23:00 – Ruas de Campo Grande
"Que friooooo!" Fazia apenas 5 minutos que havia saído do bar e Luciene já sentia a temperatura cair e o frio se instalar em seus ossos.
Ela havia deixado seu carro na casa de sua mãe após voltar com ela e seu irmão do hospital. Se acontecesse alguma coisa durante a noite, o irmão podia levá-la ao médico sem precisar esperar por um motorista.
Que não precise, mas se mãe for para o hospital de novo espero que Dr. Francisco esteja lá. Ele é um dos poucos médicos gentis naquele lugar. O resto parece cavalo batizado, só a graça. Pensou lembrando de como ele havia tratado de sua mãe, sendo rápido e atencioso, sem perder o sorriso simpático. Chegava a ser tranquilizador.
Entretanto, sua mãe morando sozinha e ainda mais sem um carro realmente não era bom. Já havia dito que seria bom ter um carro em casa para caso precisasse ou se houvesse uma emergência como a de hoje, mas sua mãe sempre diz que não precisa, que ela pode ir com sua bicicleta a qualquer lugar e um carro vai só ocupar espaço e juntar poeira.
Sabe dirigir, mas não quer ter carro! Vê se pode?
'Qualquer coisa peço ajuda a Valéria ou Eugênia' e 'Não se preocupe com essas coisas!' eram frases sempre ditas por dona Suely. Era muito próxima de suas vizinhas, Valéria morava à direita com o marido, César, e um menininho que amava conversar chamado Vinícius, e na esquerda morava Eugênia e seu Amaral.
Eram dois casais simpáticos, que dona Suely gostava de conversar e ajudar. Muitas vezes levava frutas quando as árvores estavam no tempo de dar e trocava receitas com as senhoras. Ela era estimada pelos quatro e o pequeno Vinícios até a chamava de vovó Su.
Mas, mesmo contando com a ajuda deles, poderia acontecer alguma situação inesperada, e pensar em sua mãe sozinha naquela casa preocupava muito Luciene. Não que um carro fosse ajudar muito nesse caso também, ah, o que deveria fazer? E nunca que mãe ia querer uma pessoa estranha dentro de casa...
Uma forte ventania bateu em seu rosto e a tirou de seus pensamentos lhe fazendo estremecer da cabeça à planta dos pés.
Quando chegou em casa do hospital, no início da noite, saiu apressada de casa para encontrar a equipe, - não queria fazê-los esperar tanto depois que avisou em cima da hora que iria - apenas tomou um banho rápido, pegou a primeira roupa que viu no armário, uma blusa de alça em tons de azul, sua amada calça preta, um saltinho básico, e saiu.
"Sabia que estava esquecendo alguma coisa. Ainda olhei pro casaco em cima do sofá, mas ele nem me olhou de volta." Luciene lamentou consigo baixinho, esfregando as mãos uma na outra. Agora só resta congelar até chegar em casa.
Mesmo cansada, Luciene amava caminhar noite adentro, por isso não se preocupou em chamar um carro quando saiu do restaurante. Mas a brisa fria, característica do início de outono, a pegou desprevenida na avenida principal. Quase se arrependeu de não aceitar que Victor a deixasse em casa.
Caminhando pela calçada, observava o movimento das pessoas na rua.
Sendo sexta a noite, muitas pessoas ainda circulavam na área comercial da cidade, os últimos cliente saiam lojas que iam fechando, alguns entravam nos restaurantes e bares, uma ou outra casa de festa e karaokês - eles tinham ficados populares atualmente com o aumento da busca pela cultura asiática - e outros estabelecimentos.
Alguns exibiam grandes placas de pessoas sorrindo ou convites sugestivos com seus principais produtos, outros tinham letreiros coloridos com luzes ou neon esbanjando promoções imperdíveis de um único dia que duraria todo o mês.
Parece que um novo jogador entrou com um empreendimento de alta classe na rua abaixo que está chamando atenção na última semana. Quem sabe se vai ser um sucesso total ao contrário de tantos outros.
Luciene soltou o cabelo antes amarrado em um coque alto. Os cachos soltos cairam pelos ombros e costas, barrando um pouco do vento e esquentando seu pescoço. Tática aprendida nas noites gélidas de Monte Nébula, cidade onde cresceu e se formou, que era bem diferente de Campo Grande.
Sendo uma cidade litorânea, poderia se imaginar que Monte Nébula seria grande e bem desenvolvida, com uma grande população estratificada e consequentemente outras coisas como alta desigualdade social e violência e todas as coisas que decorrem delas, mas aquela cidade era um pouco fora do padrão.
Ela era uma pequena cidade portuária ao norte da capital que tinha cara de cidade do interior. Claro que ela tinha shopping, universidade, um centro comercial, alguns prédios altos e outras coisas, mas a população era muito estilo interior.
Todo mundo se conhecia, as pessoas ficavam na porta de casa conversando e falando sobre a vida, com destaque para a vida alheia, não tinha muita violência, as crianças brincavam na rua sem tanto vício nos celulares, com certa ameaça dos pais é claro.
Era uma cidade tranquila onde a brisa do mar sempre soprava fresca e podia-se ouvir as aves no céu e, no silêncio das madrugadas, se estivesse perto o bastante e prestasse atenção, você poderia escutar o barulho das ondas batendo contra o quebra-mar.
Foram muitas as vezes que Luciene passeou no inverno - com um casaco - observando o entardecer na orla iluminada pelos últimos raios de sol, e muitas as madrugadas - quentes - que andou pelo parque próximo à sua casa nas noites de verão.
Às vezes, sob um céu claro e cheio de estrelas e outras na chuva, que podia passar de uma leve garoa para inundação em poucos minutos. Já chegara muitas vezes ensopada em casa quando mais nova por causa do clima bipolar da cidade.
Mas nunca foi uma apreciadora do frio. Ainda mais quando combinado com fortes rajadas de vento que se agarrava a sua espinha.
Por que ainda não inventaram teletransporte? Ia diminuir tráfico, poluição, ninguém ia chegar atrasado, nem precisava passar frio! Não que eu fosse ter dinheiro pra comprar um, provavelmente seria uma fortuna... Continuou andando a passo rápido com seus devaneios.
Algum tempo depois, enfrentando o vento de frente, Luciene finalmente chegou no ponto onde entraria no cruzamento e poderia deixar que a arquitetura da cidade a protegesse.
Atravessou a faixa e entrou na avenida à direita, com o vento foi finalmente bloqueado.
Faltava apenas atravessar o parque na saída seguinte e com mais duas ruas chegaria em casa, tomaria um banho quente, vestiria um moletom e meia e dormiria até meio dia de amanhã.
Com um sentimento de ansiedade para chegar em casa, Luciene apressou o passo enquanto pensava na última semana e o que faria a seguir.
A apresentação já tinha sido feita, os preparativos para o projeto só começariam em um mês, todos os documentos e planilhas estavam organizados e não tinha nada marcado até quinta.
Por enquanto era só descansar e monitorar os feedbacks dos clientes no trabalho. Teria mais tempo para ver sua mãe também. Talvez vá dormir algumas noites por lá. Sinto falta de tomar café junto e conversar. Foi tão corrido os últimos meses que quase não pude ir lá.
A luz da lua e das estrelas podia ser vista nas profundezas do parque, onde a iluminação artificial não chegava. Alguns morcegos voavam entre as árvores e até uma coruja podia ser ouvida ao longe.
Não eram muitos os carros que circulavam a essa hora por ali, então a rua estava deserta. Esse parque sempre tem um ar misterioso durante a noite. E o sereno deixa a terra com cheiro de chuva. É tranquilizante, mesmo que a luz não alcance algumas áreas, é acolhedor...
Sentindo o ambiente, Luciene diminuiu um pouco o passo e aproveitou a sensação de aconchego do parque, até a leve brisa que batia nas suas costas parecia menos fria. Acho que perdi a sensibilidade, estou nem mais sentindo tanto frio assim.
O parque era extenso. Com quase três quarteirões de comprimento seguindo paralelo à avenida Oceania, a união de frondosas árvores e milhares de flores, que agora dormiam, contrastava com o conjunto de condomínios de alto nível do outro lado da rua.
Se aproximando do fim do caminho, passou por trás da banca de flores que ficava na calçada do parque. Mas no silêncio, Luciene ouviu algo estalando ao longe.
O barulho de galhos se quebrando e folhas sendo sacudidas se aproximou e ganhou velocidade ficando cada vez mais alto, em sua direção.
Sua mente parou de funcionar por um instante. Parou de andar e olhou confusa para a escuridão do parque. Parecia um animal correndo entre as árvores, mas o som era tão forte que não podia ser um animal pequeno. "Mas o que…?"
A origem do som estava à sua frente.
A grande sombra bloqueou a luz da lua e era ela seu objetivo.
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