Alguém trouxe água e comida em uma tigela de barro, mas não conversaram com ela. Os serventes do tal Templo, pareciam olhá-la com completo desprezo. Ela ficou isolada, sozinha, com muito calor de dia e muito frio de noite. Nem sequer falavam o porquê tinha que ser tratada como uma prisioneira.
Amanda não tinha ideia quanto tempo havia passado, naquele dia, escutou um rangido estridente acima da sua cabeça e sobressaltou, engolindo em seco. Ayi voltou até sua cela, entrando com um riso pomposo de um negociante. E bem ao lado dele, ela constatou a entrada de uma estranha criatura caminhando em sua direção.
Involuntariamente, ela deixou um espantado grito escapar. Se encolheu, assustada com a presença da coisa que parecia um monstro.
— Hm, tem certeza, que foi chamada pelos portões de Tathra? — questionou a coisa. Sua voz saía como se ele tivesse devorado um apito que ficou preso em sua garganta.
O coração de Amanda acelerou conforme ele se aproximava.
— Que o Sol de Pram a banhe em bênçãos neste tão afortunado dia, ankhamret — a criatura disse, quando inclinou a cabeça, mostrando um relance de dentes tortos. — Ela é uma visão, Sinistre, uma visão! — exclamou, dirigindo-se a Ayi.
Amanda observou sua aparência estranha, com grande boca e braços musculosos. O tom de sua pele era vermelho, com manchas claras na região dos olhos; e, por cima da cabeça, pareciam descer tentáculos listrados até a grande barriga gorda. Ele vestia estranhas roupas que lembravam uma cultura egípcia antiga com leves dessemelhanças.
— No entanto, parece-me fraca — disse Ayi. — Não acredito que existirá qualquer problema para você, Airamés.
Airamés, a estranha criatura, levou sua mão grande e pesada ao queixo, observando o corpo de Amanda, sujo pelos dias presa naquele quarto.
— É uma zophet — Airamés inclinou sua boca grande para o lado. — As mais desejadas do Continente Lótus.
Ayi parecia impaciente.
— Temos um acordo? — perguntou, mexendo-se inquieto. — Garantiu-me interesse na zophet.
— Não seja tão apressado, Ayi — Airamés riu. — Mas não tenho olhos de um zoph, porém a acho bonita. Está mais que perfeita para servi-me em minha casa. Ainda mais, saindo do portão do herói... Ah, acredito que sim: temos um acordo.
Com um sorriso impertinente, Ayi olhou Amanda e riu.
— Ótimo, então, temos um acordo — suspirou como estivesse se livrando de um animal indesejado. — E lembre-se de me convidar para a festa.
Airamés ficou com as bochechas azuladas.
— Claro, amigo — passou a mão grande atrás de sua cabeça, esfregando o pescoço. — Há muito tempo estou procurando uma esposa. Não é como uma Parceria das Estrelas, mas ela parece espetacular.
— O quê? — Amanda conseguiu finalmente se manifestar. — O que diabos está acontecendo aqui?
Ayi olhou para ela, infiltrando um sorrisinho irritante no canto de sua boca pálida.
— Airamés é um grande nomarca de Tathra — explicou, apontando para a criatura feia ao seu lado. — Temos um acordo para que seu destino não seja a morte. Um casamento. Apesar de ser uma herege, ainda é um ser sagrado. Seria muito ruim despertar os deuses atrás dos Portões.
Amanda engoliu em seco, ficando irritada. Tendo uma reação diferente após dias chorando ou se encolhendo. Seus olhos ficaram tão inchados nos primeiros dias, que mal conseguia abri-los, enquanto sussurrava orações para até mesmo seu namorado virtual, Rafael, vir lhe salvar.
— Vá se ferrar, não vou me casar com ninguém! — Amanda quase gritou, fechando as mãos em punhos.
Airamés proferiu um risinho desprezível, enquanto ela vislumbrava uma fotografia de Rafael. Pensando como seria terrível casar-se e nunca ter podido conhecê-lo.
— Tenho meu coração pertencente a alguém, se me obrigar a casar, prometo que ele virá... — pensou bem em que dizer. — Ele vai vir do fundo desses portões, e fará picadinho de vocês!
Ela repensou melhor e acrescentou:
— Se ele não vier, eu mesma vou acabar fazendo purê de vocês!
Sabia que era mais esperta que aquilo, mas há dias não conseguia colocar sua mente para funcionar.
— Uma mulher impetuosa, pelo que vejo — observou Airamés, seus estranhos olhos brilhando em direção a moça. — Adoro domar mulheres ardentes!
Amanda recuou com nojo.
— Pro inferno que pensam que vão tocar a mão em mim, ou que vão decidir a minha vida — ela ergueu um dedo feio em direção a Airamés, que pareceu confuso com seu gesto. — Não cometi crime algum!
Se perguntava por que aquilo estava acontecendo com ela. Realmente, não havia cometido qualquer crime.
— Quanto mais ela fala, mas a quero ardendo nas minhas núpcias, Ayi — Airamés riu, mordendo o lábio em sua direção.
Sentindo-se completamente enojada, Amanda quis fugir e se esconder, procurando um caminho para fora daquele lugar ao espiar a porta atrás daquelas criaturas que não eram humanas. Contudo, antes que pudesse se mover, o sacerdote Ayi a estava observando, e ela sabia que se tentasse algo provavelmente apanharia.
Ansiosa, virou-se e olhou o homem que ele esperava que a desposasse antes de ela se tornar um problema verdadeiro.
Não conseguia aceitar aquilo como seu destino, queria gritar, fazer algo. Não havia reagido uma vez se quer, pois, seu pai havia lhe ensinado que violência gerava violência. Suspirou, esperando que pudesse resolver tudo em uma conversa.
— Veja bem — ergueu a mão, sacudindo no ar. — Eu só quero voltar para minha casa, certo? Alguém pode abrir esse tal de portão das estrelas, e me mandar de volta? Todos os problemas seriam...
Airamés e Ayi soltaram um riso, fazendo-a se sentir estúpida antes de terminar sua frase.
— Como disse, garota burra — Ayi deixou sua voz mais áspera e rude fluir durante sua risada —, você morreu em seu mundo original. Portanto, é impossível voltar. Uma vez que os portões se abrem para nat wa shenu, não existem meios de retorno. Pode um morto voltar a viver em um mundo que não existe mais o seu corpo?
Por um segundo, Amanda sentiu um desespero tão grande, que suas forças quase esvaíram de seus ossos. Ela sentiu as lágrimas escorrerem frias em suas bochechas, tremendo-se com aquela verdade. Mal havia processado como foi levada aquele lugar, saber que não podia voltar piorou em muito seu estado mental abalado.
Ayi desprezou aquela reação, bufando com desdém com o fundo da garganta.
— Devemos ir fazer as apresentações, Airamés — disse o sacerdote. — Mas se quiser, poderá aproveitar a "fruta" antes das núpcias.
Amanda se encolheu para trás, assustada, as lágrimas fluindo com mais fervor de seus olhos.
— Oh, não, gosto que as coisas sejam certas — Airamés riu, empolgado. — Diremos que ela é minha Parceira das Estrelas, então, faremos os rituais de forma correta.
— Como desejar, Airamés — Ayi assentiu, o rosto composto. — Ainda que a deixe longe e perto o suficiente para mantê-la sobre controle do Templo.
— Ela é uma das fracas, como ankham Khutasha, o Fraco. Até suas reações são brandas. — Airamés falou num tom fraco e agudo. — Garanto a você, que Dinasta Annastha jamais saberá da existência dessa zophet. Visto que tenhamos um casamento, como um das Estrelas, duvido que ela terá forças para qualquer coisa.
— Partirão a Shisa, ou o casamento acontecerá em Tathra? — respondeu Ayi.
— Shisa. Em alguns dias, pois vou precisar deixar outra pessoa administrando o nomo.
— Isso será muito adequado — Amanda viu os lábios de Ayi se curvar em uma expressão de escárnio. — Ela será sua sexta esposa, perfeita como a primeira, Airamés.
— Bem, mal posso esperar para tê-la morando na minha casa mesmo. Comendo minha comida ou liberando dos seus sucos em minha cama. — O entusiasmando com aquela ideia, caiu como veneno no estômago de Amanda numa velocidade assustadora. — Terei o nome dela, e total domínio sobre ela.
Por Amanda, aquela coisa jamais a tocaria.
Por ela, fugiria ou morreria tentando.
Ela sentiu algo crescer no interior de seu corpo, uma vontade de revidar, contudo, não sabia como, quando notou uma espada na bainha, presa no cinto de Airamés e outros dois guardas esperando no corredor do lado de fora.
Amanda decidiu que se fosse sair daquele lugar, então, teria a oportunidade de fugir.
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Glossário
Zophet --- > é o feminino de zoph. Para se referir a um subconjunto, sem conjugar gênero, usa-se o masculino zoph.
Nat wa shenu --- > É um termo inventado, e seria algo como "Mundo dos vivos"