Capítulo 1. Mil
(Dois anos antes do mundo entrar em colapso)
A sala branca, estéril e fria, é um contraste marcante contra a minha pele nua e vulnerável. A sensação de frio passa por cada poro, cada nervo, causando uma sensação incômoda que envolve meu corpo inteiro. Meus braços estão esticados acima de mim em uma posição desconfortável, os pulsos presos e aprisionados por correntes que pendem do teto alto. Parecem suspensos no ar, como se estivessem pendurados em nuvens, longe demais para que eu possa alcançar ou escapar.
Meus cabelos caem desordenadamente sobre meu rosto, formando uma cortina emaranhada que oculta meus olhos do mundo exterior. O cheiro de sangue é penetrante, quase insuportável, preenchendo cada canto da sala com um aroma metálico que invade minhas narinas e me faz querer vomitar. Baixo meu olhar, e vejo o chão branco, antes imaculado, agora manchado com o vermelho escuro do meu próprio sangue. Parece que há mais sangue ali, espalhado pelo chão, do que em meu próprio corpo.
Os cortes por todo o meu corpo, lembranças agonizantes da tortura que passei, pararam de sangrar, mas ainda não fecharam completamente. Posso sentir um leve formigamento, um sinal de que a cura está ocorrendo, mas a um ritmo muito mais lento do que eu gostaria.
Então, ouço um som que corta o silêncio como uma lâmina afiada - a porta se abrindo. Levanto minha cabeça, com esforço, para ver quem entra no meu pequeno inferno.
O líder do grupo, um homem de aparência enganosamente benigna, está à frente. Um sorriso satisfeito se espalha por seu rosto enrugado, um sorriso que não alcança seus olhos frios e calculistas. Se não fosse pelas incontáveis horas que ele se dedica a me cortar, a me torturar, a me degradar, eu poderia ser levada a acreditar que ele é apenas um bom velhinho. "Estamos quase chegando ao objetivo", ele afirma, sua voz soando como um trovão em meio à quietude da sala, enquanto olha para o outro homem ao seu lado.
"Mil, você está quase pronta", ele diz, enquanto caminha até mim com passos firmes e decididos. Ele começa a desenhar algo em minha coxa com sua lâmina afiada, o metal frio rasgando minha pele. A dor, antes insuportável, é quase imperceptível agora, meu corpo ainda está se recuperando da sessão de tortura da manhã.
Depois do que parece uma eternidade, ele recua, parecendo satisfeito com seu trabalho macabro. "Quando poderemos trazer o lobo?" Um dos mais jovens pergunta, sua voz trêmula com entusiasmo. O simples pensamento da perspectiva faz meu estômago se revirar com medo. "Vamos fazer isso amanhã", o líder responde, sua voz soando mais como um trovão do que palavras. Eu fecho os olhos, tentando bloquear a realidade do meu destino cruel que se aproxima.
"Mil, você está ficando cada vez mais forte e temos que tomar alguma precaução para que não perca o controle como os outros antes de você", ele continua, sua voz soando como uma sentença de morte. "Vamos vincular você a um lobo alfa que podemos controlar, então ele será um canal entre nós e você". A ideia de ser vinculada a um lobo, de ter minha autonomia arrancada de mim, me enche de pavor.
O velho tira algo do bolso - o maldito colar. Ele o coloca de volta em meu pescoço com um sorriso cruel. Imediatamente, sinto uma onda de fraqueza inundando meu corpo. Esse maldito colar me impede de curar rapidamente. Sem ele, meus ferimentos cicatrizariam mais rápido do que um humano normal. Mas com ele, posso apenas me preparar para uma noite longa e repleta de dor.
Eles saem da sala, me deixando sozinha com meus pensamentos e dores. Não demora muito tempo para que a porta se abra novamente. Desta vez, é Bel que entra. Ela é uma loba, uma das muitas escravas do complexo. Eles controlam os lobos com o mesmo colar que estou usando, impedindo-os de se transformar e deixando-os tão vulneráveis quanto um humano.
"Eles fizeram um número em você dessa vez", ela murmura enquanto me solta das correntes. Ela cuidadosamente me ajuda a me sentar, se certificando de que não caio no chão. Ela se afasta e volta com uma mangueira, e embora sei que a água fria vai causar mais dor, o pensamento de estar limpa, mesmo que por pouco tempo, é muito tentador. Ela lava meu corpo com cuidado, seus movimentos tão suaves quanto possível dadas as circunstâncias. A água fria lava o sangue e a sujeira do meu corpo.
Respiro fundo, sentindo a dor pulsar em cada fibra do meu ser enquanto a água fria da mangueira lava o sangue e a sujeira do meu corpo. Bel, com seus olhos gentis e tristes, olha para mim com uma expressão de simpatia. "Eles estão indo cada vez mais longe", murmura ela, seus olhos encontrando os meus. "Não sei como você ainda suporta isso depois de tanto tempo."
Dou de ombros, um movimento mínimo que ainda assim provoca uma onda de dor. "Não tenho escolha", respondo, a voz rouca. "Eles vão fazer o que quiserem de qualquer maneira. Pelo menos assim... eu evito que outros sofram." estou cansada de ver mais e mais crianças morrendo e enquanto eu for uma exceção, eles não trarão mais crianças para começar tudo de novo, tentando acertar onde erraram.
Ela balança a cabeça, uma mecha de cabelo caindo sobre seus olhos. "Você é mais forte do que todos os outros, Mil. Esse velho... ele tem medo de você. É por isso que ele vai fazer isso de vincular você com um alfa que eles podem controlar, ameaçando a companheira dele."
"Medo?" Eu ri, um som áspero e vazio. "Ele não me teme. Ele me vê como um objeto, uma ferramenta a ser usada e descartada."
Bel termina de me lavar e ajuda-me a me levantar. "Não", ela diz firmemente. "Ele teme o que você pode se tornar. Ele teme o que você é." O que eu sou. Eu me pergunto. Ela desvia o olhar, mas eu não a culpo. Eu sei o que sou e no que eles estão me transformando ao longo dos anos. "Você é especial, Mil. Nenhuma outra criança chegou tão longe quanto você." Ela fala, seus olhos encontrando os meus e, por um momento, vejo a verdade em suas palavras. Entre inúmeras crianças, eu fui a única que sobreviveu por tanto tempo.
A seda suave do vestido que Bel me entrega é uma delícia contra minha pele. Deslizando sobre mim como a brisa, o tecido é um lembrete da delicadeza que o mundo pode oferecer, um contraste gritante com a expressão dura e intransigente que Bel carrega em seu rosto agora. Sem proferir uma única palavra, ela segura a porta aberta para mim, sua figura alta e imponente fazendo sombra sobre a minha. Ela me conduz de volta à minha cela, um pequeno espaço confinado que se tornou meu lar não desejado. Este é o lugar onde estou destinada a permanecer até o próximo ciclo de testes.
No entanto, antes mesmo que possamos cruzar o limiar da minha cela, um tremor alarmante sacode o complexo. As luzes, uma vez estáveis e monótonas, começam a brilhar e desvanecer de maneira errática, criando uma dança de sombras que pinta a parede em tons de medo e incerteza. Bel me lança um olhar preocupado, sua expressão normalmente impassível revelando uma pitada de medo. Ela age rapidamente, seus dedos longos e ágeis se fecham ao redor do meu braço e me puxam para fora da sala.
À medida que avançamos pelos corredores, um cenário de puro caos se desenrola à nossa volta. Os humanos que governam este lugar com punhos de ferro e os lobos escravizados, subjugados por sua vontade, correm freneticamente pelos corredores, seus olhos arregalados e assustados. O complexo inteiro parece estar à beira do colapso, e uma onda estranha de energia percorre todo o meu corpo, enviando arrepios pela minha espinha. Uma sensação que é rapidamente abafada pelo colar em meu pescoço - uma corrente de prata fria e implacável que serve como um lembrete constante de minha servidão.
Bel, percebendo que algo está errado, se vira para mim. "Você está bem?" Ela pergunta, sua voz soando estranhamente suave contra o barulho do caos ao nosso redor. "Seus olhos... eles estão vermelhos, Mil," ela acrescenta, o medo evidente em sua voz.
Outra onda de energia atravessa meu corpo, a sensação é como se estivesse sendo queimada por dentro. Minha visão fica embaçada e eu me sinto desabar, mas Bel, me segura. Ao nosso redor, o caos aumenta, os gritos de lobos e humanos se misturam em uma sinfonia de medo e desespero enquanto os guardas humanos disparam contra qualquer um que tente fugir.
Bel me conduz para o pátio no centro do complexo, o único lugar longe da ameaça de sermos soterradas pelos escombros. Minhas pernas estão fracas e tremendo, e minha voz não passa de um sussurro. "Não consigo..." Eu tento dizer a ela, mas as palavras parecem se perder no ar.
"Só mais um pouco, Mil," Bel me encoraja, seus olhos vasculhando o caos à procura de uma saída. Mas estamos encurraladas, a ameaça de desabamento é iminente e retornar para dentro do complexo seria uma sentença de morte.
Em um último ato desesperado, Bel agarra o colar em meu pescoço, seus dedos deslizam sobre o metal frio, tentando arrancá-lo. Eu tento impedi-la, sabendo que se ela for pega tentando me livrar dele, será severamente punida. "Sem esse colar, você pode se curar mais rápido," ela diz, sua voz cheia de determinação.
Eu sinto o cheiro de carne queimada quando o colar queima sua mão, mas ela persiste, até que o colar finalmente se solta. O alívio de não ter mais essa corrente ao redor do meu pescoço é inebriante, como se eu pudesse respirar novamente.
De repente, o velho aparece, rodeado por seus guardas leais. Seus olhos varrem o caos antes de se fixarem em mim. "Mil, o que você tem?" Ele pergunta, um traço de medo em sua voz.
Sinto o medo de Bel e vejo seu rosto ficar pálido. "Pegue-a e mate a loba," ele ordena aos guardas. Meu coração bate mais rápido. Conheço Bel desde sempre. Mesmo que ela pareça ter minha idade, eu sei que ela tem mais de cem anos. Ela é a única neste lugar que me mostrou algum tipo de bondade, e eu não posso permitir que a matem.
Alguma coisa sussurra em minha mente, uma voz estranha que nunca ouvi antes. Eu luto para compreender as palavras, mas elas parecem estar além do meu alcance. Mesmo assim, sinto que a voz está me dizendo o que fazer, como se estivesse me guiando através do caos.
Instintivamente, levanto minha mão. Sinto o poder pulsar em minhas veias, um poder que nunca soube que possuía. A voz em minha mente se torna mais alta e mais clara, e eu finalmente entendo o que preciso fazer. "Espiral de Hemorragia," eu sussurro, e com essas palavras, uma onda de energia explode de mim.
O velho e os guardas caem ao chão, suas formas inertes se espalhando no chão de pedra. Bel olha para mim com surpresa e horror, seus olhos se arregalando ao ver a extensão do meu poder recém descoberto.
"Eles estão mortos?" Ela pergunta, seu olhar se desviando dos corpos para mim.
"Não," eu respondo, sentindo a vida ainda pulsando dentro deles. Eu poderia matá-los se quisesse, acabar com o sofrimento de uma vez por todas, mas Bel me puxa para longe antes que eu possa tomar uma decisão.
O mundo ao nosso redor começa a desmoronar, o chão sob nossos pés tremendo violentamente enquanto o complexo desaba. Uma onda de energia me joga para longe de Bel, meus músculos falham e eu caio no chão duro.
Eu fico lá, deitada, procurando Bel. Não sei por quanto tempo fico ali, até ouvir a voz de Bel. "Você tem que se levantar e sair daqui, Mil," ela diz. Eu gemo de dor quando tento me mover.
"Mil, você tem que tentar," ela insiste, a urgência em sua voz se intensificando. O som de gritos e grunhidos e o cheiro de enxofre e fumaça preenchem o ar.
Eu respiro fundo, reunindo todas as minhas forças restantes e, finalmente, me levanto. Bel está ao meu lado, ilesa, quando tento tocar nela, ela se afasta. "Ali," ela fala, apontando para um buraco na parede. Eu me arrasto para o buraco, Bel à minha frente, agora sem o colar, posso sentir meu corpo um pouco mais forte, meu sangue parece cantar em minhas veias.