Capítulo 2. Mil
Submersa em uma fossa profunda na terra, sinto o mundo lá fora tornar-se um distante e silencioso eco. O som da ruína e desolação que assola a superfície é quase imperceptível, amortecido pelos metros de terra que me separam do caos. Meu corpo, cansado e quebrado, repousa sobre o terreno áspero e irregular, causando um desconforto quase insuportável. Cada fibra do meu ser arde em protesto, clamando por um descanso que parece inalcançável.
Bel, minha confiável e leal companheira de viagem, seus olhos repletos de uma mistura complexa de preocupação e impaciência. Seu olhar é penetrante, quase como se ela pudesse ver através de mim.
"Já está na hora de acordar.", diz ela, sua voz ecoando como um trovão em meus ouvidos. Ignoro seu conselho, buscando conforto no saco de dormir esfarrapado que adquiri em uma cidade abandonada que percorremos há um punhado de dias.
"Pelo amor de Deus, deixe-me descansar mais um pouco.", rogo a ela, minha voz sendo abafada pelo tecido do saco de dormir, que consegue me oferecer um pouco de calor em meio ao frio do esconderijo.
Bel, no entanto, balança a cabeça em desaprovação. "Você não pode dar ao luxo de permanecer aqui por muito tempo, você ainda está se recuperando do último encontro com os Rotadores.", ela me adverte. Os Rotadores são criaturas infernais que vagam pelas cidades abandonadas, as peles escamosas e os olhos vermelhos deles são uma visão que assombra meus pesadelos.
"Estou bem, Bel. Realmente estou.", respondo, me forçando a sentar e começar a recolher minhas coisas. Bel me observa com um olhar severo, claramente não convencida. Eu a ignoro, colocando meus pertences na mochila e me erguendo com esforço.
"Pronto, podemos prosseguir.", digo, tentando soar mais confiante do que realmente me sinto.
"Mil, você precisa ir até a cidade para procurar por mais suprimentos. Você já está quase sem comida.", Bel insiste, apontando para as ruínas da cidade que se estendem diante de nós no horizonte. Eu suspiro profundamente, sabendo que ela está certa, e sigo lentamente em direção à cidade.
Passo várias horas vasculhando as lojas e armazéns abandonados, mas não encontro nada. A cidade já foi completamente saqueada e nada de comestível restou.
"Caçar pode ser sua única opção agora.", Bel sugere quando saio de mais uma loja vazia. "Não, Bel. Não vou caçar. Não vou voltar a comer carne.", respondo, me virando para a parte residencial da cidade, na esperança de encontrar algo nas casas abandonadas.
"Você é teimosa além do que é bom para você, Mil.", Bel resmunga, um traço de frustração tingindo sua voz.
Depois de vasculhar várias casas, finalmente encontro algumas latas de feijão, sopa e algumas de frutas. É um pequeno alívio, sobretudo considerando a discussão iminente que terei com Bel sobre minha recusa em caçar.
Me acomodo no chão de uma das casas abandonadas, acendo uma pequena fogueira e coloco a lata de feijão para esquentar. O aroma de feijão quente preenche o ar, fazendo minha boca salivar. Quando a lata está suficientemente quente, pego uma colher e começo a comer. O sabor é reconfortante, me fazendo fechar os olhos de prazer.
"O mundo deve ter sido um lugar maravilhoso antes de tudo isso.", comento, levando outra colher de feijão à boca.
"Isso depende de sua definição de 'maravilhoso', Mil.", Bel responde.
"Ser livre para comer o que quiser, talvez?", sugiro, um sorriso de satisfação se espalhando em meu rosto.
"Muitos não tinham o que comer, mesmo antes de tudo isso. Viviam na miséria.", ela retruca.
"E você, Bel? Como era sua vida antes?", pergunto, já tendo feito essa pergunta várias vezes antes, mas Bel sempre evitava falar sobre seu passado.
"Eu vivia com minha matilha, até que tive a brilhante ideia de vir para uma cidade humana.", ela conta.
"Você não vivia em uma cidade assim?", pergunto, me referindo às ruínas que nos cercam.
"Não, os lobos preferem a natureza. As cidades são muito barulhentas para nós.", ela explica.
"Como você acabou no complexo?", pergunto, curiosa sobre como Bel se tornou uma escrava no complexo de onde fugir.
"Estava em um bar com algumas garotas humanas quando um cara humano, que pensou que tinha o direito de tocar em mim. Quebrei o braço dele sem nenhuma dificuldade, mas isso chamou a atenção errada", Bel conta, um brilho triste em seus olhos.
"Por que os humanos tinham tanto medo dos sobrenaturais se vocês se mantinham escondidos?", indago, curiosa.
"Porque é da natureza deles, Mil. Veja o que o mundo se tornou por causa da ganância deles e de magos que administravam o complexo.", ela responde, se referindo à fenda que liberou o inferno na terra, causando a destruição do mundo que eles conheciam.
"Mil, você não pode ficar aqui por muito tempo", Bel falou de repente, sua voz carregada de preocupação e urgência. Ela estava de pé na porta apodrecida da casa abandonada em que nos abrigávamos, seu olhar fixo na vastidão da floresta que se estendia além. Coloquei a última colher de feijão na boca, o gosto amargo se misturando com a dura realidade de suas palavras. Bel estava certa; eu não podia me dar ao luxo de ficar parada.
Um momento depois, o ar ao nosso redor se tornou espesso e pesado, cheio do cheiro inconfundível de enxofre. Era um sinal claro e terrível de que nossos perseguidores estavam se aproximando. Queria acreditar que estava bem, que poderia enfrentá-los novamente, mas a verdade era que a última batalha com os Rotadores havia drenado quase toda a minha magia. E o pior de tudo era que eu mal sabia como usá-la; tudo o que eu fazia com minha magia de sangue era por instinto, um instinto nascido do desespero e da necessidade de sobreviver.
"Mil, você tem que se mover agora!" A voz de Bel cortou o silêncio como uma lâmina, trazendo com ela um novo sentido de urgência. Rapidamente, arrumei minhas coisas, peguei meu arco e me preparei para o pior.
"Mil, corre! Você não tem mais tempo." Bel apontava para a porta dos fundos da casa abandonada. Um arrepio percorreu minha espinha ao sentir os Rotadores se aproximando. Corri, adentrando a floresta, empurrando meu corpo ao limite para ganhar distância dos perseguidores.
De repente, me vi frente a frente com um bando de humanos infectados. Eles não eram uma grande ameaça, mas ainda assim, uma dor de cabeça que eu não precisava. Com o arco em mãos, recitei um encantamento de sangue, sentindo a energia vital fluir de minhas veias para a ponta de seus dedos. As flechas, agora revestidas com o poder do meu sangue, brilhavam com uma luz vermelha intensa. Ao disparar, cada flecha buscava seu alvo com precisão mortal, impulsionada pela magia e pela necessidade de sobrevivência.
Enquanto os infectados se aproximavam, recitei rapidamente o feitiço de fechar de sangue. Desenhei um símbolo no ar com meu dedo, que brilhava com o mesmo tom carmesim de meu sangue. O símbolo se expandiu, criando uma barreira invisível que impedia os infectados de passar, dando-me tempo precioso para respirar e planejar meu próximo movimento.
Percebendo que os números dos infectados só aumentavam, concentrei-me em um novo feitiço. "Sangue do meu sangue, força da minha alma, conceda-me a vitória sobre aqueles que se opõem a mim," murmurei. Uma onda de energia emanou de mim, mais eficiente do que qualquer coisa que eu havia usado antes. Os infectados eram repelidos com cada onda, caindo um após o outro, enquanto eu avançava. Esse feitiço drenou ainda mais sangue do que os anteriores.
"Mil, você está usando muito sangue," Bel advertiu, preocupada.
"Eu não sei nenhuma outra magia além da de sangue," respondi irritada, desejando poder invocar fogo para queimar todos aqueles malditos infectados.
A fraqueza tomou conta de mim pela quantidade de sangue que eu havia usado. Os demônios Rotadores estavam cada vez mais próximos, e minha respiração estava ofegante.
"Mil, você tem que sair daqui agora," Bel insistiu.
"Não tenho mais força para lançar nenhum outro feitiço," eu disse, ofegante, sentindo minhas veias queimar.
Com o pouco de força que me restava, tentei lançar outro feitiço - o véu de sangue. "Que o meu sangue me esconda, que a minha presença seja apagada," sussurrei. Meu corpo tornou-se translúcido, quase invisível, permitindo-me escapar dos olhos dos demônios Rotadores. Eu sabia que o feitiço não duraria muito, mas era o suficiente para me afastar e encontrar um lugar seguro para recuperar minhas forças.
A floresta era um labirinto de sombras e sons, cada folha que caía parecia anunciar minha presença. Eu me movia com cautela, evitando galhos e raízes que poderiam me trair. A lua era uma fenda prateada entre as copas das árvores, iluminando meu caminho com uma luz fantasmagórica. Eu podia ouvir os Rotadores atrás de mim, seus grunhidos e sussurros enchendo a noite com promessas de violência.
Eu sabia que não podia parar, que cada segundo contava. Meu coração batia como um tambor em meu peito, cada batida um lembrete de que eu ainda estava viva, ainda lutando. Eu não sabia para onde estava indo, apenas que tinha que continuar, que tinha que sobreviver.
Finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, cheguei a uma clareira. O céu estava aberto acima de mim, estrelas pontilhando o infinito. Por um momento, permiti-me respirar, sentir a brisa fresca da noite em meu rosto. Mas o perigo ainda estava muito perto, e eu sabia que não podia me dar ao luxo de descansar.
"Mil, você precisa encontrar um esconderijo," Bel sussurrou em meu ouvido, sua voz uma âncora em meio ao caos.
"Eu sei," eu respondi, minha voz quase um sopro. "Eu só preciso de um momento."
Mas não havia momentos a perder. Com um último olhar para o céu, eu me virei e continuei
a correr, desaparecendo na escuridão da floresta, em busca de segurança e de um lugar para recobrar minhas forças e minha magia.