— Você deve fazer isso em um tempo menor que antes. Se não seu almoço vai ficar pela metade. — Merlin disse, enquanto estava sentado num gramado ao lado da pirâmide, observando Ismael puxar uma rocha de uma tonelada com uma grossa corda por dúzias de metros usando sua Magia de Reforço Físico.
Mesmo com seus poderes, era um esforço tremendamente grande para seu corpo, que mal havia começado a se acostumar com a nova rotina pesada.
Já haviam se passado uma semana e meia desde que o grupo começou a morar no templo do Santuário, e os quatro adolescentes já estavam encontrando vários desafios, sendo obrigados a começar a aprender como sobreviver, fazer suas próprias comidas a partir de carne caçada e frutas coletadas, preparar água para beber, e ainda tinham que se preocupar com seu professor, que era bem exigente quanto ao seu aprendizado. Era um dia a dia difícil de se adaptar.
Ainda assim, o treinamento delas não era tão duro quanto o de Ismael. Durante a manhã, elas faziam sua primeira refeição enquanto observavam ele e Merlin treinando todos os dias, como estavam fazendo naquele momento.
— Ele demorava bem mais para puxar a pedra até o lugar marcado. Já tô vendo que ele melhorou um pouco. — Ana comentou, ao mesmo tempo que comia uma fruta da floresta. Suas duas amigas estavam ao seu lado, também assistindo e se alimentando.
— A gente já tem que fazer tanta coisa ao longo do dia. Não sei como ele aguenta um treino tão duro logo de manhã. — Disse Gabrielle, após terminar seu prato matinal.
Por algum motivo, Vivian ficava em silêncio, espectando tudo o que acontecia com atenção. Simultaneamente, seus olhos demonstravam um olhar distante e pensativo, que se repetia toda vez que ela se sentava para ver aquela cena habitual. Era algo que a garota já havia feito por dias até então.
O tempo passou rápido. Logo a manhã virou tarde, e o grupo teve que ir buscar alimento e água na mata próxima. Como era de costume, nestas horas, o professor dava uma aula de sobrevivência prática, na qual ensinava técnicas e ajudava o grupo a fazer suas tarefas. Quando voltaram ao templo, já era o horário das aulas normais, que duravam até a noite.
Todos estavam calmamente fazendo seus exercícios de matemática, algo que a maioria dos estudantes não era bom. Merlin, porém, tinha uma didática que facilitava bastante o entendimento da matéria, e era surpreendentemente atencioso nos momentos de dificuldade, demonstrando passo a passo para os alunos como resolver os problemas, sempre com bastante paciência.
Ao final da lição, todos entregaram seus exercícios. Vivian estava se sentindo orgulhosa por seu progresso na disciplina, pois ela era muito mais adepta de matérias linguísticas, não tendo nenhum desempenho acima da média em exatas. Mesmo assim, ela havia sido capaz de resolver várias questões sobre funções sozinha. Sua satisfação e alívio atingiu o auge ao ver seu educador marcando a maioria dos cálculos como corretos, enquanto deixava anotações nos pontos incorretos em que ela devia melhorar.
O que ela normalmente faria em seguida seria descer para seus aposentos, como Gabrielle e Ismael já haviam feito, mas uma coisa lhe chamou a atenção. Antes que começasse a descer as escadas, ela escutou Ana iniciar uma conversa com Merlin. Seguindo sua curiosidade, ela deu meia volta.
— Professor, eu também quero entrar para o Esquadrão de Exorcistas. Quero participar das aulas da manhã! — Vivian imediatamente parou e observou, espantada pela fala de Ana e antecipando o desenrolar do diálogo.
— Você realmente parecia estar interessada ultimamente. Está realmente pronta para encarar o regime de treino pesado? — O professor encarou com seriedade o pedido, e fez a pergunta para confirmar a vontade da garota na sua frente. Sem titubear, ela respondeu com um sorriso no rosto.
— É como eu disse antes, talvez essa seja uma ótima chance para fazer algo de bom com esses poderes que tenho! E também quero explorar meu potencial ao máximo. — O homem assentiu, aceitando o pedido.
— Como quiser. Esteja acordada às sete e meia. Coma um café da manhã reforçado também. Você vai ralar. — Ele disse, enquanto ia guardar seu material de ensino. Ana soltou uma risada de alegria e voltou a andar em direção ao seu quarto, mas deu de cara com sua amiga no caminho.
— Ah, você escutou? — A aspirante a Exorcista parecia bem empolgada. Sua espantada colega não sabia ao certo como reagir.
— Sim, escutei sim! Parabéns! — Foi o melhor que ela foi capaz de dizer, mas a maneira estranha com a qual reagiu não passou despercebida. Ana não comentou nada a respeito naquele momento, porém notou que Vivian não estava agindo como de costume. O tom de sua voz demonstrava sentimentos fabricados.
Mais tarde, já na hora de dormir, a garota dos cabelos cacheados estava deitada, lendo um livro, aguardando quando iria começar a pegar no sono que parecia nunca chegar. Quando menos esperava, dois toques na porta de seu quarto interromperam a leitura.
— Pode entrar. — Vivian respondeu. A porta foi aberta, revelando ser Gabrielle quem estava do outro lado.
— Desculpa te interromper. — Ela disse, ao passo que entrou no quarto e encostou a porta.
— Imagina. Só não esperava que estivesse acordada. — Vivian falou, a medida em que se sentava em seu leito, fechando o livro em suas mãos. Sua amiga se sentou ao seu lado para dialogar logo em seguida.
— Eu queria conversar. Tem algo acontecendo com você? A Ana parecia um pouco preocupada. — Ao escutar aquela pergunta, a menina suspirou.
— Devia ter imaginado que ela ia perceber. — Antes de continuar sua fala, ela se moveu para apoiar suas costas na parede e cruzou as pernas. — ...Eu não sei mais o que quero fazer. Eu não imaginei que aqueles dois iriam decidir virar exorcistas. Entendo como eles se sentem, mas eu nunca imaginei esse tipo de vida para mim. Não sei se tenho vontade ou coragem pra encarar uma vida perigosa dessas. Mas também não quero que nenhum de vocês se afaste de mim. Não agora que preciso tanto de vocês. — Seu olhar se desviou para longe de sua companheira quando ela sentiu algumas lágrimas se formarem.
O choro foi causado por seus sentimentos acumulados;angústia, saudades, ansiedade e medo, causados pela situação na qual todos se encontravam. Ao mesmo tempo que tentava limpar as gotas que desciam seu rosto com sua blusa, Gabrielle se aproximou e a puxou com seus braços para um abraço.
— Eu sinto o mesmo Vivian. Nunca considerei viver uma vida assim. Pelo menos não até o professor me dizer que eu pareço ter um enorme potencial com magia medicinal. Se naquele momento em que você levou um tiro eu tivesse aquele poder, eu não teria me sentido tão impotente. — Os braços da garota pálida soltaram sua amiga, e ambas se encararam olho por olho.
— Eu não sinto que sou boa para fazer muitas coisas. Só que, se eu realmente tenho essa habilidade que pode ser útil, não só para mim, mas para as pessoas que considero importantes, eu quero fazer uso dela. Ainda mais se eu puder tornar a vida de gente como nós melhor. Por isso, eu estou disposta a me tornar uma exorcista se nós quatro continuarmos juntos. — As lágrimas pararam. Vivian limpou seu rosto e respirou fundo.
— Você tem que fazer o que você quer fazer. Não o que seus amigos querem. Você tem outros sonhos, eu sei disso. Tipo, você não gosta de dançar? — Ela respondeu, pensando que talvez Gabrielle estava tomando esta atitude somente por influência.
— E eu não vou abandona-los. Talvez eu tenha menos tempo para me dedicar a eles, mas não significa que é o fim. Mesmo se eu realmente seguir este caminho, eu não vou deixar de querer dançar. Eu estou fazendo isso por que eu quero Vivian. — A adolescente permaneceu em silêncio ao escutar essas palavras de sua parceira. Era extremamente raro que ela dissesse palavras motivadoras como essa. Um pequeno riso escapou de seus lábios.
— Gabi, você é incrível mesmo. Muito obrigada. Deus do céu, e de pensar que geralmente era eu quem te dava esse tipo de conselho. Não imaginei que você era capaz de fazer isso tão bem assim. — A face de Gabrielle corou, e ela virou seu rosto para longe, envergonhada.
— F-foi mal! Eu só quis dizer o que eu sentia. Meu coração tava quase saindo pela boca por que eu não sabia se estava falando coisas boas. Me desculpa, talvez eu tenha falado demais. — A personalidade normal da tímida garota retornou de uma só vez. Vivian riu novamente, ainda mais alto.
— Ei, corta essa. Você disse coisas bem sábias. Me ajudou de verdade. — O diálogo das duas amigas continuou por mais algum tempo, até que elas finalmente foram dormir.
Dois dias depois, Merlin estava sentado no gramado, degustando algumas frutas enquanto aguardava o horário do início das aulas, observando os cristais da caverna ficarem mais claros à medida que o Sol subia mais alto do lado de fora da caverna.
— Hm... já é hora. Vamos lá. — O homem disse ao olhar seu relógio de pulso. Ele deu meia volta e se deparou com a visão inusitada de seus quatro alunos descendo a pirâmide antes mesmo que ele começasse a subir-lá para os acordar. Ele não deixou de notar nas duas garotas que não precisavam acordar tão cedo, mas estavam lá.
— Tem mais gente aqui do que eu tava esperando. O que aconteceu? — O professor perguntou, cruzando os braços. Os discípulos se aproximaram e se colocaram diante de seu mestre. Vivian deu um passo à frente.
— Professor, nós conversamos agora a pouco sobre o que iremos fazer depois de acabar o treino aqui no Santuário. Decidimos que nós vamos tentar formar uma equipe de Exorcistas. Por isso, de agora em diante, todos nós vamos treinar duro. Não vamos deixar que outros magos passem pelo o que passamos, e nós vamos continuar juntos. — A firmeza da declaração e a determinação nos olhos dos quatro deixou Merlin completamente surpreso. Seus braços se descruzaram e ele respirou fundo.
— Tudo bem. Então vamos começar de uma vez. — Ele disse calmamente, enquanto dava as costas para o grupo. Eles sorriram uns para os outros antes de começarem a seguir seu mestre, que escondeu seu próprio sorriso deles ao mesmo tempo que pensava; — Eu já vivi mil e quinhentos anos e nunca vi pessoas como esses quatro. Estou ansioso para ver o quão longe eles podem ir.