O mundo está escuro. Não há luz, som, ou cheiro.
Não há dor, desespero, medo.
Não me movo, não penso, não sinto.
Flutuo no ar.
Essa paz estática pareceu durar para sempre, mas a gravidade me puxou novamente.
Estou deitada. É quente. Mas está tão frio.
A dor volta como um choque em cada uma de minhas células. Dói, queima, faça parar!
Um cheiro doce me abraça. Me leva novamente para o sonho que estava.
É tão confortável que posso dormir pra sempre.
...
Uma eternidade se passou em poucos minutos.
Muitas coisas aconteceram, mas Luciene não estava ciente de nenhuma delas.
Em algum momento o silêncio foi quebrado e ouviu vozes ao longe. Diziam algo como 'ainda não acordou' 'está bem' 'vou verificar' 'cuidado'. Não falavam com ela, mas sobre ela, talvez. Elas flutuavam ao longe, ondulando em seu sonho como sussurros de outro mundo.
Tentou prestar atenção no que as vozes diziam, mas elas estavam abafadas, demoravam muito para voltarem e seus ouvidos chiavam com um som de estática. 'Está tão longe, estou tão cansada.'
Seu corpo estava pesado. Seus membros não pareciam querer obedecê-la, e em algum momento enquanto pensava se devia chamar pela voz, acabou caindo no sono novamente.
Então finalmente algumas horas se passaram para que ela conseguisse acordar realmente.
"Hum…" 'Ahn? O que? Onde eu estou? Minha cabeça...' Ela abriu os olhos, mas estava confusa, o mundo parecia girar dando voltas completas em segundos.
Fechou os olhos com força esperando o mal estar diminuir, só conseguindo abri-los novamente depois de alguns minutos, para lentamente se acostumar com o cômodo escuro, onde apenas uma fresta de luz fraca atravessava pesadas cortinas de tecido à direita e definia algumas das sombras que começavam a tomar forma de objetos.
Não conseguia pensar direito, muito menos se lembrar de como havia chegado ali, seu corpo estava pesado, seus membros estavam quase dormentes e mesmo para mover o pescoço requeria toda sua força de vontade.
Sua cabeça latejava com uma enxaqueca insuportável, apenas de olhar ao redor sentia o sangue pulsar em seu cérebro, e seus olhos doíam como se fossem cair ao encontrar com a tímida luz que passava pelas cortinas e chegava aos pés da cama em que estava deitada.
Deitada num colchão não muito macio, quase desconfortável, Luciene não sabia exatamente onde estava, mas não era um lugar desconhecido, principalmente o cheiro lhe era muito familiar. O cômodo cheirava a água sanitária, desinfetante e álcool.
Com certeza já estivera ali. Onde era mesmo?
Enquanto pensava tentando se lembrar, tomou um susto com o barulho de uma porta, que ainda não tinha percebido, sendo aberta com um rangido que soou alto no ambiente silencioso. Uma grande quantidade de luz branca entrou do corredor claro, invadindo o quarto e Luciene teve de desviar o olhar com olhos fechados para não ser incandeada pela luz.
"Ah, você já está acordada?" Uma voz familiar se espalhou pelo quarto silencioso, alegrando Luciene, que olhou surpresa em direção à porta onde um homem alto de jaleco sorria para ela.
"Doutor Francisco?" Perguntou surpresa, e parecendo finalmente se lembrar de tudo o que havia acontecido durante a noite. Muitas perguntas dispararam em sua mente, mas, contrariando seu anseio por respostas, sua garganta queimou dolorida com apenas aquelas duas palavras, fazendo com que tossisse.
"Você realmente me deu um susto, garota! Nunca pensei que encontraria você daquele jeito depois de sair toda sorridente com dona Suely e o Matheus!" Disse o médico que Luciene chamava de doutor Francisco, fechando a porta e se aproximando rapidamente da cama de hospital.
Apesar do tom de repreensão, o olhar do doutor era preocupado e seu sorriso gentil e aconchegante. O que acalmou Luciene e a deixou mais tranquila ao ver um rosto conhecido. 'Então é por isso que o cheiro é tão familiar...'
"Como está se sentindo?" Ele perguntou com voz calma, enquanto enchia um copo com água de uma jarra em cima de uma bandeja ao lado da cama.
"Parece que fui atropelada por um caminhão depois de correr uma maratona no deserto" Falou baixinho e meio rouca com a garganta dolorida.
"Nesse caso, imagino que queira um pouco de água depois de tantas emoções?" Disse parando ao seu lado lhe oferecendo o copo.
A brincadeira a fez sorrir.
Levantou a mão esquerda para pegar o copo, mas a dor a fez parar no meio do caminho colocando o braço devagar e delicadamente de volta na cama. Só naquele momento percebeu o cateter com soro no braço e a mão enfaixada e imobilizada.
Esticando um pouco o braço direito, com um sorriso triste, pegou o copo que lhe era oferecido, ouvindo um "sem pressa" do doutor, e bebeu a água em pequenos goles. Lentamente. Sua garganta estava seca e ardia, mas o líquido descia frio dando uma sensação de alívio.
Quando Luciene terminou de beber, o Dr. Francisco puxou um banquinho alto próximo à parede mais para perto, sentou-se e retirou uma pequena lanterna do bolso "Siga meu dedo com olhos, sim?" Disse enquanto apontava a lanterna e movia o indicador na frente do rosto de Luciene, que seguia as instruções.
"Vamos agora com algumas perguntas de rotina" Falou enquanto pegava o aparelho de pressão na bolsa que tinha trazido consigo e retirava o estetoscópio do pescoço para verificar seus batimentos.
"Qual seu nome completo?"
"Luciene Dimar"
"Idade?"
"26"
"Onde mora?"
"Rua Edmundo de Caxias"
"Você se lembra do que aconteceu?"
"Eu fui… atacada." Sua voz saiu trêmula e cenas do acontecido corriam por sua cabeça. Todas as lembranças vieram de uma vez como um furacão. Lembrou da fuga, da luta, do medo, de pensar que ia morrer. Seus ombros tremeram, sua respiração acelerou e sentiu que o ar não chegava a seus pulmões.
'Eu vou morrer! Eu vou morrer! Eu vou morrer! ELE VAI ME MATAR!'
Um aperto em seu ombro a trouxe de volta. "Luciene!" O médico chamou em tom de urgência "Calma, está segura agora. Respire fundo. Inspire, Expire" Fechando os olhos e tentando se acalmar, Luciene seguiu a voz do doutor. "Isso, continue. Inspira, expira. Inspira…"
O ar entrou e saiu, entrou e saiu, e assim fez seguindo a voz ao seu lado.
Quando conseguiu se acalmar, abriu os olhos. Olhando para frente, com seu olhar perdido, relembrando o último momento daquela noite, uma lágrima desceu por seu rosto e abrindo os lábios trêmulos sussurrou mais para si do que para o médico. "Pensei que ia morrer ali"
Alguns momentos de silêncio se passaram até a voz do médico ser ouvida: "Está tudo bem agora." A certeza na voz dele fez com que Luciene virasse para olhá-lo "Você vai ficar bem, ok?"
Luciene acenou com a cabeça. Outra lágrima rolou de seus olhos. Agora ela pode acreditar nisso, certo? Vai ficar tudo bem. Repetiu esse pensamento consigo para gravá-lo em seu coração 'Vai ficar tudo bem. Eu vou ficar bem.'
Vendo que Luciene estava mais tranquila, apertou gentilmente seu ombro para passar um pouco de confiança. Olhando para suas próprias palmas abertas em seu colo, o médico o sangue voltar lentamente para a mão que antes estava fechada fortemente em punho pela raiva que sentiu.
Ele precisava se acalmar e fazer seu trabalho. Aquela raiva não ia ajudar nem Luciene, nem os outros pacientes.
"Devido à situação que você chegou, tivemos que seguir o protocolo e entrar em contato com a polícia por ser provavelmente um caso de agressão." Falou o doutor em tom calmo.
"Entendi" Respondeu Luciene com um sorriso triste. Tinha saído de 'nunca fui assaltada para quase assassinada' em um período muito curto. 'Parece que estou dentro das estatísticas agora.'
"Eles virão no final da manhã, mas vi que eles entraram em contato com seu irmão quando ele estava aqui."
"Matheus estava aqui?" Falou surpresa.
"Sim, até quase duas da manhã, mas depois que ele me disse que tinha saído de casa sem avisar a mãe de vocês, falei a ele que seria melhor ele ir e voltar depois para não preocupar ela. E levando em conta que dona Suely estava aqui ontem, não é aconselhável ela estar sozinha, dada a situação"
"Aquele pirralho… claro que não! Como ele pode deixar mãe sozinha em casa?"
"Ele estava preocupado com você" Luciene estava irritada com a irresponsabilidade de seu irmão, mas ao ouvir que Matheus estava preocupado com ela, sentiu vergonha de si.
Baixou a cabeça e disse envergonhada "Sim...acho que… o senhor deve estar certo" 'Talvez ele tenha ficado desesperado e resolveu não falar nada com mãe para não deixar ela mais preocupada comigo de repente no hospital.'
Então uma pergunta que não ela não tinha pensado surgiu: 'Como eu vim parar aqui?'
"Como você está acordada vou chamar a enfermeira para trazer algo para você comer e trocar o soro já que ele est…"
"Doutor Francisco?" De repente interrompendo o médico que já se levantava e virava em direção a porta, Luciene perguntou confusa "O que aconteceu?"
"Sobre que?" Olhando para ela confuso, o médico pareceu não entender o questionamento.
"Como… como que eu vim parar aqui? Quero dizer, estava ao lado do parque e eu desmaiei acho. O que aconteceu? Como vim para o hospital?"
Não apenas isso, mas toda aquela situação parecia loucura para Luciene. Principalmente aquele homem no parque, ele não era normal.
'Afinal, o que aconteceu comigo?'