Os três dias desde a chegada de Renier, Aura e Malo à Cidade Fronteira foram intensos, mas cheios de propósito. Renier e Aura haviam rapidamente se tornado figuras icônicas na cidade, principalmente entre os soldados e membros da Guilda dos Exploradores. Suas incursões incansáveis na Floresta Perdida, sempre voltando cobertos de sangue, mas com os corpos dos monstros que derrotavam arrastados atrás deles, davam uma sensação de esperança ao povo. Pela primeira vez em anos, o Dia do Demônio parecia ser um desafio que poderiam superar.
Enquanto isso, Malo assumia uma tarefa de igual importância: cuidar de Anastasia e de sua filha, Anny. Atendendo ao pedido de Renier, ela protegia a família enquanto ele e Aura enfrentavam os perigos da floresta. Malo, sempre disciplinada, também ganhou uma nova responsabilidade inesperada. Anny, com apenas 10 anos, decidiu que queria ser como Renier, o Guardião Negro. Determinada a se tornar uma protetora, ela pediu a Malo que a treinasse.
Nos fundos da casa de Anastasia, o som de madeira se chocando ecoava. Malo, com um sorriso provocador, se esquivava dos golpes impetuosos de Anny, que empunhava uma espada de madeira com toda a força que seu pequeno corpo podia reunir. Malo, por outro lado, era ágil e precisa, desviando com leveza e, de vez em quando, desarmando a menina com movimentos calculados.
— Vamos lá, Anny — disse Malo, sua voz carregada de confiança. — Se você quer ser como o Renier, vai precisar fazer muito melhor do que isso. Você ainda não chegou nem perto de acertar um golpe.
Anny, suada e determinada, cerrou os dentes enquanto voltava a sua postura de ataque. Seus olhos brilhavam com a mesma intensidade que Renier tinha quando enfrentava adversidades. Ela respirou fundo e avançou novamente, tentando variar os movimentos. Malo, com facilidade, esquivou-se mais uma vez, girando com elegância e colocando a ponta da própria espada de madeira contra a lateral da barriga de Anny.
— E mais uma vez, você estaria fora de combate. — Malo riu suavemente, balançando a cabeça. — Nem a senhorita Aura teria dificuldade em lidar com você desse jeito.
— Eu vou conseguir! — gritou Anny, levantando-se rapidamente do chão e segurando firme sua espada. — Eu vou ser forte, igual ao Renier e à senhorita Aura. Eu vou proteger a mamãe, e ninguém nunca mais vai machucar ela!
Malo observou a paixão nos olhos da menina e por um momento suavizou sua expressão. Anny era jovem, mas sua determinação era genuína e inspiradora. Malo sabia que a garota tinha potencial, mas também sabia que precisaria de muito mais para alcançar o nível de força que almejava.
— Tudo bem, pequena guerreira. Vamos tentar de novo. Mas desta vez, lembre-se: força sem estratégia não serve para nada. Preste atenção nos meus movimentos. — Malo deu um passo para trás, assumindo a postura de defesa. — Se você não aprender a antecipar os movimentos do inimigo, nunca vai conseguir vencê-lo.
Anny assentiu com firmeza, limpando o suor da testa antes de avançar novamente. Embora continuasse sendo desarmada e derrubada pela experiente Malo, sua determinação não vacilava. Cada tentativa parecia fortalecer não apenas seu corpo, mas também seu espírito.
Enquanto isso, dentro da casa, Anastasia observava a cena pela janela, um sorriso melancólico em seus lábios. Ela estava grata por Renier ter colocado Malo ao seu lado e por sua filha ter alguém tão confiável para guiá-la. Mas, ao mesmo tempo, não podia deixar de se preocupar. Anny era apenas uma criança, mas já carregava nos ombros o desejo de proteger sua família, algo que Anastasia sabia ser tanto uma bênção quanto uma maldição.
A noite já havia caído quando Renier e Aura chegaram à casa de Anastasia, seus passos ecoando no chão de pedra enquanto o ar da cidade parecia finalmente repousar. Assim que atravessaram a porta, Anastasia veio recebê-los, mas seu sorriso acolhedor logo se desfez ao ver o estado dos dois. Seus olhos se arregalaram ao notar os cortes e o sangue manchando suas roupas.
— Meu Deus, o que aconteceu com vocês?! — perguntou, sua voz carregada de preocupação enquanto seus olhos analisavam cada machucado.
Renier, com um sorriso despreocupado, deu de ombros.
— Foi apenas um deslize. Encontramos um monstro que cria armadilhas na floresta, nada demais.
Aura cruzou os braços, lançando um olhar irritado para Renier.
— Um deslize? Você quase nos matou! — acusou. — Só avisou sobre o buraco cheio de espinhos quando já estávamos caindo nele!
Renier soltou uma risada curta, coçando a nuca.
— Os Olhos das Revelações ajudam em muita coisa, mas nem sempre são perfeitos. Senti a vibração tarde demais.
— Claro, "tarde demais". — Aura revirou os olhos, mas sua expressão suavizou. — De qualquer forma, nossos corpos se curam rápido. Esses cortes são só arranhões.
Mesmo assim, Anastasia se aproximou de Renier, sua expressão suavemente repreensiva enquanto limpava a bochecha dele com um pano limpo.
— Vocês podem ter fator de cura, mas não é motivo para serem descuidados. Seus corpos não são indestrutíveis.
Renier desviou o olhar, visivelmente desconfortável com a atenção, mas deixou escapar um pequeno sorriso.
— Eu... agradeço o cuidado.
Antes que ele pudesse continuar, Anastasia segurou suavemente o rosto de Renier e, sem hesitar, aproximou-se para beijá-lo. O gesto o pegou de surpresa, mas ele não se afastou, apenas correspondeu ao beijo com uma leveza inesperada. Quando se separaram, Anastasia olhou diretamente em seus olhos.
— Prometa que vai ser mais cuidadoso na próxima vez.
Renier balançou a cabeça em concordância, o rubor quase imperceptível em seu rosto o traindo.
— Prometo.
Aura, que havia ficado de lado assistindo a cena, soltou uma risada divertida.
— Não mima tanto o Renier, Anastasia, ele vai acabar se achando invencível.
Anastasia virou o olhar para ela, a preocupação ainda em sua expressão.
— E você deveria tomar o mesmo cuidado, Aura. Vocês estão sempre juntos. Se dois amantes se machucarem assim, o povo pode começar a criar ideias erradas.
Aquelas palavras fizeram Renier e Aura se entreolharem por um momento antes de responderem quase ao mesmo tempo, com calma e em uníssono:
— Não estamos em um relacionamento.
Anastasia piscou, claramente surpresa.
— Não estão? Achei que vocês dois tivessem algo a mais.
Renier arqueou uma sobrancelha.
— Mesmo que tivéssemos, eu estou em um relacionamento com você. Não veria isso como traição?
Anastasia sorriu com serenidade, sacudindo a cabeça.
— É normal homens fortes terem mais de uma ou duas esposas por aqui. Não seria nada incomum.
Aura assentiu.
— É algo comum neste mundo, sim.
Renier ficou pensativo por um momento, cruzando os braços. Seus olhos pareciam distantes, como se estivesse comparando mundos.
— Que diferença de cultura... — murmurou ele, antes de abrir um leve sorriso. — Não parece tão ruim.
Com isso, ele saiu caminhando em direção aos fundos da casa, deixando Anastasia e Aura para trás. As duas trocaram um olhar e, sem dizer mais nada, foram verificar Anny e Malo, que descansavam após o árduo treinamento daquele dia.
Mesmo à distância, Anastasia não pôde deixar de sorrir. Renier era um homem único, mas sua capacidade de atrair as pessoas ao seu redor, mesmo com toda sua despreocupação, era inegável.
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O aroma do café da manhã recém-preparado permeava o ar da casa. Anastasia, com um avental florido, organizava os últimos detalhes da mesa enquanto Anny e Malo terminavam de se arrumar. No canto da sala, Renier escovava o longo cabelo de Malo, suas mãos habilidosas desembaraçando os fios e a grande cauda da raposa com movimentos suaves. Malo, ainda sonolenta, murmurava agradecimentos entre bocejos, enquanto Anny observava com admiração, como sempre fascinada pelo jeito tranquilo e protetor de Renier.
No entanto, o clima de tranquilidade foi interrompido por batidas firmes na porta. Anastasia limpou as mãos no avental antes de abrir, encontrando Kirara, chefe da Guilda dos Exploradores, de pé com uma postura confiante e seus olhos firmes.
— Bom dia — disse Kirara, sua voz séria. — Renier está acordado?
Anastasia, surpresa, inclinou-se levemente em respeito.
— Sim, está. Por favor, entre. Gostaria de se juntar a nós no café da manhã?
Kirara deu um leve sorriso e respondeu casualmente:
— Sim, obrigada.
Ela entrou com passos firmes, o cabelo vermelho balançando a cada movimento, e sentou-se à mesa. Aura, já pronta e segurando uma xícara de café, lançou-lhe um olhar despreocupado, erguendo dois dedos em um sinal de vitória sem dizer nada.
Logo, Renier apareceu na sala, seguido por Malo e Anny. Com uma expressão de leve cansaço, ele bocejou enquanto se juntava ao grupo. Embora não precisasse dormir devido à sua herança divina, Renier ainda achava o ato de descansar curioso e, às vezes, até agradável.
— Isso é inesperado, chefe da guilda tão cedo em minha casa — disse Renier, com um sorriso no rosto. — A que devo a honra?
Kirara deu uma risada breve.
— Você fica estranho quando tenta ser formal, Renier. Pode parar com isso.
Renier apenas riu, e Aura, bebendo outro gole de café, olhou para Kirara.
— Você veio pedir alguma coisa, não é? Estou certa?
Kirara sorriu e assentiu.
— Exatamente. Gosto da sua objetividade, Aura.
Ela voltou-se para Renier, agora com uma expressão mais séria.
— Com sua chegada à Cidade Fronteira e seu papel como Guardião Negro, a cidade ganhou algo que não tinha há muito tempo: esperança. Sua presença trouxe alívio ao povo, mas também trouxe responsabilidades que você talvez ainda não tenha percebido.
Renier arqueou a sobrancelha, curioso.
— Responsabilidades?
Antes que Kirara pudesse responder, Anastasia falou primeiro, sua voz calma e cuidadosa.
— Renier, você é neto da antiga Makoto Kanemoto, fundadora do Reino Aurélia. Isso significa que, mesmo após a morte dela, o sangue real corre em suas veias.
Aura colocou a xícara na mesa, interrompendo.
— E, com isso, você não é apenas um Guardião. Você é o herdeiro legítimo. O Reino Aurélia é parte do legado da sua avó, e agora essa responsabilidade passou para você.
Renier ficou em silêncio por um momento, claramente surpreso com a revelação. Ele nunca havia parado para pensar na conexão entre sua linhagem e o Reino. A ideia de ser um rei nunca havia passado por sua mente.
Malo, confusa, perguntou:
— Mas isso não é algo bom? Quer dizer, se Renier é o herdeiro, não é óbvio que ele deveria ser o novo rei?
Kirara suspirou e respondeu:
— Seria bom... se o trono estivesse vazio. Mas, quando Makoto faleceu, não havia herdeiros. Alguém tomou o poder nesses séculos.
Renier inclinou a cabeça.
— E essa pessoa não pode continuar governando? Sou um Guardião Negro, não um rei. Tenho outros mundos para proteger e problemas para resolver. Não posso liderar um reino.
Aura cruzou os braços, encarando-o.
— A atual Rainha é conhecida como "Rainha com Sangue de Ouro". Com sua popularidade crescendo na Cidade Fronteira e seu título de Guardião Negro, é questão de tempo até ela ouvir falar de você. E, se você continuar oculto, ela pode vê-lo como uma ameaça, não como um aliado.
Kirara acrescentou:
— E é por isso que, depois do Dia do Demônio, você precisará ir à Capital para conhecê-la oficialmente. Isso não é algo que pode ser ignorado.
Renier suspirou, inclinando-se para trás na cadeira.
— Então, primeiro eu resolvo o problema do Dia do Demônio e, em seguida, vou lidar com política...
Aura deu um sorriso irônico.
— Bem-vindo ao mundo dos líderes, Renier.
Anastasia colocou uma mão em seu ombro, oferecendo um sorriso tranquilizador.
— Não importa o que aconteça, estaremos aqui para apoiá-lo.
Renier, apesar de sua expressão resignada, não pôde evitar um pequeno sorriso.
— Obrigado. Espero que eu consiga sobreviver a tudo isso... Incluindo o café da manhã.
Todos na mesa riram, quebrando a tensão. A sombra das responsabilidades futuras pairava no ar, mas, naquele momento, havia espaço para camaradagem e um pouco de leveza.
Continua…