquei os olhos, espantando o sono, e tentei calcular a hora pela posição do sol. Era por volta do sexto sino. Cherryl provavelmente começava sua narrativa.

Corri pelas ruas, meus pés descalços batiam contra as pedras ásperas, chapinhando em poças e seguindo atalhos pelas vielas. O mundo ao meu redor se transformava em um borrão enquanto eu enchia os pulmões com o ar úmido e estagnado da cidade.

Irrompi na taberna Meio-Mastro quase em disparada e me acomodei encostado na parede dos fundos, ao lado da porta. Percebi vagamente que havia mais pessoas na taberna do que o habitual para um começo de noite. Mas logo a história de Cherryl me absorveu, e eu nada mais pude fazer além de ouvir sua voz grave e sonora, e observar o brilho de seus olhos.

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Felitos, o Monóculo, deu um passo à frente e perguntou:

— Senhor, se eu fizer isso, terei o poder de vingar a perda da cidade cintilante? Conseguirei desbaratar as tramas de Lanis e de seu Sombraim, que mataram os inocentes e incendiaram minha amada Tyr Matriel?

Andros respondeu:

— Não. Tudo que é pessoal deve ser posto de lado; deves punir ou premiar apenas aquilo que testemunhares de hoje em diante.

Felitos abaixou a cabeça.

— Lamento, mas meu coração me diz que devo tentar impedir essas coisas antes que aconteçam, e não esperar para castigar depois.

Alguns Souaches murmuraram em concordância com Felitos e foram se postar ao seu lado, pois se lembravam de Tyr Matriel e estavam carregados de raiva e ressentimento pela traição de Lanis.

Felitos se aproximou de Andros e se ajoelhou diante dele:

— Tenho que recusar, porque não posso esquecer. Mas hei de me opor a ele com estes fiéis Souaches que estão ao meu lado. Vejo que eles têm o coração puro. Vamos nos chamar de Mayr, em memória da cidade destruída. Atrapalharemos Lanis e todos os que o seguirem. Nada nos impedirá de alcançar o bem maior.

A maioria dos Souaches hesitou em ficar com Felitos. Eles estavam temerosos e não queriam se envolver em assuntos tão graves. Mas Ardonai deu um passo à frente e disse:

— A justiça é o que mais prezo em meu coração. Deixarei este mundo para melhor servi-lo, servindo a vós. — E se ajoelhou diante de Andros, com a cabeça inclinada e as mãos abertas ao lado do corpo.

Outros se apresentaram: o imponente Kaliel, que fora queimado mas deixado com vida nas cinzas de Tyr Matriel; Delih, que havia perdido dois maridos na luta e cujo rosto e coração eram duros e frios como pedra; Esdras, que não portava espada nem comia carne de animais, e que ninguém jamais ouvira dizer palavras ásperas; a bela Glami, que tivera uma centena de pretendentes em Belen antes da queda dos muros, a primeira mulher a conhecer o toque não solicitado de um homem; Lacket, de riso fácil e frequente, mesmo quando cercado por uma densa tristeza; Imed, pouco mais que um menino, que não cantava e matava com ligeireza e sem lágrimas; Ordal, a mais jovem de todos, que nunca vira algo morrer, e que se postou bravamente diante de Andros, com os cabelos dourados adornados por fitas; e ao lado de Ordal veio Azrol, cujo rosto era uma máscara de olhos ardentes e cujo nome significava raiva.

Aproximaram-se de Andros, e ele os tocou. Tocou-lhes as mãos, os olhos e o coração. Na última vez que os tocou, houve dor, e de suas costas brotaram asas, para que pudessem ir aonde quisessem. Asas de fogo e sombra. Asas de ferro e cristal. Asas de pedra e sangue.

Então Andros pronunciou seus nomes plenos e eles foram circundados por um fogo branco. O fogo bailou por suas asas e eles se tornaram ágeis. O fogo cintilou em seus olhos e eles enxergaram as profundezas do coração dos homens. O fogo encheu suas bocas e eles entoaram canções de poder. Depois o fogo se instalou em suas testas como uma estrela de prata e eles se tornaram ao mesmo tempo justos e sábios, e terríveis de se contemplar. E então o fogo os consumiu e eles desapareceram para sempre da visão dos mortais.

Ninguém senão os mais poderosos é capaz de vê-los, mesmo assim com grande dificuldade e correndo enorme perigo. Eles distribuem a justiça no mundo, e Ardonai é o maior de todos...

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— Já ouvi o bastante — interrompeu uma voz. Não falou alto, mas foi como se houvesse gritado. Quando Cherryl contava uma história, qualquer interrupção era como mastigar um grão de areia ao comer um pedaço de pão.

Do fundo da sala, dois homens de capa escura avançaram em direção ao bar: um, alto e orgulhoso; outro, baixo e encapuzado. Ao andarem, vislumbrei túnicas cinzentas sob suas capas: sacerdotes ardonianos. Pior ainda, vi outros dois homens de armadura sob as capas. Não os tinha visto enquanto estavam sentados, mas no momento em que se mexeram, ficou dolorosamente claro que eram guarda-costas da Igreja. Seus rostos sombrios e o contorno de suas capas me fez pensar em espadas.

Não fui o único a notar. Crianças começaram a sair apressadas pela porta. As mais espertas tentaram parecer despretensiosas, mas algumas começaram a correr antes de chegar à rua. Contrariando o bom senso, três crianças ficaram: um menino com um olhar celeste e renda na camisa, uma garotinha descalça e eu.

— Creio que todos ouvimos o bastante — disse o sacerdote mais alto, com serena severidade. Era esguio, com olhos profundos que ardiam como brasas parcialmente escondidas. Sua barba, cuidadosamente aparada e cor de fuligem, acentuava os contornos de seu rosto afiado.

Ele entregou a capa ao sacerdote mais baixo e encapuzado. Sob a capa, usava a túnica cinza-pálido dos ardonianos. No pescoço, levava uma balança de prata. Senti meu coração afundar na boca do estômago. Não era apenas um sacerdote, mas um juiz. Vi as outras duas crianças escapulirem pela porta.

O juiz disse:

— Sob o olhar vigilante de Ardonai, eu o acuso de heresia.

— Atestado — confirmou o segundo sacerdote sob seu capuz.

O juiz fez sinal para os mercenários:

— Amarrem-no.

Os mercenários o fizeram com rude eficiência. Cherryl suportou tudo placidamente, sem dizer uma palavra.

O juiz observou um guarda-costas começar a amarrar os pulsos de Cherryl e virou-se de lado, como quem afastava o contador de histórias de sua mente. Seus olhos correram pelo salão, terminando sua inspeção no homem calvo de avental atrás do bar.

— Que as bênçãos de Ardonai o protejam! — gaguejou o proprietário da Meio-Mastro.

— Elas protegem — retrucou o juiz, com simplicidade. Deu outra olhada demorada pelo salão. Finalmente virou a cabeça para o segundo sacerdote, que estava mais próximo do bar.

— Arbol, será que um belo lugar como este estaria abrigando hereges?

— Tudo é possível, senhor juiz.

— Ah... — fez o juiz, baixinho, e tornou a correr os olhos devagar pelo salão, novamente terminando com um exame do homem atrás do bar.

— Posso oferecer uma bebida a vossas excelências, por obséquio? — apressou-se a dizer o proprietário.

Houve apenas silêncio.

— Quero dizer... uma bebida para os senhores e seus irmãos. Um bom barril de vinho branco de Haller? Para demonstrar minha gratidão. Deixei-o ficar porque as histórias dele eram interessantes, no começo — declarou, engolindo em seco e prosseguindo depressa —, mas depois ele começou a dizer coisas malévolas. Tive medo de pô-lo na rua, porque é óbvio que ele é louco, e todos sabem que o desagrado de Deus cai pesadamente sobre quem levanta as mãos contra os loucos...

Sua voz se extinguiu, deixando o salão em um silêncio repentino. Ele engoliu em seco novamente, e de onde eu estava, junto à porta, pude ouvir o estalar de sua garganta.

— É uma oferta generosa — disse enfim o juiz.

— Muito generosa — ecoou o sacerdote mais baixo.

— No entanto, às vezes a bebida forte leva os homens a praticar atos perversos.

— Perversos — sussurrou o outro sacerdote.

— E alguns de nossos irmãos fizeram votos contra as tentações da carne. Serei obrigado a recusar — concluiu o juiz, cuja voz exsudava um pesar devoto.

Consegui trocar um olhar com Cherryl, que me deu um meio sorriso. Senti o estômago embrulhar-se. O velho contador de histórias não parecia ter a menor ideia do tipo de encrenca em que estava. Mas, ao mesmo tempo, algo egoísta dentro de mim sussurrava: se você tivesse chegado mais cedo e descoberto o que precisava saber, não seria tão ruim, não é?

O homem do bar rompeu o silêncio:

— Nesse caso, os senhores aceitariam o preço do barril, se não o barril em si?

O juiz fez uma pausa, como se refletisse.

— Pelo bem das crianças! — implorou o careca. — Sei que os senhores usarão o dinheiro em benefício delas.

O juiz fez um muxoxo:

— Muito bem — disse, após um momento. — Pelo bem das crianças.

A voz do sacerdote mais baixo teve um toque incisivo e desagradável quando ele repetiu:

— Das crianças.

O taberneiro conseguiu esboçar um sorriso débil.

Cherryl revirou os olhos e me deu uma piscadela.

— Seria de se supor — a voz de Cherryl fluiu como mel espesso — que admiráveis homens da Igreja como os senhores encontrassem algo melhor para fazer do que prender contadores de histórias e extorquir dinheiro de homens honestos.

O tilintar das moedas do taberneiro se extinguiu e o salão pareceu prender a respiração. Com estudada displicência, o juiz deu as costas a Cherryl e se dirigiu por cima do ombro ao sacerdote mais baixo:

— Arbol, parece que encontramos um herege cortês... Que estranho e admirável! Devemos vendê-lo a uma trupe dos Therion; de certo modo, ele se assemelha a um cachorro falante.

Cherryl falou às costas do homem:

— Não que eu espere vê-los saírem correndo, pessoalmente, à procura de Xehanort e dos Sete. "Pequenas proezas para pequenos homens" é o que sempre digo. Imagino que o difícil seja encontrar atos suficientemente mesquinhos para homens como os senhores. Mas vocês são engenhosos. Poderiam recolher o lixo, ou verificar se há piolhos nas camas dos bordéis quando os visitam.

Virando-se, o juiz pegou o caneco de cerâmica no bar e deu com ele na cabeça de Cherryl, espatifando-o.

— Não fale na minha presença! — cuspiu. — Você não sabe nada!

Cherryl sacudiu um pouco a cabeça, como que para desanuviá-la. Um filete vermelho escorreu por seu rosto de madeira lançada à praia, descendo sobre uma de suas sobrancelhas de espuma do mar.

— Suponho que possa ver verdade — retrucou. — Ardonai sempre disse...

— Não profira o nome dele! — gritou o juiz, com o rosto vermelho de ódio. — Sua boca o emporcalha. Ele é uma blasfêmia em sua língua.

— Ora, vamos, Erlos — repreendeu-o Cherryl, como quem falava com uma criança pequena. — Ardonai o odeia mais ainda do que o resto do mundo, o que é um bocado.

O salão caiu em um silêncio antinatural. O rosto do juiz empalideceu.

— Deus tenha piedade de você — disse ele, em um tom frio e trêmulo.

Cherryl o olhou em silêncio por um instante. Em seguida, começou a rir. Enormes gargalhadas, sonoras e impossíveis de conter, brotaram do fundo da alma.

Os olhos do juiz se voltaram para um dos homens que haviam amarrado o contador de histórias. Sem qualquer preâmbulo, o sujeito de rosto sinistro atingiu Cherryl com o punho cerrado. Uma vez no rim, outra na nuca.

Cherryl desabou no chão. O salão ficou em silêncio. O som do corpo dele batendo nas tábuas do assoalho pareceu se extinguir antes dos ecos de suas risadas. A um gesto do juiz, um dos guardas levantou o velho pela gola. Ele ficou pendurado feito uma boneca de trapo, com os pés arrastando no chão.

Mas Cherryl não estava inconsciente, apenas atordoado. Seus olhos reviraram para se concentrar no juiz.

— Piedade da minha alma — disse, com um grunhido débil que talvez tivesse sido um risinho em dias melhores. — Não sabe como isso é engraçado, vindo de você.

Cherryl pareceu se dirigir ao ar à sua frente:

— Você deve correr, Vanitas. Ninguém ganha nada ao se meter com esse tipo de homens. Vá para os telhados. Fique por algum tempo onde eles não possam vê-lo. Tenho amigos na Igreja que podem me ajudar, mas não há nada que você possa fazer aqui. Vá.

Como ele não estava olhando para mim ao falar, houve um momento de confusão. O juiz tornou a gesticular e um dos guardas deu uma pancada no dorso da cabeça de Cherryl. Seus olhos viraram para cima, a cabeça pendeu para a frente. Esgueirei-me porta afora, buscando a rua.

Segui o conselho de Cherryl e já corria pelos telhados antes que eles saíssem do bar. Enquanto fugia, não pude evitar de pensar: "Como ele sabia o meu nome?"