O som dos pássaros cantando entrava no quarto misturado com o barulho de motores e pneus vindos da avenida. Mesmo com as cortinas ainda fechadas, uma brisa leve passava pela janela aberta e deixava o ambiente aconchegante, convidando Luciene a fechar os olhos novamente e voltar a dormir.
Em meio à sonolência, tentou se virar em busca de uma posição mais confortável, mas a pontada fina da agulha fez questão de lembrar-lhe que deveria evitar se mexer muito.
Abrindo os olhos, Luciene encarou atordoada o teto branco em silêncio.
Por algumas horas, tinha esquecido tudo. Sua mente tinha ficado em branco, sem lembranças, sonhos, ou pesadelos. Não havia ninguem atrás dela, nenhum monstro negro de olhos vermelhos, abocanhando seu pescoço enquanto sangue fluia de seu corpo se empoçando ao seu redor.
A mente humana é assustadora.
Um único acontecimento pode criar inúmeros demônios invisíveis, janelas de memória que assassinam que se forçam a abrir.
Os próximos dias seriam os mais complicados, além de passar pela recuperação física, haveria também o choque mental. Provavelmente se tornaria o centro das atenções na empresa, com os curiosos e intrometidos querendo saber um novo detalhe do novo assunto em alta.
Antes da aprovação do Duan já haviam vários olhos procurando qualquer motivo para enterrar o projeto, e agora eles vão apenas aumentar. Luciene sorriu com um suspiro cansado, já pensando nas dificuldades que teriam que enfrentar pela frente. Nunca foi fácil de qualquer forma, e acho que dei sorte. Se tivesse sido semana passada não sei o que aconteceria. Acho que entraria em desespero...
Ela fechou os olhos novamente encostando a cabeça de volta no travesseiro não tão confortável, embora não chegasse a ser desconfortável também, só não conseguia achar a posição ideal. Inspirou fundo deixando que o ar frio limpasse seus pensamentos que tentavam encontrar os piores cenários possíveis.
Não era fácil lutar contra essa linha de pensamento, mas precisava tentar se manter positiva. Teria que encarar sua mãe super preocupada, amigos com milhares de perguntas e sermões, e uma melhor amiga com tendências histéricas. "Tô lascada"
Mais um suspiro. Esfregou uma mão no rosto, enquanto a outra descansava a seu lado, subindo depois para os cabelos, eninhando os dedos nos fios já assanhados. Acho que o único lado bom é que vou poder descansar um pouco do trabalho, não que eu vá ter uma licença muito grande, mas já é alguma coisa. Quero nem pensar no sermão que vou levar por não ter aceitado a carona de Victor ontem… e se minha mãe descobre essa parte...
"Haaa, queria um pastel com caldo de cana" Suspirou alto lembrando da melhor combinação de sua infância. Um pastel bem recheado saindo fumaça e um copo de caldo de cana trincado de gelo era tudo que precisava para melhorar seu dia que já tinha começado errado.
"Não sei se é a melhor combinação para o café da manhã"
Com um pulinho de surpresa, Luciene riu sem graça por ter sido pega por dr. Francisco falando consigo mesma. Ele entrou silenciosamente, com seu sorriso simpático no rosto, se aproximando com sua bolsa preta pendurada no ombro e segurando uma prancheta, que provavelmente era sua ficha médica.
"Teoricamente seria o lanche da manhã, já que comi depois que o senhor saiu mais cedo" Luciene sorriu levemente. Passou o olho rapidamente pela mão enfaixada pelo estrago da noite anterior antes de voltar o olhar para o outro.
Ouvindo a resposta divertida de Luciene, doutor Francisco sentou-se no banco com expressão pensativa antes de sorrir novamente "Acho que terei de concordar desta vez." Não havia se passado muito tempo, apenas o bastante para o sol esquentar do lado de fora e bater aquela saudade da tv Globlinho.
Dr. Francisco colocou sua bolsa no chão enquanto falava, e pegando o estetoscópio e medidor de pressão, voltou-se para Luciene "E como está se sentindo agora? Dor? Tontura? Mal estar? Fome?"
Ao ouvir a última pergunta, Luciene, que estava respirando fundo para que o outro ouvisse seus batimentos, tossiu pela surpresa até quase faltar ar.
"Isso sim foi uma grande reação" Falou Francisco riu animadamente, fazendo Luciene ficar com as bochechas levemente vermelhas de vergonha.
"O senhor falou tão sério que me surpreendi." Luciene falou baixinho olhando em direção à janela.
De repente as palavras da enfermeira Diana ecoaram na mente do médico lhe dando um arrepio na espinha: 'Não brinque com os pacientes em momentos sérios! Quer que eles te processem? Ou que tenham uma parada? O pobre senhor Hendricksen quase põe o pé na cova!'
Sentindo que havia falado na hora errada de novo, dr. Francisco se sentiu culpado "Ah, me desculpe" Claro que a situação não era a mesma, mas era melhor prevenir que remediar, e não queria levar carão de Diana de novo.
"Ah, não, não. Tudo bem! Não precisa." Falou Luciene meio atrapalhada com as mãos e negando firmemente com a cabeça. "Eu só falei porque me ajuda a me acalmar, me traz nostalgia, sabe? Mas não estou com fome! Comi bem mais cedo, Diana trouxe quase um banquete pra mim!" Ela misturou um pouco as palavras enquanto acelerava na fala, fazendo o médico rir.
"Se aquela gororoba sem gosto é um banquete, então acho que você realmente precisa de um pastel com, com o que? Caldo de cana? Deve ser uma combinação interessante! haha"
"O senhor nunca comeu?" Sua voz era um tom de surpresa e tinha pena em seus olhos. Pobre doutor, não teve infância….
"Não tinha isso onde eu morava, e nunca tive a oportunidade de experimentar quando vim morar aqui!" Falou meio sem jeito. Eu hein, pela forma que ela fala parece até que é uma ofensa!
"Entendi. Então acho que devo trazer da próxima vez."
"Prefiro não te ver no hospital por um tempo na verdade" Disse enquanto guardava os instrumentos na bolsa.
"Concordo plenamente!" Uma voz preocupada vinda da porta chamou a atenção dos dois para a senhora que passava pela porta aberta. A mulher usava uma saia longa florida com uma blusa de manga preta, pouco justa, com seus cabelos cheios, pretos e lisos que caiam em camadas por seus ombros, o que dava a impressão que ela fluía enquanto andava em sua postura elegante.
Ainda que começassem a aparecer alguns de seus fios brancos, já que fazia tempo desde a última vez que pintou, ninguém poderia chamá-la realmente de velha. Era uma senhora muito bonita. Seria muito agradável olhá-la se tivesse seu sorriso doce nos lábios, mas em vez disso, com lábios e sobrancelhas franzidas, com expressão aflita, caminhava ansiosa em direção à Luciene.
"Mãe" Apenas com essa única palavra dita de forma trêmula, todo o muro que Luciene tinha construído em sua mente desabou e ela, já com lágrimas nos olhos, esticou os braços em direção à sua mãe, que retribuiu com um abraço apertado.
Sentando na cama, Suely trouxe sua filha mais para perto a aconchegando num caloroso abraço que apenas as mães sabiam dar. Aquele que dá segurança para que possa chorar todas suas lágrimas, dá calor para curar todas as feridas do coração, e força para superar as dificuldades.
Suely acariciava seus cabelos falando palavras de conforto "Está tudo bem. Sua mãe está aqui agora" Ela sussurrou enquanto Luciene soluçava em seus braços. Ficaram assim por algum tempo.
Francisco se afastou para dar um pouco mais de privacidade às duas. Olhando para elas sentiu falta de sua própria mãe que há tanto tempo não via. Vou ligar pra ela mais tarde. Prometeu em seu coração com um sorriso leve nos lábios.