Amanda foi escoltada para fora do quarto, e a empurraram para uma carruagem nas portas principais de um templo tão imenso, que chegava a ser deslumbrante. Ela não teve muito tempo de contemplar a arquitetura, mas viu lâmpadas elétricas iluminando o piso de mármore e caminhos preenchidos com o que pareciam ser padrões geométricos pintados em todos os azulejos nas paredes.
— Onde estou? — perguntou para um dos sacerdotes rudes. — O que são essas marcas nas paredes?
O rapaz não respondeu, bateu com força em seu pescoço; mas quando chegou na carruagem, o outro sacerdote sorriu e disse:
— As marcas no templo são sebayt, a língua dos deuses atrás dos portões das estrelas.
— Por que consigo ler? — Amanda questionou.
Foi como se os sacerdotes tivessem escutado dela, que podia fazer bruxaria. Grosseiramente a jogaram no interior da carroça.
Suando frio, enquanto os homens fechavam as grades, Amanda se arrastou no chão, tentando agarrar a mão do religioso. Imediatamente recuaram, como se ela fosse um animal selvagem que mordia.
— Me tirem daqui, por favor — ela implorou, assustada, com medo. — Não fiz nada de errado... Por favor...
Um dos garotos olhou para seu companheiro. Ele parecia pronto a ceder, mas seu amigo lhe deu um tapa na nuca.
— Isso é charme, garoto — falou o homem que usava uma túnica quase transparente em seu corpo muito alto. — Assim são as bruxas, elas te seduzem, depois te matam para comer suas vísceras.
— Bruxa? — Amanda enrugou a testa. — Não sou uma bruxa. Sou apenas uma mulher comum, certo? Não fiz nada de errado, e cai nesse lugar sem meu querer...
— Cale-se! — o sacerdote bateu com uma espada curva, como uma foice, nas grades da gaiola na carroça. — A cartilha da capital, diz-nos que bruxas gostam de passar-se por vítimas.
Amanda sentiu uma veia saltar ao lado de seu rosto.
— Não sou uma bruxa, caramba! — exclamou, irritada. — Se eu fosse, certamente, já o teria transformado em sapo!
O homem deu um passo para trás.
— Que bom que é um filhote, e não sabe ainda como usar seus poderes de bruxa — ele riu, encarando-a com desprezo.
Em seguida, puxou o garoto ao seu lado, em direção à frente da carroça, onde Amanda mal conseguia distinguir duas criaturas gigantescas e grandes que pareciam búfalos com chifres em forma de W. Ela começou a acreditar que havia pousado em um universo paralelo.
Se arrastou no piso de madeira da carroça, seguindo os homens com desespero.
— Espera! — implorou. — Por favor, não fiz nada e não vou me casar com aquele porco...
Os homens a ignoraram.
— Hei! Por favor, me escutem! Hei...
Completamente ignorada, escutou os búfalos serem chicoteados e a carroça começou a andar. O medo aumentou conforme se dava conta de que a carroça estava em movimento. Amanda esperava que, a qualquer momento, seu pai aparecesse vestido em uma capa de super-herói. Alguém precisava vir salvá-la... Talvez, Rafael... Alguém.
Mas não veio ninguém. Amanda parou de protestar algumas horas depois, ela não tinha ideia quanto tempo passou. Se encolheu no fundo da carroça, abraçada aos seus próprios pés, chorando inconsolável.
Em meio às paisagens ondulantes, ela olhou para aquele outro mundo com os olhos cheios de lágrimas. Diferente de tudo o que já viu em vida — exceto em um filme de fantasia. O terreno era coberto de areia tão vermelha, que parecia misturada a sangue. Além da trilha que os sacerdotes guiavam, existiam centenas de rochas monumentais. Ela notou, enquanto enxugava os olhos, que alguns eram como desfiladeiros, outros como pedras-guias.
Esses monumentos que emitiam luzes azuis como lasers em direção ao céu, se perdiam de vista no horizonte. Como obeliscos que Amanda havia uma vez visto nos livros de Histórias. Mesmo que não viu direito, percebeu existirem inscrições naquelas pedras guias, em hieróglifos que ela podia ler.
Se ela não estivesse em uma situação lamentável, certamente sacaria o telefone celular para tirar fotos. Matteo não acreditaria em nada daquilo. Até mesmo nos animais gigantes que apareciam nos meios dos desfiladeiros de rochas por todos os lados. Ela mesma ainda custava a acreditar.
Enquanto admirava a vista, a carroça rangia e o búfalo mugia a cada passo. Aquele lamento do animal foi dando nos nervos de Amanda.
A pior de todas as sortes havia lhe acontecido: uma viagem dolorida de terrenos acidentado, uma dor de cabeça devido ao calor, o cheiro horrível dos animais. E...
... Como poderia definir? Todos disseram que viera através de um portão das estrelas. Então, ela poderia supor que fora abduzida por, quem sabe, um transportador igual aos filmes de ficção científica que Rafael havia lhe indicado dois meses atrás. Um teletransportado que transformava a matéria em energia para a posterior rematerialização. Ela sentiu que aconteceu aquilo com ela. Foi desfeita e refeita...
Não importava... Amanda agora estava a caminho de um casamento forçado.
Sua cabeça ficou zonza, tanto pelo calor e fedor, quanto pelo som estranho que ouviu no meio daquele deserto de pedras e areia.
De repente, Amanda sentiu um arrepio. O barulho que pensou ter escutado devido ao cansaço, se tornou mais alto. E novamente mais alto e perto.
— Saurianos! — exclamou um dos sacerdotes que conduziam a carroça à frente.
Amanda não teve a menor ideia do que aquilo significava. Percebeu existirem muitas palavras distintas, embora não soubesse como entendia o que aquelas pessoas falavam. Sentiam que não era português, mas seu entendimento era perfeitamente encaixado em sua língua materna.
Curiosa, se escorou nas grades da carroça, erguendo os olhos em direção aos sons que se tornavam mais fortes. Pareceu o toque de berrantes de chifres.
— Ip, Ip! — os sacerdotes puxaram as rédeas de seus grandes búfalos.
Amanda precisou se segurar, quase caindo quando os animais pararam bruscamente. Erguendo-se, ela arrumou os cabelos desgrenhados, assustando-se ao notar que os sacerdotes estavam fugindo.
— Corre Athard! — gritou o monge mais velho, ajeitando sua enorme barriga enquanto erguia as saias de sua túnica semitransparente.
Enquanto Amanda os viu correr em direção a um esconderijo entre as rochas sólidas, Amanda deu-se conta de que a abandonavam no meio do calor insuportável.
— Hey! — gritou ela. — Voltem aqui! Me soltem.
De repente, em meio aos seus gritos, Amanda não podia esperar que tudo fosse ficar pior. O som das trombetas de chifre tocou tão perto, que sentiu seus ouvidos zunir. Ao lado da carroça escutou o som de cascalhos estalar e gritos se aproximando.
Amanda soltou um grito de surpresa, assustada. Se escolheu para trás com o coração acelerado. Mais uma vez ficou surpresa ao ver criaturas, e, por um momento, se perguntou se ela não estava em um set dos filmes que seu namorado Rafael havia recomendado. Levou a mão até o rosto, olhando para a ravina de rocha seca, notando a presença de algo, monstros...
A garota teve que piscar várias vezes para ter certeza de que viu o que viu. O calor deve ter causado algum tipo de ilusão. Amanda pensou ter visto de relance... criaturas humanóides de duas pernas parecidas com lagartos.
Eles possuíam aparência humana, mas a pele tinha escamas verdes e água-marinha. As faces eram humanoides, com lábios finos, olhos dourados com uma risca em forma de íris; os narizes eram como fendas de cobras.
Eles vestiam mantos pesados, como beduínos no deserto. Alguns panos enfeitados com adornos em formas de moedas e joias vermelhas que cintilava na forte luz do sol.
— Ai, caramba, são reptilianos... — Amanda sussurrou para si mesmo, assustada. — Vim parar em Marte, mesmo!
Durante algum tempo, ninguém disse nada. Eles apenas cercaram a carroça, sinalizando para terem cautela como se estivessem capturando um leão de circo, que estava sendo transportado de uma lona para outro.
Assim que uma rajada de vento veio suspirando areia, e os tecidos das roupas daquelas coisas agitaram-se e se ergueram, Amanda se assustou quando uma criatura maior que as outras empurrou as demais para olhar para ela.
Era um homem-lagarto gigante, no entanto, ela notou tufos de cabelo branco ao redor de suas sobrancelhas e barba. Parecia um homem atarracado, vestido com couro cinza remendado e tecido grossos. Segurava uma espada de lâmina curva maior que a dos demais, parecendo infinitamente mais selvagem.
— Ankhamret — sua voz era como o sopro de uma cobra. Amanda sentiu os pelos atrás de seu pescoço arrepiar. — Uma zophet como sempre.
O monstro se aproximou tão rápido que ela não teve tempo de reagir. Tinha um odor muito desagradável e repugnante. Ela torceu o nariz.
— Ouvi dizer que uma ankhamret fraca estava sendo transportada para um casamento — por incrível que parecia, a coisa-lagarto riu. Seu peito grande retumbou, movendo-se para cima e para baixo. — Eu imediatamente fiquei muito interessado. Apenas me perguntando: "quanto me pagariam por um ankham"?
Seus comparsas riram, Amanda não queria ter notado como brilhavam como cifrões.
— Suponho que o rei de Xisto nos pagaria todas suas reservas de xisto, não pensa, chefe? — disse a criatura mais perto.
— Talvez Tartarus da Legião nos honre com uma proteção a nossa mercadoria — uma das criaturas repousou o que parecia um enorme taco nos ombros musculosos. — Os shaikaah de Deshret andam um pé no saco, e dificultam nossa zona de caça.
— Não, imagine o que Nydra nos daria...?
Eles ficaram em silêncio, olhando-se. Então, soltaram muitas gargalhadas.
De todas as coisas estranhas que havia visto em vida, Amanda jamais pensou que ouviria risadas de lagartos que pareciam gente.
— Então, partiremos a Nydra, após avisar Meera Huppuri — o que parecia o líder assentiu. — Ou podemos especular e aumentar o preço para qualquer um que queira comprá-la. Afinal, é uma ankhamret. Seu nome vale riquezas inestimáveis.
— Estou pensando nas lindas pedras preciosas de Nydra, chefe — disse o cara com o tacape nos ombros. — Mas também estou confuso. Realmente é tão fraca? Nos olha e não reage. Viemos armados até os dentes, por uma criança assustada.
Sua língua bifurcada lambeu seus lábios de cobra.
— Sinto cheiro do medo que os zophu exalam quando os levamos ao mercado — zombou.
O chefe bufou com o profundo de sua garganta.
— Também acho que ela urinou — riu o reptiliano ao lado do Tacape. — Ou irá desmaiar?
Amanda olhou para baixo, sentindo as bochechas arder. Sentiu o tecido de algodão de seu pijama sujo, molhado no meio entre as suas pernas.
— Olha como as bochechas dela fica azul — riu um dos lagartos.
— Isso é um ankham? Estou decepcionado.
— A gente pode tentar brincar com ela, como um sumilki brinca com um samila antes de devorá-lo. Talvez ela vá reagir.
— Estou tentado — riu o cara com o tacape. — Adoro desafios.
— Um dia no labirinto de weriasha, e aposto que os dons dela sairiam para fora — sugeriu um lagarto com olhos esbulhados.
— Weriasha! Temos um desses?
— Você é tão cego quanto Mabala, Araduk. Nem sequer viu aquele weriasha que Esuur nos trouxe noite passada?
— Oh, claro, Esuur sempre tem uma criatura mística para gente vender — a coisa com o tacape declarou, em um tom de excitação. — Uma vez ele trouxe um Dameash, e a coisa matou meu irmão quando ele se distraiu por um segundo. Mas devem conhecer a história como me vinguei, usando os dentes para lhe arrancar a pele na jugular, enquanto sentia seu sangue pulsar quente na lâmina de minha faca enterrada em seu coração.
— Já nos contou essa história dez vezes, Zuri — riu a coisa que o chamaram Araduk. — Mas seria muito interessante, ver nossa Dameash aqui, reagir além de urinar nas calças.
Eles começaram a rir em uníssono novamente.
O medo que Amanda passou a experimentar agora era algo surreal. Seu corpo estava além de se tremendo e paralisado. Por um momento, pensou que fosse aquela a sensação de que um rato sentia na boca de uma cobra. Os sentidos de autopreservação diziam que ela não tinha a menor chance de fuga.
— Não importa — o chefe estreitou os olhos para o rosto da garota, após analisá-la em silêncio. Seus companheiros riam e debochavam. — A garotinha é nossa, e vamos conseguir dinheiro com ela. O que ela fará depois, não será problema nosso.
Eles riram, concordando com o chefe com uma aquiescência coletiva.
— Escoltem a mercadoria. Vamos à Abraxos.
Um longo silêncio. E então:
— Sim — resmungou as outras coisas. — Sim. — Sim. — Sim.
Amanda desejou responder algo, mas não conseguia. Aspalavras simplesmente se dobraram na ponta de língua feito um pedaço de papel.Queria reagir, no entanto, como poderia se o instinto de preservação dizia paraela se manter parada?