Não se passou mais do que um minuto até que a luz das tochas do cortejo dobrasse a esquina, lançando seu brilho em minha direção. As vozes de centenas de homens e mulheres, cantando e clamando, caíram sobre mim como ondas em um mar revolto. Afastei-me até sentir as costas encontrarem o frio de uma parede, então deslizei para o lado, enfraquecido, até encontrar o abrigo de uma porta entreaberta.
Dali, observei o desfile. As pessoas passavam em grupos, entoando cânticos e rindo. Ardonai erguia-se, imponente e majestoso, na traseira de uma carroça puxada por quatro cavalos brancos. Sua máscara de prata reluzia sob a luz das tochas, e o manto branco que vestia era imaculado, debruado com peles nas mangas e na gola. Sacerdotes em túnicas cinzentas flanqueavam a carroça, balançando sinetas e entoando cânticos sagrados. Muitos ostentavam as pesadas correntes de ferro dos padres penitentes.
O som das vozes, das sinetas, dos cânticos e das correntes entrelaçava-se, criando uma melodia singular. Todos os olhos estavam fixos em Ardonai. Ninguém notou minha presença, oculta nas sombras da porta.
O desfile levou quase dez minutos para passar por completo, e só então eu emergi, começando a refazer com cautela o caminho de volta para casa. Meu progresso era lento, mas senti-me fortalecido pela moeda que segurava. A cada dez ou doze passos, verificava o crimo em minha mão dormente, assegurando-me de que ainda o segurava com firmeza. Desejava colocar as luvas que havia recebido, mas o medo de deixar a moeda cair e perdê-la na neve me impedia.
Não sei quanto tempo levei para retornar. A caminhada, embora lenta, trouxe um pouco de calor ao meu corpo, mas meus pés permaneceram dormentes e insensíveis. Quando olhei para trás, vi que meu rastro na neve estava marcado por manchas de sangue a cada passo. De um jeito estranho, isso me tranquilizou. Um pé que sangra é melhor do que um pé completamente congelado.
Parei na primeira hospedaria que reconheci, O Homem Risonho. O lugar transbordava música, vozes alegres e celebração. Evitei a entrada principal e contornei o edifício pela ruela dos fundos. Duas jovens conversavam à porta da cozinha, aproveitando uma pausa no trabalho.
Aproximei-me, mancando e usando a parede como apoio. As moças só notaram minha presença quando quase as alcancei. A mais jovem olhou para mim e soltou uma exclamação abafada.
Dei mais um passo em sua direção.
— Será que uma de vocês pode me trazer comida e um cobertor? Eu posso pagar.
Estendi a mão, assustando-me ao ver como tremia. Estava manchada de sangue, fruto de quando toquei o lado do rosto. O interior de minha boca parecia estar em carne viva, e falar era doloroso.
— Por favor?
As duas me olharam em silêncio, perplexas. Então, entreolharam-se, e a mais velha fez sinal para que a outra entrasse. A moça mais jovem desapareceu pela porta sem dizer uma palavra. A mais velha, que aparentava ter uns dezesseis anos, aproximou-se e estendeu a mão.
Entreguei-lhe a moeda e deixei o braço cair pesadamente ao lado do corpo. Ela examinou o dinheiro e desapareceu lá dentro, lançando-me uma última olhadela demorada.
Pela porta aberta, o som acolhedor e agitado de uma hospedaria movimentada fluiu até mim: o murmúrio das conversas pontuado por risos, o tilintar alegre do vidro das garrafas e o baque surdo dos canecos de madeira sobre as mesas.
Ao fundo, entrelaçando-se suavemente com todo esse burburinho, um alaúde tocava. Era um som delicado, quase abafado pelos outros ruídos, mas eu o ouvi com a clareza de uma mãe que reconhece o choro de seu filho a doze cômodos de distância.
A música evocou em mim lembranças de família, amizade e conforto. Fez meu estômago revirar e meus dentes doerem. Por um instante, minhas mãos congeladas pararam de doer e ansiaram pela sensação familiar da música fluindo por meus dedos.
Dei um passo lento e arrastado. Devagar, escorregando ao longo da parede, afastei-me da porta até não poder mais ouvir a música. Dei outro passo, até minhas mãos voltarem a doer de frio e o aperto em meu peito ser causado apenas pelas costelas quebradas. Essas eram dores mais simples, mais fáceis de suportar.
Não sei quanto tempo se passou até que as duas moças retornassem. A mais jovem carregava um cobertor que envolvia algo. Apertei-o contra meu peito dolorido. Parecia desproporcionalmente pesado para o tamanho, mas meus braços tremiam tanto que era difícil dizer. A moça mais velha entregou-me uma pequena bolsa, sólida. Segurei-a com força, sentindo meus dedos queimados de frio doerem.
Ela me olhou e disse:
— Você pode ficar em um canto perto do fogo, se quiser.
A mais jovem concordou, acenando com a cabeça.
— A Natti não vai se importar. — Deu um passo à frente para segurar meu braço.
Desvencilhei-me dela com um safanão, quase caindo.
— Não! — protestei. Minha intenção era gritar, mas a voz saiu como um gemido rouco. — Não me toque — insisti, minha voz trêmula, sem saber se era de raiva ou de medo. Cambaleei em direção à parede, ouvindo minha própria voz abafada. — Ficarei bem.
A moça mais jovem começou a chorar, as mãos pendendo inúteis ao lado do corpo.
— Eu tenho para onde ir — expliquei. Minha voz falhou e dei meia-volta.
Afastei-me o mais rápido que pude. Não sabia ao certo do que estava fugindo, a não ser das pessoas. Essa era uma lição que eu havia aprendido, talvez bem demais: as pessoas trazem sofrimento. Ouvi soluços abafados atrás de mim. Muito tempo pareceu passar até eu chegar à esquina.
Finalmente, alcancei meu esconderijo, onde os telhados de dois prédios se encontravam sob a projeção de um terceiro. Não sei como consegui subir.
Dentro do cobertor, encontrei uma garrafa de vinho aromatizado e um pão fresco, aninhado junto a um peito de peru maior que meus dois punhos fechados. Enrolei-me no cobertor e afastei-me da direção do vento, enquanto a neve se transformava em uma chuva semi-congelada. Os tijolos da chaminé atrás de mim estavam mornos, deliciosamente confortáveis.
O primeiro gole de vinho queimou minha boca como fogo nas áreas cortadas. Mas o segundo, mal ardeu. O pão era macio, e o peru, ainda quente.
Despertei à meia-noite, quando todos os sinos da cidade começaram a badalar. Gente corria e gritava pelas ruas. Os sete dias do Luto Fechado haviam passado. O solstício de inverno se fora.
Um novo ano começara.