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Chapter 27 - XXVI. RODA PT.1

Esta é uma história de tempos antigos, de uma era tão distante que nem nossos pais haviam nascido, muito menos nós. Quem sabe... talvez há quatrocentos anos? Ou mais... talvez mil. Mas não vamos nos apegar ao tempo, pois a verdade é que isso aconteceu há muito, muito tempo.

Era um período sombrio no mundo. As pessoas viviam à beira da fome e da doença. Pragas e guerras devastavam a terra, espalhando dor e desespero, e não havia ninguém para pôr fim a esses tormentos.

Entretanto, o pior de tudo era a presença de demônios que vagavam livremente pela Terra. Alguns eram pequenos e travessos, capazes de envenenar o leite e aleijar cavalos, mas havia outros... outros muito mais terríveis.

Demônios que se infiltravam nos corpos dos homens, semeando a loucura e a doença. Feras demoníacas que devoravam suas presas vivas, saboreando seus gritos. E ainda havia aqueles que roubavam a pele dos homens, vestindo-a como um disfarce. Mas nenhum desses era tão terrível quanto Enkanis, a escuridão devoradora. Onde quer que passasse, sua face se escondia nas sombras, e até os escorpiões que o picavam morriam, contaminados pela podridão que exalava.

Ardonai, o Criador do Universo e soberano de todas as coisas, observava o sofrimento dos homens. Via como os demônios os atormentavam, zombavam deles e os devoravam sem piedade. Alguns ele salvava, mas apenas aqueles que julgava dignos. E, naquela época, poucos eram os que agiam pelo bem dos outros, quanto mais por si mesmos.

E assim, Ardonai estava infeliz. Ele havia criado o mundo para ser um lugar bom, mas sua obra estava corrompida. Não havia ainda igrejas nem sacerdotes, apenas homens e mulheres que, mesmo conhecendo Ardonai, haviam se afastado de seus ensinamentos. Eles suplicavam por ajuda, mas Ele hesitava em atendê-los.

Porém, após anos de vigilância, Ardonai encontrou uma mulher de coração puro e espírito íntegro. Seu nome era Pieral. Criada por uma mãe devota, Pieral cresceu conhecendo e venerando Ardonai, mesmo em meio às dificuldades de sua vida. Ela nunca rezava por si mesma, mas sempre pelos outros.

Ardonai observou essa mulher por longos anos, vendo-a enfrentar tormentos infligidos por demônios e homens perversos. Contudo, ela nunca blasfemou o nome de Ardonai, nem abandonou suas preces. Sempre tratou todos com bondade e respeito, mesmo em meio ao sofrimento.

Uma noite, Ardonai visitou Pieral em um sonho. Ele apareceu diante dela como uma figura de luz e fogo, irradiando um esplendor divino. "Sabes quem sou?" perguntou-lhe.

"Certamente," respondeu Pieral com serenidade, acreditando estar apenas sonhando. "És o Senhor Ardonai."

Ardonai assentiu e perguntou se ela sabia por que ele a visitara.

"Vais ajudar minha vizinha Debby?" perguntou ela, pois havia rezado por Debby antes de dormir. "Farás com que seu marido, Losiel, se torne um homem melhor? Ele a trata de uma forma que não é justa. Um homem jamais deveria pôr as mãos em uma mulher, a não ser por amor."

Ardonai conhecia Debby e Losiel. Sabia que ambos eram iníquos, como todos os habitantes daquele vilarejo, menos ela. Ele revelou a Pieral que Debby passava seu tempo na camas de muitos homens e que Losiel bebia excessivamente, a ponto de espancar a esposa.

Pieral ficou em silêncio por um tempo, sabendo que Ardonai dizia a verdade, mas seu coração puro não a deixou ignorar seus sentimentos por aqueles que, embora iníquos, eram seus vizinhos.

"O Senhor não vai ajudá-la?" insistiu Pieral.

Ardonai disse que homens e mulheres como Losiel e Debby eram punição adequada um para o outro. "Os maus devem ser castigados", afirmou.

Pieral, com sua franqueza, talvez por acreditar que ainda sonhava, respondeu: "Não é culpa deles se o mundo é tão cruel, repleto de escolhas difíceis, fome e solidão. O que se pode esperar das pessoas quando seus vizinhos são demônios?"

Apesar das sábias palavras, Ardonai reafirmou que a humanidade era má, e os maus deviam ser castigados.

"Pois eu os ajudaria assim mesmo, se pudesse," disse Pieral, resoluta.

"ASSIM FARÁS," respondeu Ardonai, pousando a mão no coração de Pieral. No momento do toque, ela sentiu-se como um grande sino dourado que acabara de soar pela primeira vez. Ao despertar, soube que aquilo não fora um sonho comum.

Então, Pieral descobriu que estava grávida. Em três meses, deu à luz um menino perfeito, de olhos negros, e o chamou de Moriel. Em um dia, ele já engatinhava; em dois, já sabia andar. Embora surpresa, Pieral não se preocupou, pois sabia que seu filho era uma dádiva divina.

Pieral, sendo sensata, compreendia que as pessoas poderiam não entender. Assim, manteve Moriel junto de si, afastando os vizinhos curiosos. Mas em uma cidade pequena, segredos não duram. Os habitantes começaram a suspeitar, temendo que Pieral tivesse se deitado com um demônio e que Moriel fosse seu fruto.

No primeiro dia da sétima onzena, os aldeões se reuniram, liderados pelo ferreiro Reigan, e marcharam até a casa de Pieral.

— Mostre-nos o menino! — exigiu Reigan. Quando não houve resposta, ele ameaçou: — Traga Moriel aqui fora, ou incendiaremos sua casa com vocês dentro.

A porta se abriu, e um homem surgiu. Embora tivesse nascido há apenas sete onzenas, Moriel parecia um jovem de dezessete anos, alto e orgulhoso, com cabelos e olhos negros como carvão.

— Sou aquele que vocês chamam de Moriel, — disse ele, com uma voz potente e grave. Ao ouvir essa voz, Pieral soltou um grito abafado dentro do chalé. Era a mesma voz que ouvira no sonho meses antes.

— O que quer dizer com "presumimos" que você seja Moriel? — questionou o ferreiro, segurando seu martelo com firmeza. Ele conhecia as histórias, sabia dos demônios que tomavam a aparência de homens ou usavam suas peles como disfarce, assim como um homem poderia vestir a pele de uma ovelha.

O menino, que não era mais um menino, respondeu com voz firme:

— Sou filho de Pieral, mas não sou Moriel. E não sou um demônio.

— Então, toque o ferro do meu martelo — desafiou Reigan, ciente de que todos os demônios temiam duas coisas: o frio do ferro e o calor do fogo. Estendeu o pesado martelo de forja, que balançou ligeiramente em suas mãos, mas ninguém o julgou por isso.

Aquele que não era Moriel avançou um passo e colocou ambas as mãos na cabeça do martelo de ferro. Nada aconteceu. Da soleira da porta, onde observava em silêncio, Pieral rompeu em lágrimas. Embora confiasse em Ardonai, o coração de mãe não deixava de se preocupar com o destino de seu filho.

— Não sou Moriel, apesar de ser esse o nome que minha mãe me deu. Sou Ardonai, o senhor de todas as coisas. Venho libertá-los dos demônios e da maldade de seus corações. Sou Ardonai, filho de mim mesmo. Que os iníquos ouçam minha voz e tremam.

E eles tremeram. Mas muitos não quiseram acreditar. Chamaram-no de demônio, ameaçando-o com palavras duras, cheias de medo. Alguns atiraram pedras, outros gritaram insultos, e cuspiram nele e em sua mãe.

Então, Ardonai encheu-se de ira, e poderia ter destruído a todos, mas Pieral se adiantou e, em um impulso, colocou a mão em seu ombro para acalmá-lo.

— O que mais se pode esperar — sussurrou ela suavemente — de homens que vivem ao lado de demônios? Até o melhor dos cães morde, se for chutado repetidamente.

Ardonai ponderou suas palavras e reconheceu a sabedoria nelas. Então, dirigiu seu olhar para Reigan, fitando-o profundamente, como se pudesse enxergar a alma do ferreiro, e disse:

— Reigan, filho de Eigan, tens uma amante a quem pagas para compartilhar teu leito. Enganas e roubas aqueles que vêm a ti em busca de trabalho. E, embora rezes em voz alta, não acreditas verdadeiramente que eu, Ardonai, criei o mundo e vigio todos os que nele vivem.

Reigan empalideceu ao ouvir essas palavras e deixou o martelo cair, pois tudo o que Ardonai dissera era a mais pura verdade. Ardonai então olhou para cada homem e mulher ali presente, perscrutando seus corações, e falou do que viu. Todos eram iníquos, tanto que Reigan estava entre os menos corrompidos.

Depois, Ardonai riscou uma linha no chão da estrada, separando-se dos que haviam vindo até ali.

— Esta estrada é como os caminhos da vida. Existem duas trilhas, lado a lado. Cada um de vocês já trilhou o lado de lá. Agora devem escolher: permanecem em seu caminho ou cruzam para o meu.

— Mas a estrada não é a mesma? Não leva ao mesmo destino? — perguntou alguém.

— Sim — respondeu Ardonai.

— E para onde ela nos leva?

— Para a morte. Todas as vidas terminam na morte, exceto uma. Assim é o curso natural das coisas.

— Então, qual a importância do lado em que seguimos?

Foi Reigan quem fez essas perguntas. Ele era um homem grande, um dos poucos mais altos que Ardonai, de olhos sombrios. Mas estava abalado com tudo o que havia presenciado.

— O que há no nosso lado da estrada? — indagou Reigan.

— Sofrimento — disse Ardonai, com uma voz tão fria e dura quanto pedra. — Castigo.

— E no seu lado? — continuou Reigan.

— Por enquanto, sofrimento também — respondeu Ardonai no mesmo tom. — Castigo por tudo o que fizestes. Isso é inevitável. Mas eu estou deste lado, e este é o meu caminho.

— Como faço para atravessar?

— Arrepende-te e vem a mim.

Reigan cruzou a linha e se colocou ao lado de seu deus. Então, Ardonai abaixou-se, pegou o martelo que o ferreiro havia deixado cair, e, em vez de devolvê-lo, golpeou Reigan com ele, como se estivesse brandindo um chicote. Uma, duas, três vezes. No terceiro golpe, Reigan caiu de joelhos, soluçando e gritando de dor. Após o terceiro golpe, porém, Ardonai deixou o martelo de lado e ajoelhou-se para olhar diretamente nos olhos de Reigan.

— Foste o primeiro a atravessar — sussurrou, para que apenas o ferreiro pudesse ouvir. — Isso foi corajoso, uma decisão difícil de tomar. Estou orgulhoso de ti. Não és mais Reigan; agora és Wereon, aquele que forja o caminho.

Depois disso, Ardonai envolveu Wereon em seus braços, e seu toque aliviou grande parte da dor que o ferreiro sentia. Mas não toda, pois Ardonai havia dito a verdade: o castigo era inevitável.