Houveram algumas paradas durante um período longo, que pareceu dois ou três dias para Amanda. Na primeira parada, ofereceram água e comida; na segunda, água, comida, um pouco de liberdade fora da gaiola da carroça.
Amanda gostou de esticar-se um pouco, tendo passado horas sentada, encolhida e chorando.
Alguns minutos depois, teria preferido nunca ter saído sem oferecer resistência.
Aquelas coisas, aqueles monstros a tiraram da cela apenas para zombar dela.
Eles a amarraram a uma árvore de casca velha e cortante, deixando-a passar a noite no relento e frio do que parecia a extensão de um deserto. Na manhã seguinte, mataram um dos búfalos que capturaram junto dela, preparam sua carne e, após comerem, bateram muito nela.
Amanda nunca apanhou de ninguém em sua vida. Lembrou-se da única vez que o pai levantou a mão para ela, por ser uma criança levada, mas logo que aprendeu a lição, desculpou-se prometendo que jamais ergueria a mão para discipliná-la.
Em toda aquela loucura, não tinha ideia porque batiam nela. Nem porquê riam, pediam para reagir, para manifestar os "grandes poderes de ankhamu"... Amarrada, ou sendo encurralada por criaturas altas, forte e malignas, não haveria como qualquer ser humano reagir.
Apenas parou de ser agredida no quinto dia, quando as coisas que a capturaram chegaram a uma cidade perto do mar. Ela ouviu um dos reptilianos chamar de Tereb.
Agora sendo arrastada amarrada a uma corda, Amanda podia ver um estreito abrindo-se como uma ampulheta. Pássaros estranhos voavam acima de uma cidade espremida entre dois leitos de um mar banhado por água de cor verde-esmeralda, e o cheiro do mar rodou debaixo do nariz da moça, salgado e úmido.
Ao longe, no telhado de um barracão, onde seus cativos caminhavam em direção ao portão, Amanda viu casas de tijolos amarelos cobertas de tábuas de palha ou plantas secas. E, com os olhos semicerrados, inchados de tantos golpes, viu centenas de navios à deriva nas águas azul-turquesa. Todos os barcos eram de um mundo moderno, embora muitos parecessem caravelas balançando ao vento.
Depois de entrar na cidade e sendo puxada pelas coisas, a menina abriu um pouco a boca, e então percebeu como as casas estavam conectadas e coladas umas nas outras, essa distância parecia inevitável, e a cidade não estava separada por ruas. Era um mundo interconectado, onde as casas eram compartilhadas e os moradores das cidades viviam sem qualquer privacidade.
— Ande! — reclamou o cara que a puxava por uma corda.
Curiosa, Amanda notou as construções toscas. Pareciam antes de Cristo; embora existissem luzes de neon em todos os lugares, piscando índigo ou vermelho.
Algumas criaturas tecnológicas também caminhavam, embora parecessem corpos de robôs de um dos filmes de ficção científica patetas de seu namorado, Rafael. Caminhavam como boneco em um filme de stop-motion, e recolhiam o lixo da cidade, forneciam informações ou faziam jogos para as crianças — marcianas, claro.
Apesar de um milhão de coisas para ver, seus captores não permitiram que explorasse a cidade, nem mesmo com o olhar. Eles a puxaram com força e Amanda tropeçou nos próprios pés e desiquilibrou. Não caiu, porque pulou para recuperar o equilíbrio. Segundos depois, ela percebeu que eles queriam humilhá-la e irritá-la. Eles estavam rindo, embora admirados com sua habilidade de caminhar e pensar ao mesmo tempo.
— Vamos, não pare no meio do caminho — um dos reptilianos atrás dela, a empurrou.
Ela foi jogada no chão. Seu rosto já estava inchado da surra e Amanda sentiu dor quando seu queixo bateu no chão. Tentou gemer de dor, mas mal teve tempo de se levantar. O cara que segurava a corda que tinha amarrado na mão, puxou-a como se ela fosse um animal teimoso lutando contra seu dono. Desengonçada, recuperou o equilíbrio, seguindo o caminho em uma corrida aos tropeços.
Todos seus captores começaram a rir.
Eles não lhe dariam um momento de paz. Queriam que ela reagisse, mas Amanda sempre se lembrava da voz do pai dizendo que violência gerava mais violência, e não conseguia reagir. Além disso, era apenas uma garota e eles, monstros marcianos e reptilianos. Como poderia competir com aquilo?
Afinal, Amanda estava mesmo em Marte?
Mesmo sendo humilhada no caminho para a rua entre as duas casas, notou ar seco e terra vermelha. Havia principalmente criaturas (alienígenas?) e apenas alguns humanos, então muitas pessoas da cidade os observavam enquanto passavam. Eles sussurravam uns aos outros e apontavam em sua direção.
— É uma zophet — escutou uma mulher lagarto dizer à outra que tinha a pele azul como um ursinho de pelúcia. — Siran conseguiu uma zophet!
Amanda seguiu, deixando um olhar em sua direção. Outra pessoa sussurrou a mesma coisa, como se uma humana capturada fosse uma proeza.
— Quanto será que ela vale? — escutou alguém dizer, e rodou a cabeça naquela direção.
"Vale"? Pensou, assustada. Piscou centenas de vezes, finalmente dando se conta de que estava mesmo sendo levada para ser vendida e que aquela cidade deveria ser um grande mercado de escravos.
Com o coração acelerado, Amanda se surpreendeu ao caminhar por um corredor estreito, apertado e movimentado, ouvindo gritos, risos e berros de vendedores ambulantes como as feiras livres de São Paulo. Crianças lagartos vestidos com panos de má qualidade escalavam grandes estruturas de madeira que me lembravam mushrabi [1] para alcançar terraços interconectados e chamar uns aos outros.
— Conseguimos um barco, Siran! — disse a coisa que Amanda via sempre carregar um tacape. Ele havia ido à frente, mas não percebeu. Um sorriso de cobra tomava sua cara de lagartixa. — Estão partindo para Nydra neste exato momento.
Siran, o líder dos seus captores, sacudiu a cabeça. Ele estava muito a frente. Olhou Amanda por cima do ombro, e concordou com um brilho em seus olhos de réptil.
— Ótimo — falou com certo humor de boa sorte no tom da voz. — Partiremos, agora. Antes, porém, Enmesir ficará e enviará a Nydra um orbe-sussurrante dizendo que estamos com uma mercadoria... exótica.
Enmesir pousou a mão no ombro, soltando a corda que segurava ao carregar Amanda.
— Será uma honra, Siran — respondeu, estirando-se como um soldado batendo continência. — Esperarei pelo retorno de vocês pacientemente.
Tacape, como Amanda resolveu chamá-lo, apanhou a corda como se ela pudesse fugir. Ela queria dizer algo desbocado, mas ainda estava com os lábios inchados, e não conseguia falar muito.
— Espero que tenha feito um bom negócio — Siran virou-se. — A menina ainda me parece apenas uma fraca zophet.
Enquanto ele se afastava, seu manto enorme, que ele usava como o jaleco de um pirata, dançava atrás dele como uma cauda. E o produto deles eram vidas.
Puxando-a novamente, seguiram sem muitas conversas em direção a um dos grandes portos da cidade.
Viraram a esquina de uma casa, depois de outra, e caminharam lentamente pelo abrigo das mulheres junto ao poço. Tacape, segurando a corda curta, sorriu para as lagartixas estranhas, vestidas tão finamente quanto odaliscas. O fedor da criatura era tão forte que Amanda quase vomitou.
— Cheiram doce — observou um dos captores. — Mas cobram caro...
— Você é um miserável, Annan — riu seu companheiro. — Quando voltarmos, passarei minhas tardes ociosas, acompanhado das damas mais cheirosas de Tammera.
Amanda queria ter podido erguer uma sobrancelha. Tudo ali, com exceção ao cheiro do mar, fedia tanto que quase a fazia querer usar uma roupa antirradiação!
Então, Tacape a puxou em um safanão por uma viela, por baixo de uma arcada. Atravessaram o interior de uma casa onde um ser azul cozinhava num fogão a lenha e subiram uma pequena escadaria de pedra. O edifício estava completamente dividido, apertado e pobre. Siran à frente parou no início de uma pista sinuosa que era estreita demais para andar lado a lado.
Em seguida, passando por aquele estreito, alcançaram o porto. Era uma pequena construção feita de madeira e palafitas, e estava repleta de pequenos barcos de pesca por toda parte. Além dos automatos que carregavam caixas grandes, muita gente transitavam.
Amanda percebeu que o maior barco parecia aquele que eles subiriam a bordo, Tacape apontou para lá, sem que ninguém perguntasse onde deveria seguir.
O navio era estreito, mas alto, com uma cabine triangular com uma pequena janela no meio. Na frente, a proa tinha um enfeite de mulher lagarto. Uma lanterna em forma de esfera balançava com o movimento do mar. O resto, pareceu-lhe que iria afundar em breve.
— Oh, bem-vindos! — um reptiliano gingou animado em direção a eles.
Siran balançou a cabeça, caminhando em direção ao réptil marciano. Amanda passou seu olho não inchado através da criatura. Era gordinho com uma mecha branca curta na área do queixo. Sua boca reptiliana disse algo, e o capitão respondeu a outra pergunta de Siran com piscadas erráticas.
— Não sei o que querem em Nydra — ergueu as mãos, falando mais alto. — Mas vai custar caro. O caminho até lá passa pela Baía do Abismo, nenhum marujo quer chegar perto daquele lugar. Até piratas sem navio como você, Siran, devia evitar aquela rota.
— Meu navio foi tomado por aquela maldita zophet da capital! — bufou Siran. — Com a grana com que vou conquistar com essa garota, terei certeza de comprar dez frotas e invadir a capital pelo De'Nilo para pilhar e incendiar todos os zophu. Em seguida, terei certeza de vendar aquela putinha da Dinasta para o filho da puta mais sádico que encontrar.
— O que tem essa zophet aí? — o marujo marciano perguntou, olhando o estado lastimável de Amanda. — Nunca vi vocês judiarem de uma mercadoria assim antes...
Siran não respondeu. Ele agarrou o réptil pelo colarinho.
— Não temos tempo a perder. Partimos agora! — ordenou, empurrando o homem. — Quanto mais cedo vender a zophet, mais cedo recuperarei meu estimado Servo do Vento.
Seus homens assentiram e todos começaram a descer a rampa. Eles não conversavam muito, exceto quando zombavam de Amanda. Eles subiram no barco e finalmente puxaram a corda de Amanda quando terminaram de ajudar os velejadores a carregar o barco com mercadorias.