Amanda fez todo o possível para afastar o medo que sentia, mas durante os dois dias seguintes o medo continuou atroz e excessivo.
A embarcação era bastante limpa, mas a higiene básica deixava muito a desejar quando se amontoam num espaço de cento setenta metros quadrados dez homens, uma mulher, toneladas de mercadoria que parecia ilegal.
No segundo dia, quando Amanda foi levada ao banheiro, que na verdade era um balde instalado no subsolo, ela pensou ter visto um rato marciano. Ela também ouviu de alguns membros da equipe que a cozinha estava cheia daquelas pequenas coisas irritantes.
Ainda assim, aceitou o jantar. Seu estômago estava vazio, tanto quanto a mente que mal conseguia lembrar quem era, qual seu nome, de onde viera. O que diabos estava acontecendo.
A única surpresa foi quando Siran veio lhe entregar comida. Ele se sentou ao lado dela e deu a ela a liberdade de pegar os talheres e comer. Amanda percebeu que os répteis comiam carne crua e sem senso de humanidade. Eles comiam como cobras, engolindo lentamente a comida. Ela vomitou na primeira vez que viu aquilo.
— Anankha cozinhou para você, zophet — disse Siran.
Amanda percebeu que havia um pouco do que parecia farinha, algum grão com um cheiro forte. Ela apanhou o garfo, saboreando a carne — mas preferiu não perguntar do que era e como foi frita.
— Seu rosto está muito melhor após dois dias — Siran inclinou o rosto, olhando-lhe com seus olhos de cobra. — Impressionante. Zophu são... frágeis. Qualquer um da sua espécie, certamente morreria com a cortesia de meus homens. Somos mais fortes que sua raça, menina.
Ela queria fazer muitas perguntas, mas eram tantas que não sabia por onde começar. Antes do jantar, sentindo a brisa fresca do mar, Amanda se concentrou em pensar nos pais e não se desesperar.
Muitos dias se passaram. Ela se perguntou o que aconteceria com seus pais, se a polícia estava procurando por ela. Seu rosto estaria na tela da TV, enquanto a procuravam? Seria apenas mais um desaparecimento?
Ou teria morrido enquanto dormia?
— Você não é de falar muito — Siran chamou sua atenção enquanto vislumbrava vários cenários sobre seu desaparecimento em sua mente. — Nem sequer disse seu nome... Suas frases favoritas são "violência gera mais violência". Isso é um pouco decepcionante.
— Que diferença faz? — Amanda retrucou de boca cheia. — Meu nome não é importante para você. Vai me vender para algum idiota, então, não passo apenas de uma mercadoria sem importância.
Siran estreitou seus olhos de cobra.
— Seus instintos de autopreservação falam por si, de forma bastante inconsciente — bufou o homem lagarto. — Você será marcada como escrava, com um selo de halo bastante poderoso. Mas darei um conselho, por menos que o que aconteça com você depois me interessa.
Ele se levantou.
— Não dê seu nome verdadeiro a ninguém — disse com sua voz sibilante e velha. — Sei que você é um "bebê". Renasceu há poucos dias, e não foi orientada pelos bundas moles dos Pais Divinos de Tathra. Ayi até me alertou sobre sua vinda ao mundo. Certamente, ciente que enquanto amanhece neste planeta, agora é o melhor momento para te capturar e vender.
Amanda deixou um pedaço de carne escapulir de sua boca até o prato. Então, um pouco enjoada, notou que haviam preparado um fim para ela de uma forma que não pareceria suspeita.
Não fazia sentido, ela era uma ninguém. Bastava lhe cortar a cabeça, manter silêncio e ninguém saberia que foi abduzida.
Ainda assim, ficou curiosa pela trama do monge que prometeu a si mesma que um dia iria lhe dar uma bofetada. Por que ele preferiu armar para ela? Por que fazer um falso sequestro e vendê-la como escrava? O que ele temia ao ponto de não conseguir matá-la?
— Por que devo esconder meu nome? — ela questionou em meio a tantas perguntas em sua cabeça, espiando para um canto qualquer ao dispensar da mente sua própria voz barulhenta.
— Existe uma maldição por todos os lados desse mundo — o homem lagarto respondeu, cruzando os braços. — Ren é como referimos ao nome. O nome verdadeiro. É a parte vital do ser em sua jornada através da vida e do pós-vida. É uma janela para sua alma. Para compreender melhor, basta saber que o Deus Criador criou o mundo dizendo o nome de todas as coisas. E todas as coisas podem ser manipuladas ou deturpadas. Como uma machina.
Ele assentiu, passando a mão em sua barba rala.
— Além dos Hijackers [1] — pensou melhor no que dizia —, quer dizer, demônios roubando corpos para habitar, zophu iguais a você, usam da sagrada Macro para amaldiçoar uns aos outros.
— Desculpe... — Amanda franziu a testa. — Macro... O quê?
Siran tinha uma expressão no rosto bem próxima à expressão que um dragão de cômodo faria.
— Você poderia chamar de macro — ele bufou. — Nossas denominações são diferentes da Capital. Muitas palavras no Leste de Tammera são distintas, mas os significados são os mesmos. Nos glifos coptos são chamados heka.
Amanda sentiu a cabeça doer, sem entender.
— Os Pais Divinos usam de seus conhecimentos das ervas das plantas e praticam a heka. Dançam na luz da lua, ou fazem rituais nos templos. — Siran riu com desprezo.
— Quer dizer que essa coisa é uma espécie de alquimia? — A boca da menina retorceu-se.
— Alquimia? — Siran apertou seus lábios de cobra, gargalhando alto. — Não. Macro são instruções, códigos que fazem machina funcionar, tal como a biológica.
Amanda não tinha ideia do que ele estava falando. Entendia menos ainda.
— Heka é apenas uma energia — Siran respondeu com humor —, é a alma do nosso mundo. É o Sekhem[2] do Regente desse Cosmo, que conduz toda a vida. Se uma flor se abre na primavera, ela o faz por trocar energia cósmica com o poder do Grande Regente; se o Sol surge à montanha da aurora, a força do poder do Regente o ergue toda a manhã. Heka dá, heka toma, heka rege.
Seus olhos de cobrar brilharam na luz da lanterna chamejando atrás de Amanda em algum lugar.
— Apenas pessoas como você, uma ankhamret, tem a total liberdade de programar essa energia — ela identificou um tom de inveja. — Os deuses deram aos ankhamu a liberdade de reger a energia espiritual regente, enquanto os Pais Divinos que possuem pouco acesso à heka a utilizam para amaldiçoar.
Ele pausou um momento.
— Nós acreditamos que as macros podem rescrever o universo, e a tratamos como sagradas e intocáveis — um sorriso de lagarto estava em seu rosto. — Portanto, para meu povo, vocês é que são os hereges.
Ele baixou a cabeça, voltando a fitá-la como se fosse um dragão pronto para devorá-la.
— Pergunto-me o que eu poderia fazer com tanta sorte como a sua... — ele tinha um tom de encerramento.
Virou-se, afastando. A conversa simplesmente encerrou.
Amanda o observou com a boca entreaberta. Em qual parte ela tinha qualquer resquício de sorte?
Ela tinha tanta sorte, que de repente, amarrada na parte de frente do barco, era acoitada por uma estranha e repentina tempestade. O céu ficou tão cinza abruptamente ao aproximar da madrugada, que parecia que um furacão estava prestes a atingi-los.
Foi um belo, revigorante e cristalino dia durante toda a tarde, ensolarado e morno, mas agora nuvens escuras desciam do céu tocando mar, e o vento parecia esmurrar. Mesmo em Marte, oceanos, tempestades e raios pareciam uma combinação aterrorizante.
—... É a Baía do Abismo! — Amanda escutou, afastando a água do rosto.
Estreitou os olhos acoitados pelo vento e chuva, enxergando a presença do lagarto dono do barco e Siran sair da cabine, onde nem todos cabiam lá. Eles estavam discutindo.
— Não conseguiu colocar seus lemes para sair do tufão? — gritou Siran, irritado. — Por que não instala um motor nessa porcaria?
— Motores são caros!
— Chefe!
De repente, o coração de Amanda quase saltou do peito. Ela se agarrou à borda, viu todos os marinheiros a bordo gritarem em pânico e apontou para o vento e a chuva caindo de lado com força como agulhas. Uma onda de 40 pés começou a subir ligeiramente, atingiu alturas vertiginosas e de repente caiu. Amanda sentiu seu rosto empalidecer na tempestade.
Percebendo que as ondas eram maiores que o barco, ela engoliu em seco. Assemelhava-se a uma versão um pouco maior do navio de Caronte, o barqueiro do Hades. Seria completamente abocanhado pelas ondas, cada vez mais altas e mais próximas.
Quando o navio ondulou em um movimento violento do mar agitado, Amanda temeu por sua vida.
E de repente, para seu desespero, um trovão rasgou o horizonte, seguindo de um estrondo que estremeceu o mundo.
— Behmote! — alguém gritou no meio das instruções e desesperos dos tripulantes a bordo que corriam por todos os lados.
Quando Amanda olhou na direção que o lagarto marciano estava apontando, ela primeiro sentiu o sangue subir no meio de sua testa, então soltou um pequeno grito de terror, quando a forma gigantesca da coisa se iluminou em uma onda gigantesca subindo cada vez mais alto.
Assim que parou de tremer, um segundo trovão atingiu a tempestade repentina, revelando o que parecia ser uma enorme baleia. Uma baleia tão grande que poderia ser confundida com uma ilha. Não apenas baleias comuns. Por um momento, Amanda viu garras parecidas com caranguejos em vez de barbatanas, e uma carapaça gigante parecida com de um besouro.
— Ah, o rei do mar! — gritava seus captores, e até mesmo Siran, que ela julgou ser um homem frio e calculista.
Siran foi o primeiro a pular em um dos botes salva-vidas, gritando para os seus capangas abandonar o navio.
Todos eles começaram ou a pular no mar, ou procurar outros botes. Contudo, só existiam um, e ele alcançou o mar de forma violenta quando uma onda o atingiu.
Com os trovões riscando o céu outra vez, e o gigantesco monstro do mar pulou um pouco longe na ilha do horizonte escuro, Amanda deu-se conta de que o seu impacto na água viraria o barco.
— Não me deixem aqui! — ela gritou desesperada, puxando a corda que amarram em volta de seus pulsos.
Eles a abandonaram para morrer, presa na proa.
Seu rosto lavou de chuva e lágrimas, enquanto ela tentava se soltar. Olhou para o horizonte, mas a onda da enorme criatura estava tão perto, que Amanda não se lembrava o que acontecera no segundo que a lançaram para a violência do mar.
Amanda não sabia o que podia ser pior desde que viu aquela luz no fundo de sua guarda-roupas: ser tratada como uma bruxa por sacerdotes fanáticos, raptada por reptilianos ou ser lançada para o fundo do mar...
O barco virou, e agora morria afogada. Ela não conseguia respirar, e desistiu de tentar ao perceber que seus esforços para se soltarem eram em vão.
Amanda fechou os olhos, e sentiu a dor em sua alma antes do triste fim de sua vida. Ela ia morrer em Marte sem que seus pais soubessem seu paradeiro; sem conhecer Rafael. Ela não apareceria para sua formatura de engenharia mecânica em algumas semanas.
Então, uma violência tão intensa a sacudiu no fundo escuro do mar. Ela foi arremessada para longe, sentindo a mão se soltar. Seus pulmões gritavam por oxigênio e seu corpo se contorcia como um peixe saltando da água.
Quando estava no mar novamente, descobriu a agonia causada pelas correntes violentas. Ela bateu os pés, arrastando água com as mãos amarradas, desesperada por um pouco de ar.
Por um instante sentiu sua mente sumir e sua vista toda escureceu, mas seu instinto de sobrevivência fez com que acordasse novamente.
Alcançou a superfície e inalou profundamente, engolindo água com o ar. A água daquele mar era extremamente salgada, e ela também achou o oxigênio um pouco mais ardido.
Mas mal teve tempo para respirar. O gigante que chamaram de Behmote ainda estava atacando um enorme cardume de peixes debaixo dos pés de Amanda. Ela não tinha certeza de nada, mas por acaso os viu, pareciam lâmpadas saindo da água por puro instinto de sobrevivência.
Com um golpe da cabeça cascuda da criatura, ela foi arremessada para longe, batendo as costas em algo duro feito madeira. Antes que pudesse gritar de dor, ouviu um som oco, e sua cabeça estava prestes a explodir.
Ela fechou os olhos e não os abriu mais...
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Glossário
[1] Hijackers --- >são programas ou scripts que "sequestram" navegadores de Internet. Quando isso ocorre, o hijacker altera a página inicial do browser e impede o usuário de mudá-la, exibe propagandas em pop-ups ou janelas novas, instala barras de ferramentas no navegador e podem impedir acesso a determinados sites (como sites de software antivírus, por exemplo).
[2] Sekhem --- > é uma palavra egípcia que significa Poder ou Energia Cósmica.