"...Mas eu acredito em algo diferente: as pessoas cometeram um equívoco. As pessoas classificaram as artes como superior e inferior com base nos gostos da Imperatriz, quando no fim das contas todas têm o mesmo potencial para mexer com o coração de um Imperador.
Pintura, poesia, música, dança, escultura... existem muitas formas de arte no mundo e todas tem o seu devido valor, pois cada uma pode cumprir uma função diferente.
O objetivo de uma orquestra é diferente de um quadro, mas isso não significa que um seja superior ao outro. Do mesmo modo, um grupo de dançarinos pode complementar uma sinfonia e trazer um sentimento completamente diferente para uma apresentação.
E qual o objetivo da arte? Se não permitir que outras pessoas vejam o mundo através dos nossos olhos por um breve momento, ligar os cora..." Fábio deu uma leve pigarreada, pois percebeu que está muito empolgado por falar sobre um tema que ama e começou a despejar os seus ideais em cima de um aluno que nunca teve contato com qualquer tipo de arte antes. "Acho que você já entendeu onde eu estava tentando chegar certo?"
Foram apenas algumas frases a mais, mas a conversa tomou um rumo inesperado e o seu significado mudou completamente, deixando Miguel chocado com a diferença entre as suas memórias e a realidade apresentada na sua frente. Ele não pode deixar de ficar um pouco nervoso e pensar: 'Essa ilusão é muito mais maleável do que eu acreditei, isso vai ser um problema.'
Outro ponto importante que Miguel teve que considerar sobre Fábio foram a mentalidade e a visão de mundo, elas aumentaram o seu nível de respeito por ele; essa não é uma amplitude mental esperada de um mortal comum. Mesmo que muito do conhecimento dele seja apenas senso comum no Reino Superior.
Algumas palavras inclusive mexeram com Miguel, quando ele estava no Reino Superior e tentou aprender mais sobre as Quatro Artes Santas, ele não considerou nenhum outro tipo de arte, focou somente naquelas reconhecidas pelos Imortais como as melhores e ao perceber que não tinha muito talento e avançar sozinho era muito difícil desistiu e nem considerou pesquisar profundamente sobre o assunto mais um vez.
Então, enquanto encarava os olhos de Fábio, ele respondeu:
"O professor estava tentando me avisar para manter a mente aberta e não me guiar pelos preconceitos transmitidos pelos outros e respeitar todas as formas de arte."
Fábio pigarreou mais uma vez e disse "É... algo do tipo... vamos começar pela pintura vem aqui."
Miguel não pôde ver, mas havia um pequeno sorriso no canto dos lábios de Fábio, que caminhou até às telas em branco e continuou a falar:
"Não sei qual o nível do ferimento na sua mão, mas vamos torcer para que não atrapalhe o seu aprendizado. Fique aqui!"
Depois de posicionar Miguel na frente do cavalete, Fábio foi até o outro lado da sala, onde arrastou um banco com uma cesta repleta de frutas em cima. Após posicioná-los meticulosamente, ele retornou para o lado de Miguel.
"Você sabe qual é o fundamento da pintura?" Antes que Miguel pudesse responder, Fábio continuou: "É a cópia. Claro que, mais pra frente, a pintura pode tornar-se algo único, e cada artista vai desenvolver um modo diferente de se expressar. Mas, para começar e aprender, não existe método mais eficiente do que copiar o mundo ao seu redor. Então aqui está a sua primeira lição: copie aquele cesto de frutas. Não precisa se preocupar com as cores por enquanto, nem com luz e sombra. Só quero um desenho decente. Pode ser?"
Miguel acenou com a cabeça e segurou um dos pincéis presos ao suporte no cavalete. Mergulhou na tinta preta e, quando o pincel encostou na tela em branco...
"Não, não, não, o que você está fazendo? Olha o tamanho do pincel que você pegou, está tentando pintar uma parede inteira? E olha quanta tinta desperdiçada..." Fábio balançava a cabeça em decepção. "Nem vamos falar sobre essa postura horrível, e vê se segura direito isso aí, não é uma espada, pelo amor dos Deuses!"
Fábio suspirou e decidiu ajudar seu aluno. Se fosse deixado por conta própria, esse desenho não ficaria pronto hoje. Enquanto mostrava a Miguel qual o melhor pincel para fazer um esboço e a quantidade de tinta a ser utilizada para não fazer uma bagunça, ele aproveitou para dar alguns conselhos.
"Está vendo como eu seguro e movimento o pincel? Se você não quer terminar com uma doença nas articulações, é melhor prestar atenção."
Depois de orientar Miguel, Fábio deu um passo para o lado e permitiu que ele voltasse a praticar. Infelizmente, não demorou muito para Fábio suspirar mais uma vez e interromper Miguel, pois ele estava cometendo mais um erro.
"Pirralho, você esqueceu de receber o 'talento' quando estava para nascer, não é mesmo?"
E assim se passaram as próximas duas horas, entre suspiros e lamentações de Fábio.
Às vezes, Miguel usava a quantidade errada de tinta; outras, seu movimento estava errado, e as linhas ficavam tortas ou desiguais. Houve até um momento em que ele conseguiu rasgar uma das telas.
Porém, apesar das reclamações, Fábio foi muito paciente e o guiou com calma. Mesmo que o resultado final não tenha sido agradável e o desenho estivesse longe de parecer uma tigela com frutas, o processo de aprendizado foi revigorante para Miguel, que por alguns minutos esqueceu dos problemas que o atormentavam.
"Certo, isso é tudo por hoje. Espere ali no canto enquanto eu limpo a sujeira que você fez e podemos encerrar a aula."
Miguel se sentou próximo aos instrumentos musicais e se apoiou na parede enquanto Fábio guardava as tintas, pincéis e telas usadas.
Quando Fábio voltou sua atenção ao aluno, notou que Miguel havia adormecido.
"Max, seu neto realmente é uma figura. Mesmo sem talento, se ele conseguir manter esse nível de dedicação, talvez tenha algum futuro..."
***
Foi somente na manhã do dia seguinte que Miguel acordou em sua cama. Sua mente estava muito mais calma e tranquila, devido às longas horas de descanso.
Miguel se levantou devagar, se posicionou no centro do quarto minúsculo e começou a fazer movimentos estranhos, com posturas bizarras e incoerentes, ao mesmo tempo que respirava em um ritmo desordenado e complexo.
No princípio, não é tão difícil imitar os movimentos de Miguel. A primeira postura consistia em manter as pernas abertas na largura dos ombros, com os joelhos levemente flexionados, os braços esticados de forma paralela e com as palmas voltadas para frente. Mas conforme ele se movia e trocava entre outras formas, seu corpo aparentava estar testando o limite das suas articulações.
Depois de alcançar onze posturas diferentes, ele retornava para a inicial e recomeçava essa coreografia bizarra.
Miguel não pensou muito ao começar a utilizar uma das técnicas auxiliares para o treinamento físico do Reino Superior. Era um instinto gravado em seu corpo devido a milênios de prática e tornou-se um hábito, toda vez que terminava um ciclo de meditação, ele praticava esta técnica e agora fez novamente ao acordar de forma subconsciente.
Também não havia a preocupação de revelar os segredos dessa técnica para ninguém, pois no Reino Superior ela é amplamente difundida. A Técnica de Sublimação Corporal existe há um tempo indeterminado e seu conhecimento está presente em todas as diferentes organizações do Reino Superior.
Aqueles que alcançaram a ascensão têm que lidar com o mesmo problema: as imperfeições e impurezas dos corpos daqueles nascidos em Mundos Inferiores. A Técnica de Sublimação Corporal não aumenta a força de alguém e não causa avanços no cultivo físico. Sua única função é purificar o corpo de suas impurezas.
A Técnica de Sublimação Corporal é separada em três estágios, cada um num número de posturas diferentes. O primeiro estágio com onze posturas é chamado de Mortalidade, e seu objetivo é limpar o corpo das toxinas externas que afetam o físico das pessoas, sejam aquelas adquiridas ao ingerir alimentos ou até mesmo as presentes no ar que respiram. O segundo estágio com nove posturas, também conhecido como Inato, é responsável por purificar as toxinas internas, na maioria das vezes representando as células defeituosas ou muito antigas que só servem para consumir energia. Já no terceiro nível, conhecido como Sublimação, Miguel não faz ideia do seu propósito, pois nunca o alcançou.
Depois de duas horas, com uma expiração longa e profunda, Miguel terminou sua prática diária e exalou um ar perfumado de seus pulmões. Essa é a maior vantagem, assim como a razão pela qual a Técnica de Sublimação Corporal se destaca quando comparada às restantes.
Ao contrário das outras técnicas, ela não age sobre o princípio de expulsar as toxinas e impurezas do corpo, mas sim de utilizá-las para nutrir e fortalecer a base do praticante. Essa também é a razão pela qual é uma das técnicas mais difíceis de ser dominada, mais do que muitas artes de refinamento corporal, mesmo sendo somente uma técnica auxiliar.
Após horas de prática, Miguel provavelmente completou algo em torno de 0,1136% da primeira posição das nove que constituem o nível de Mortalidade da Técnica de Sublimação Corporal. Se ele conseguir esse progresso todos os dias, então depois de dois anos ele concluirá a primeira postura das onze que constituem o primeiro nível da Técnica de Sublimação Corporal, mas ele sabe que quanto mais progredir, menor será o progresso.
Miguel pode estar suado e um pouco dolorido, mas se sente revigorado, e tem um leve sorriso no rosto.
As coisas podem ter começado de forma confusa, com passado e futuro entrelaçados de forma a confundir seus conceitos de realidade, seguido por uma aula sobre um tema que ele desprezou anteriormente e, para finalizar, acabou inconsciente por ter subestimado os limites das condições que os mortais enfrentam.
Porém, nem tudo é dor e sofrimento. Provavelmente, seus captores o forçaram a reviver seu passado porque acreditam que foi durante o início de sua jornada que ele desenvolveu o método que o permitiu dominar a Lei do Tempo.
Infelizmente, para quem quer que esteja transmitindo essa sensação de estar sendo observado, que o aflige desde que acordou neste mesmo quarto dias atrás, estão perdendo seu tempo. Todo esse processo só serviu para dar uma segunda chance a Miguel para temperar sua mentalidade e refazer seu cultivo, eliminando as falhas que o permitiram cair nesta situação para começar.
Com determinação renovada, Miguel abriu a porta do quarto e saiu para enfrentar um novo dia. Ele não pôde deixar de notar a substituição de sua escrivaninha, mas não estava preocupado, não havia nada comprometedor gravado ali, apenas os nomes de possíveis inimigos que o colocaram aqui. Agora, a prioridade era encontrar algo para comer, pois no dia anterior havia sofrido com a fome e o cansaço, e ele não era do tipo de homem para cometer o mesmo erro duas vezes.