Durante todo o tempo que passei em Notrean, as lições que aprendi foram marcadas pela dor e pela crueldade do mundo.
Aprendi a arte de mendigar, transformando a rua em palco e os passantes em uma plateia difícil de agradar. Por mais habilidoso que eu fosse, o frio constante da Beira-Mar fazia com que a vasilha permanecesse vazia, e a fome se tornava minha companhia inevitável.
Na escuridão das vielas, desenvolvi a destreza de um ladrão, descobrindo através de erros perigosos a arte de cortar bolsas e surrupiar objetos dos bolsos. Meus dedos ágeis, que um dia tocaram instrumentos e folhas de pergaminho, agora revelavam os segredos de cadeados e trincos, habilidades que nem meus pais, nem Marceline, poderiam imaginar.
Aprendi também a temer os sorrisos anormalmente brancos, sinal de que a resina de dâmara havia corroído a alma de quem os carregava; Notrean era repleta de perigos, mas ninguém era mais temido do que um papa-doces consumido pelo desejo desesperado por mais resina, capaz de matar por um punhado de moedas.
Meus pés, outrora delicados, se tornaram resistentes como couro velho. Passei a atar trapos aos pés, criando sapatos improvisados, pois os calçados reais se tornaram um luxo distante. Nos primeiros anos, meus pés estavam sempre frios ou feridos, mas, com o tempo, endureceram, permitindo-me correr descalço pelas pedras ásperas da cidade sem sentir dor.
Descobri que, nas profundezas de Notrean, a esperança era um luxo perigoso. Clamar por ajuda era o mesmo que atrair predadores, como sangue no vento.
Certa noite, enquanto dormia encolhido em meu esconderijo, onde três telhados se encontravam, fui despertado por risadas altas e passos pesados na ruela abaixo. Deslizei até a beira do telhado, curioso e inquieto. Lá embaixo, vi um grupo de rapazes, quase homens, envoltos em trapos e sombras. Eles cercavam um menino pequeno, não mais que oito anos. Um deles o segurava firme, enquanto a pele nua do garoto brilhava sob a luz do luar. Outro som de tecido rasgado foi seguido por um grito abafado que se perdeu na noite.
Os rapazes conversavam entre si com sorrisos cruéis, como se o sofrimento do menino fosse um espetáculo para sua diversão. Eu, que tantas vezes havia sido a presa, agora me via com uma pesada telha vermelha na mão, pronta para ser lançada.
Mas hesitei. Olhei para meu refúgio, onde guardava um cobertor esgarçado, metade de um pão, e meus preciosos oito lumens. Mais importante do que tudo, ali estava o livro de Marcy, meu último elo com um passado que já parecia distante.
Soltei a telha. Voltei para o que considerava meu lar e me encolhi sob a proteção do telhado, apertando o cobertor contra mim. Trinquei os dentes, tentando abafar as risadas cruéis e os soluços desesperados que ecoavam da ruela abaixo, sabendo que minha sobrevivência dependia de minha indiferença.
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Naquela altura, já fazia anos que eu estava em Notrean. Três aniversários se passaram sem serem notados, e eu havia acabado de completar 13 anos.
Nesse tempo, me tornei um sobrevivente nas ruas de Beira-Mar. Como um mendigo habilidoso e ladrão astuto, as fechaduras e bolsos se rendiam ao toque dos meus dedos. Eu sabia exatamente quais casas de penhores comprariam mercadorias "do titio" sem levantar perguntas.
Embora meus trapos ainda fossem meu uniforme e a fome uma visitante frequente, eu havia aprendido a evitar o pior. Aos poucos, fui acumulando moedas para os tempos de necessidade. Mesmo após um inverno rigoroso, que me obrigara a pagar por um canto quente onde pudesse dormir, minhas economias superavam 20 lumens de ferro, um tesouro que, para mim, valia tanto quanto o ouro de um dragão.
Eu havia me acomodado naquela vida, mas, além do desejo de aumentar meu pequeno tesouro, não tinha por que viver, nada que me motivasse ou despertasse minha vontade. Meus dias se resumiam a furtar e encontrar alguma diversão para passar o tempo.
No entanto, isso mudou dias antes, no porão do Sven.
Ouvi uma garota falar, com admiração, sobre um contador de histórias que passava os dias em uma taberna das Docas, chamada Meio-Mastro. Segundo ela, ao soar o sexto sino, ele narrava qualquer história que lhe pedissem. E, mais surpreendente ainda, fazia uma aposta: se não conhecesse a história solicitada, daria um crimo inteiro.
O nome do contador de histórias era Cherryl.
Passei o resto do dia refletindo sobre o que ela disse. Duvidei que fosse verdade, mas a ideia de possuir um crimo de prata enchia minha mente de possibilidades. Eu poderia comprar sapatos, talvez uma faca, doar dinheiro ao Sven e ainda duplicar minhas economias.
Mesmo que a aposta fosse mentira, o interesse permaneceu. Era difícil encontrar diversão nas ruas. De vez em quando, uma trupe maltrapilha apresentava uma peça em uma esquina, ou eu ouvia um violinista em uma taberna. Mas as verdadeiras diversões sempre custavam dinheiro, e minhas moedas, arduamente conquistadas, eram preciosas demais para desperdiçar.
No entanto, havia um problema. As Docas não eram seguras para mim.
Permita-me explicar: mais de um ano antes, eu havia avistado Poko na rua, pela primeira vez desde meu primeiro dia em Notrean, quando ele e seus amigos me atacaram naquele beco e destruíram o alaúde de meu pai.
Segui-o cautelosamente durante o dia, mantendo distância e me escondendo nas sombras. Ele acabou voltando para casa, um pequeno beco apertado nas Docas, onde mantinha seu refúgio, uma versão de meu próprio esconderijo, composto por caixotes quebrados que ele havia empilhado para se proteger do mau tempo.
Passei a noite num telhado, esperando que ele saísse na manhã seguinte. Então desci até seu ninho de caixotes para dar uma espiada. O lugar era aconchegante, cheio de pequenas posses acumuladas ao longo dos anos. Poko tinha uma garrafa de cerveja, que bebi, e metade de um queijo, que comi. Havia também uma camisa, que roubei por ser um pouco menos esfarrapada que a minha.
Uma busca mais atenta revelou várias miudezas: uma vela, um rolo de barbante e algumas bolas de gude. Mas o que mais me surpreendeu foram pedaços de pano de velame com desenhos a carvão de um rosto de mulher. Demorei quase dez minutos para encontrar o que realmente procurava. Escondida atrás de tudo, havia uma pequena caixa de madeira, muito manuseada. Dentro, encontrei um ramo de violetas secas, amarradas com uma fita branca, um cavalinho de brinquedo com a crina de barbante quase desgastada e um cacho de cabelo louro e encaracolado.
Gastei alguns minutos com a pederneira e o aço até que as violetas acenderam, funcionando como um bom pavio. Logo, nuvens escuras de fumaça subiam em espirais pelo ar. Fiquei por perto, observando tudo o que Poko amava arder em chamas.
Entretanto, me demorei demais, saboreando o momento.
Poko e um amigo vieram correndo pelo beco, atraídos pela fumaça, e me vi encurralado. Furioso, Poko avançou contra mim. Ele era uns quinze centímetros mais alto e quase vinte quilos mais pesado que eu. Pior ainda, empunhava um pedaço de vidro envolto em corda numa das extremidades, transformando-o em uma faca improvisada.
Ele me esfaqueou uma vez na coxa direita, logo acima do joelho, antes que eu conseguisse esmagar sua mão contra as pedras do calçamento, quebrando a faca. Depois disso, ainda me deixou com um olho roxo e várias costelas quebradas antes que eu conseguisse acertar um pontapé entre suas pernas e escapar. Enquanto eu fugia, ele mancava atrás de mim, gritando que me mataria pelo que eu havia feito.
Eu acreditei nele.
Após cuidar do ferimento na perna, gastei todas as minhas economias comprando cinco quartilhos de zurrapa, uma bebida barata e fétida, tão forte que causava bolhas na boca. Em seguida, capenguei até as Docas e esperei que Poko e seus amigos me encontrassem.
Não demorou muito. Deixei que dois deles me seguissem por quase um quilômetro, passando pela Alameda dos Modistas e por Candeias. Mantive-me nas ruas principais, sabendo que eles não se atreveriam a me atacar em plena luz do dia, com pessoas por perto.
Mas, quando corri para uma ruela, eles se apressaram a me alcançar, desconfiados de que eu tentava fugir. Ao dobrarem a esquina, no entanto, não havia ninguém.
Poko teve a ideia de olhar para cima no exato momento em que derramei o balde de zurrapa sobre ele, da beirada do telhado baixo. A bebida o encharcou, respingando em seu rosto e peito. Ele gritou e cobriu os olhos, caindo de joelhos. Então risquei um fósforo, que eu havia furtado, e o soltei sobre ele, observando-o crepitar e se inflamar ao cair.
Tomado pelo ódio puro e inflexível das crianças, desejei que Poko explodisse em uma coluna de chamas. Isso não aconteceu, mas ele pegou fogo. Gritando, saiu cambaleando, enquanto os amigos tentavam apagar as chamas.
Isso aconteceu há mais de um ano, e desde então, não vi Poko. Ele não tentou me encontrar, e eu mantive distância das Docas, muitas vezes fazendo longos desvios para evitar passar por lá. Foi uma espécie de trégua, mas eu sabia que Poko e seus amigos se lembrariam de mim e estariam prontos para acertar as contas se me vissem.
Depois de muita reflexão, concluí que era perigoso demais. Nem mesmo a promessa de histórias gratuitas e a chance de ganhar um crimo de prata valiam o risco de reacender o conflito com Poko.
Além disso, qual história eu pediria?