No último de seu despertar, a luz passou a entrar pela janela indicando que o dia já havia amanhecido. Vargo sentiu uma pontada no estômago, uma sensação que já era uma velha conhecida. Fome, percebeu ele. Como uma lembrança agridoce de seus dias no laboratório quando ele pulava refeições para se dedicar aos seus experimentos.
Porém, ele não estava mais em seu laboratório, no momento seguinte, Helena o pegou no colo, o alimentando carinhosamente. Nesses instante Vargo sentiu o calor do corpo de Helena, o cheiro suave de sua pele, o som de seu coração batendo, e de sua voz carregada de zelo e carinho. E, pela primeira, ele sentiu uma conexão, um vínculo. Pela primeira vez ele tinha uma mãe, Helena, a mulher que o alimentava, que o protegia, que o amava. Uma emoção completamente nova, complexa, começou a florescer dentro dele, algo que ele nunca havia experimentado em sua vida anterior. Era algo além da ciência, diferente do orfanato que ele cresceu ou dos laboratórios que ele dedicou à sua vida, era algo novo, algo que tocava a alma. E, pela primeira vez, Vargo sentiu que talvez, apenas talvez, ele pudesse encontrar um lar.
Então um movimento ao seu lado tirou Vargo de seu devaneio. Kael, que antes dormia profundamente ao lado de Helena, acordou, se espreguiçou e sentou-se na cama, esfregando os olhos. A luz fraca da manhã revelava seu rosto marcado pelo sono, mas seus olhos castanhos logo encontraram os de Helena, e um sorriso gentil se formou em seus lábios.
"Bom dia", Kael murmurou, sua voz rouca pelo sono. Ele se inclinou e beijou Helena na testa, e então, com um olhar carinhoso, direcionou sua atenção para Vargo, que estava aninhado nos braços dela.
Kael estendeu a mão e acariciou a cabeça de Vargo com a ponta dos dedos, um gesto de puro afeto. "Bom dia, pequeno", disse ele, com ternura. "Dormiu bem?"
Vargo, é claro, não entendeu a pergunta, mas sua resposta foi um grunhido de bebê que Helena achou fofo.
"Ele está faminto", disse Helena, sorrindo para Kael. "Ele comeu bastante desde que acordou."
Kael riu baixinho. "Puxou ao pai", brincou ele dando mais uma risada. "Vou preparar algo para nós." Disse ele. Então se levantou, vestiu uma camisa de linho, e se dirigiu para a cozinha.
Helena, com Vargo ainda em seus braços, o acompanhou com o olhar. Ela não o largou em nenhum momento, um instinto protetor a impedia de deixá-lo sozinho. Ela se levantou com cuidado, embalando Vargo, e se sentou em uma poltrona confortável perto da lareira, onde o calor das brasas ainda irradiava.
Kael começou a preparar o café da manhã, os sons e aromas da cozinha preenchendo o ambiente. O cheiro de pão fresco sendo assado, o estalar da lenha no fogo, o tilintar dos utensílios… tudo criava uma atmosfera acolhedora e familiar.
Enquanto isso, no quarto de hóspedes, Elisabeth e Sophy começaram a despertar. Os primeiros raios de sol, filtrados pelas cortinas, as acordaram suavemente. Elas se levantaram, vestiram-se e se dirigiram à sala principal, onde encontraram Kael terminando de preparar a refeição.
"Bom dia", Elisabeth cumprimentou, com um sorriso. "O cheiro está ótimo."
"Bom dia", Sophy ecoou, um pouco mais tímida.
"Bom dia", Kael respondeu, colocando uma chaleira no fogo. "Sintam-se à vontade. Já está quase pronto."
A conversa começou a fluir naturalmente, enquanto todos se reuniam ao redor da mesa.
E depois que terminaram de falar sobre Vargo o assunto principal momentaneamente se tornou o clima e a incidência de monstros na região. Que ao contrário dos anos anteriores estava muito mais frio, e os monstros mais ativos e agressivos, indicando que tinha alguma coisa errada acontecendo.
"Este inverno está sendo mais rigoroso do que o normal", comentou Elisabeth, franzindo a testa. As nevascas estão mais intensas, e o frio… mais cortante."
"Sim", concordou Kael, servindo o café. "Porém, os ataques de monstros estão mais frequentes que o comum. As pessoas estão ficando com medo."
"Há relatos de criaturas estranhas, vindas das montanhas", acrescentou Sophy, com um arrepio. "Monstros que nunca vimos antes nessa região."
"Precisamos investigar isso", disse Elisabeth, pensativa. "Vou passar na guilda antes para ver se consigo alguma informação enquanto estudo sobre a magia de cura azul."
Helena, que até então permanecia em silêncio, embalando Vargo, finalmente falou. "Eu concordo. Mas tome cuidado, a cidade tem ficado mais perigosa desde que o inverno se intensificou, e se quiser você é sempre bem-vinda para ficar aqui em casa o tempo que precisar."
E logo o clima se acalmou com o foco da conversa voltando para Vargo. Que estava aninhado nos braços de Helena, observando e escutando atentamente. Ele não entendia a maioria do que era dito, mas algumas palavras começavam a se destacar. "Mamãe", Helena repetia com frequência, apontando para si mesma. "Papai", Kael dizia, tocando o próprio peito.
Vargo repetiu mentalmente, associando as palavras aos rostos. Ele percebeu que Kael e Helena tentavam se comunicar com ele, usando palavras simples e gestos. Mas, por mais que quisesse responder, ele se conteve. Ainda não, pensou ele. Seria estranho demais. Preciso aprender mais, entender melhor este mundo, antes de revelar quem eu realmente sou.
Os dias se desenrolaram em uma rotina suave e reconfortante, pontuada pelos ritmos naturais da vida familiar. O sol nascia e se punha, a lareira crepitava, a comida era preparada e compartilhada, e Vargo, o bebê com a mente de Aureus, continuava sua silenciosa observação e aprendizado.
As semanas se acumulavam, e com elas, o vocabulário de Vargo crescia exponencialmente. Ele absorvia cada palavra, cada entonação, cada gesto, construindo um mapa mental da língua daquele mundo. Aprendeu a associar palavras a objetos, ações e emoções. E entendia quando Helena falava sobre "frio", fome", "sono" ou "amor". Ele compreendia quando Kael falava sobre "espada", "monstro", "cidade" ou "trabalho".
Mas, apesar de sua crescente compreensão, Vargo se mantinha fiel ao seu plano. Ele se comunicava apenas por meio de resmungos, balbucios e gestos típicos de um bebê. Ele imitava os sons que Helena e Kael faziam, respondia aos seus carinhos, chorava quando estava com fome ou desconfortável. Ele desempenhava o papel de um bebê perfeitamente, escondendo sua verdadeira inteligência por trás de uma fachada de inocência.
As interações dentro da casa eram repletas de momentos de ternura e aprendizado. Helena, com Vargo sempre em seus braços, se dedicava integralmente a ele. Ela o alimentava, o embalava, cantava canções de ninar em uma língua que Vargo, gradualmente, começava a decifrar. Ela passava horas conversando com ele, apontando para objetos e nomeando-os, estimulando seu desenvolvimento.
Kael, sempre que estava em casa, participava ativamente dos cuidados com Vargo. Ele o segurava no colo, brincava com ele, fazia caretas engraçadas que arrancavam risadas (ainda que fosse apenas para entrar no clima) de Vargo. Ele contava histórias sobre suas aventuras, mesmo sabendo que o bebê não entendia, criando um laço afetivo entre eles.
Até que em uma dessas tardes, Kael, com uma expressão séria, se preparava para sair. Ele vestia sua armadura de couro, afiava sua espada e checava seus equipamentos.
"Recebi um chamado da guilda", explicou ele a Helena, que escutava com Vargo em seu colo. "Há relatos de uma tribo de Goblins atacando as fazendas ao norte da cidade."
Helena assentiu, preocupada. "Tome cuidado", então perguntou. "Você vai sozinho?."
Kael se aproximou e beijou a testa de Helena e, em seguida, acariciou a cabeça de Vargo. "Eu volto logo", prometeu ele. "Elisabeth irá comigo. A guilda de magos solicitou auxílio e ela aceitou a missão" respondeu Kael.
"A magia dela será útil contra essas criaturas", disse Helena, um pouco mais aliviada. "Mas ainda assim, tomem cuidado. Os goblins podem ser pequenos, mas são traiçoeiros e numerosos."
"Nós sabemos", respondeu Kael, com um sorriso tranquilizador. "Já enfrentamos goblins antes. Não se preocupe." Ele se virou para Elisabeth, que estava terminando de preparar sua bolsa com ervas e poções. "Pronta?"
Elisabeth assentiu. "Sim. Vamos?."
Antes de partirem, Elisabeth se aproximou de Helena e Vargo. "Não se preocupe, Helena", disse ela, com sua voz suave e reconfortante. "Sophy ficará com vocês. Ela pode não ser uma maga de combate, mas é esperta e vai te ajudar enquanto estivermos fora."
Sophy, que estava parada perto da porta, corou um pouco com o elogio. "Eu vou protegê-los", disse ela, com determinação.
Helena sorriu para a jovem elfa. "Eu sei que sim, Sophy. Obrigada."
Com um último aceno de despedida, Kael e Elisabeth partiram, deixando Helena, Vargo e Sophy sozinhos na casa.