A chuva fina e incessante cai sobre Gotham City, manchando as janelas sujas e os becos escuros da cidade. Dentro do Departamento de Polícia de Gotham City (DPGC), o som da cidade se mistura ao zumzum dos rádios e das máquinas de escrever. O lugar está sempre em movimento, mas a tensão no ar é palpável. Policiais cansados se deslocam pelos corredores apertados, olhos pesados pelas horas de trabalho em uma cidade que nunca dorme.
No meio daquilo tudo, o Comissário James "Jim" Gordon caminha com passos firmes e calculados. De cabelos grisalhos e uma expressão endurecida pela vida na linha de frente, Gordon se destaca como uma figura implacável e, ao mesmo tempo, justa. Ele é a âncora moral em um mar de corrupção e violência.
Ao seu lado, Harvey Bullock carrega a expressão mal-humorada de quem está farto daquela rotina. Bullock é robusto, com um semblante de cansaço e cinismo. Ele veste seu chapéu de feltro puído e mantém a barba malfeita, marcas registradas de um policial que já viu o suficiente para desacreditar na humanidade.
Enquanto ambos caminham pelo corredor principal, a conversa se volta para um dos problemas que mais assola Gotham naquele momento: o tráfico de drogas.
— Esse negócio só tá crescendo — diz Harvey, balançando a cabeça. — Cada esquina agora parece ter um moleque vendendo porcaria. Gotham tá se afundando.
Gordon suspira, mas mantém o olhar focado à frente, como se já soubesse onde aquela conversa ia dar.
— E com esse Batman aí, parece que só piorou — continua Bullock, a voz carregada de desconfiança. — Antes, pelo menos, a gente sabia quem eram os grandes peixes. Agora, parece que eles só se multiplicaram. E cada bandido novo quer provar que é o pior de todos. Esse cara só trouxe ainda mais maluco pra cidade.
Gordon para de andar e encara Bullock. A luz fraca do corredor realça as marcas de cansaço em seu rosto, mas também seu olhar determinado.
— E quantas vezes você acha que esses mesmos traficantes que a gente tenta prender estariam soltos se não fosse pelo Batman? Ele não é perfeito, Harvey, mas tá tentando consertar o que foi deixado quebrado por muito tempo.
Harvey dá um sorriso torto, inclinando a cabeça para o lado.
— Não estou dizendo que ele não tem seus pontos, Jim. Só não acho que é o herói que essa cidade precisa. E se algum dia ele pisar fora da linha, quem vai parar ele? Nós? Você?
Jim Gordon solta um suspiro pesado, desviando o olhar. Ele sabe que há dúvidas, mas também acredita que o Batman, de algum modo, é uma figura que pode ajudar Gotham a sair do buraco em que se encontra. Gordon sente que a cidade precisa de esperança, algo que ele, mesmo com toda a sua integridade, não pode oferecer sozinho.
— Vou dar uma volta, Bullock — diz Gordon, deixando o parceiro para trás.
Ele se dirige para a escada que leva ao topo do prédio do DPGC. Ao abrir a porta para o telhado, é recebido por uma rajada de vento frio que corta a chuva. Seus passos ecoam sobre o concreto molhado enquanto ele se aproxima do holofote gigante que domina o centro do telhado: o Bat-Sinal.
Jim observa a cidade lá embaixo, as luzes ofuscadas pela névoa densa e a chuva, parecendo pequenos pontos de luz num mar de trevas. Ele sabe que Gotham não é uma cidade fácil, que os monstros que habitam ali não desaparecem com a prisão de alguns criminosos. Mas ele também sabe que não pode fazer isso sozinho.
Com um movimento determinado, ele aciona o Bat-Sinal. O feixe de luz corta o céu noturno, projetando o símbolo do morcego nas nuvens baixas. Gordon olha para o céu por um instante, as gotas de chuva escorrendo pelo rosto enquanto o Bat-Sinal brilha intensamente, cortando a noite de Gotham. Ele sente o peso daquele chamado, sabendo que mais uma vez está colocando as esperanças da cidade em uma figura tão complexa quanto a escuridão ao redor.
A umidade e o cansaço o fazem recuar um passo. Ele estende a mão e puxa do bolso o celular — uma breve distração enquanto espera. Na tela, uma notificação aparece: uma transmissão ao vivo da entrevista de Harvey Dent, o promotor carismático que recentemente anunciou sua candidatura para prefeito. A cidade anda agitada com a promessa de mudanças de Dent. Gordon já ouviu o discurso antes, mas algo o faz prestar atenção.
No vídeo, Harvey Dent é um contraste vibrante com a noite de Gotham. Jovem e enérgico, ele veste um terno elegante, o rosto iluminado por uma determinação contagiante. Dent fala de combate ao crime com paixão, suas mãos gesticulando enfaticamente enquanto ele defende um Gotham mais segura, uma cidade onde os cidadãos possam andar nas ruas sem medo.
— Gotham não precisa se resignar ao caos e à violência — ele diz com voz firme. — Precisamos de uma cidade em que as pessoas confiem no sistema, confiem na polícia, confiem na justiça. É isso que eu quero para Gotham, é para isso que estou lutando!
Gordon sente uma pontada de esperança. Harvey Dent tem o carisma que falta a tantos outros políticos de Gotham; é um rosto novo que carrega a imagem de mudança verdadeira. Mas, como alguém que trabalha nos bastidores da justiça, Jim também sabe o peso das promessas. Muitas vezes, os discursos inflamados não resistem ao teste da realidade.
Dent continua:
— Não há lugar para corruptos no meu governo, e com a ajuda de nossos homens e mulheres de farda, vamos limpar Gotham, vamos erradicar a raiz desse mal que atormenta nossa cidade. Sei que não será fácil, mas eu acredito que, juntos, podemos vencer.
Jim desliga o celular, pensativo. Ele se lembra dos dias em que acreditava com a mesma intensidade na mudança, na luta contra o crime, na chance de Gotham se tornar uma cidade de paz. Harvey Dent é inspirador, mas Gordon sabe que o sistema é um marasmo viscoso que suga até as melhores intenções.
Gordon guarda o celular no bolso e suspira, ainda com os olhos no céu escuro. Ao se virar, ele dá um leve sobressalto — ali, atrás dele, envolto em sombras e silêncio, está o Batman, parado como se sempre estivesse estado ali.
— Sempre assim, não é? — comenta Gordon com um meio sorriso, num raro tom de brincadeira. Batman, como de costume, não responde. Apenas observa, o olhar firme e atento.
Gordon sabe que as palavras ali são poucas, quase desnecessárias. Ele gesticula na direção da cidade abaixo deles, mudando para um tom mais sério.
— Estamos com novos pontos de venda surgindo a cada dia. Nos becos, nas entradas de metrô, até nas escolas. A coisa está se espalhando, e rápido.
Batman cruza os braços, os olhos sombrios brilhando de forma penetrante.
— Eu já estava investigando isso. A gangue do Máscara Negra recentemente fez uma grande compra de entorpecentes. A fonte é desconhecida, mas são drogas novas, com composição que não é comum. Anônimos, mas eficientes. Até agora, ao menos.
Gordon franze o cenho, processando as informações.
— Esses novos fornecedores... achamos que poderiam estar por trás dos pontos de venda. Ou, quem sabe, testando território em Gotham. — Ele pausa. — Máscara Negra, sempre ele.
A conversa é interrompida pelo som da porta de acesso ao telhado se abrindo. Um policial jovem, visivelmente nervoso, aparece. Ele gela ao perceber a presença do Batman, mas tenta disfarçar o impacto ao focar rapidamente em Gordon.
— Comissário, acabamos de receber um chamado da perícia — diz o policial, segurando uma prancheta e parecendo tentar ignorar o vulto sombrio ao lado de seu chefe. — Encontraram um corpo perto das docas, senhor. Homem não identificado. Aparentemente, foi assassinado e... bom... o rosto dele está irreconhecível. Completamente desfigurado.
Gordon franze o cenho.
— Desfigurado como? Algum tipo de tortura?
— Não dá pra saber ainda, senhor. Encontraram um saco amarrado com força ao redor do pescoço dele. A perícia ainda está trabalhando na cena, mas parece coisa de gangue. Talvez... uma mensagem?
O policial, visivelmente desconfortável, estende as fotos da cena para Gordon, que dá uma olhada rápida, sem querer deter-se nas imagens horríveis por muito tempo.
Gordon observa as fotos por alguns segundos, a expressão endurecendo com a gravidade da cena. Ele sente o estômago revirar, mas mantém a compostura. Quando devolve as fotos, um pensamento o preocupa.
— A perícia ainda está lá? — pergunta, a voz calma mas carregada de urgência.
— Sim, senhor. Estão analisando o local, mas... com o estado em que o corpo foi encontrado, vai levar um tempo para obter alguma coisa concreta — responde o policial, tentando não demonstrar o desconforto diante do que viu.
Gordon acena em concordância, já pensando nos próximos passos. Ele se vira para onde Batman estava, esperando alguma observação do vigilante sobre a cena ou uma estratégia de ação.
Mas, ao erguer os olhos, o espaço ao lado dele está vazio.
O Cavaleiro das Trevas desapareceu, sumindo do terraço sem o menor ruído, deixando Gordon e o policial sozinhos na noite fria. Gordon suspira, balançando a cabeça. Ele sabia que era uma questão de tempo até que o vigilante agisse — sempre um passo à frente, sempre nas sombras.
— Ele faz isso... muito? — sussurra o policial, não conseguindo esconder o tom de inquietação na voz.
— Mais do que você imagina — responde Gordon, com um leve sorriso no canto da boca.
— Sabe... — começa ele, a voz saindo mais baixa do que esperava. — Há gente no departamento que não confia nele, comissário. Dizem que ele... — Ele hesita, mas parece decidido a continuar. — Dizem que ele é tão perigoso quanto os criminosos que tenta pegar.
Gordon apenas balança a cabeça, voltando o olhar para o Bat-Sinal, ainda iluminando as nuvens.
— Talvez seja verdade — diz ele, com a voz pensativa. — Mas, até agora, o que ele tem feito pela cidade fala mais alto do que qualquer boato. Ele é uma aposta... uma das únicas que temos.
A expressão do jovem suaviza, mas o desconforto ainda permanece. Ele não entende completamente o que Gordon vê no Batman, mas respeita a firmeza do comissário.
Nas docas, a cena do crime é marcada pelo reflexo das luzes vermelhas e azuis das viaturas sobre o asfalto molhado, criando sombras tremulantes que dão um ar ainda mais sombrio ao local. Oficiais e peritos conversam em voz baixa, trocando teorias sobre o que pode ter acontecido ali. A noite de Gotham parece mais pesada, quase como se absorvesse o horror do que foi feito.
Então, no meio da escuridão, surge Batman, movendo-se com passos silenciosos, aproximando-se da área demarcada pela perícia. Ao notar sua presença, um dos policiais de plantão se posiciona na entrada da cena, erguendo a mão para impedir sua passagem.
— Ei, você não pode estar aqui — diz o oficial, o tom de voz firme. — Somente policiais têm permissão para acessar a cena.
Antes que Batman responda, um perito mais velho, conhecido como Klein, intervém. Ele está na cena há tempo o suficiente para conhecer Gordon e, principalmente, para saber sobre o "amigo" sombrio que o comissário tolera.
— Deixe ele passar, Jackson — diz Klein, com um tom de voz prático. — Ele trabalha com o comissário Gordon... de certa forma.
O policial olha incrédulo para Klein, mas acaba recuando, ainda sem conseguir disfarçar o ceticismo. A figura do vigilante em meio às sombras é uma visão que sempre o desconcerta, mas ele acaba dando passagem.
Batman não perde tempo. Ele se aproxima do corpo, e Klein caminha ao lado dele, resumindo o que já sabem.
— Homem, provavelmente entre 40 e 50 anos. Não temos identificação ainda. Foi encontrado com o rosto desfigurado — explica Klein. — Acreditamos que foi algum tipo de lâmina... mas, sinceramente, não temos certeza se foi algo improvisado ou intencionalmente brutal.
Batman permanece em silêncio, observando cada detalhe com um olhar atento e penetrante. Ele se ajoelha ao lado do corpo, focando primeiro no rosto mutilado. O corte parece profundo e irregular, os traços do rosto foram arruinados com ferocidade. Ele deduz que quem fez isso tinha tanto desejo de ocultar a identidade da vítima quanto de enviar uma mensagem de pura violência.
Seu olhar se move para o saco plástico amarrado ao redor do pescoço, notando que o nó foi feito de maneira precisa, mas sem sinais de sufocamento, o que indica que foi atado após a morte. Ele pressiona levemente o braço da vítima, e ali nota uma pequena perfuração. Algo foi injetado, deixando uma substância alaranjada, transparente e quase imperceptível na pele pálida da vítima.
Ele analisa a cor da substância, memorizando a aparência e deduzindo que pode ser algum tipo de droga experimental ou toxina. Aquilo certamente não é comum, e o detalhe o faz franzir o cenho sob o capuz. Guardando a informação mentalmente, ele se levanta, lançando um último olhar para as roupas da vítima — trajes formais, caros, com poucos sinais de desgaste. Provavelmente uma figura importante, alguém de influência.
— Esse homem era alguém de valor — murmura ele, analisando a postura do corpo e as roupas.
Quando ele se vira para sair, a figura de Gordon surge na periferia da cena. O comissário caminha em direção a Batman, e ambos trocam um olhar breve, mas carregado de compreensão. Batman inclina a cabeça levemente, indicando que sua análise está concluída, mas Gordon o detém por um momento.
— Já sabe de algo que possa nos ajudar? — pergunta Gordon em um tom baixo, para evitar chamar a atenção dos outros oficiais.
Batman faz uma pausa antes de responder.
— Algo foi injetado na vítima — diz ele, apontando brevemente para o braço. — Uma substância alaranjada, quase invisível. Pode ser algo novo. A mutilação não foi para ocultar a identidade; foi uma mensagem.
Gordon assente, processando as informações enquanto o vigilante se move em direção à escuridão, pronto para desaparecer novamente na noite.
Na Batcaverna, o ambiente é iluminado apenas pela luz do batcomputador, onde Bruce Wayne analisa cada detalhe da cena do crime. As telas exibem imagens e dados, mas, por enquanto, ele foca em uma gravação da câmera de segurança das docas, retrocedendo no tempo até algumas horas antes do crime.
A imagem inicial é escura e vazia. O som da água batendo nos pilares das docas é quase hipnótico, mas logo uma forma indistinta começa a aparecer na tela. Bruce ajusta o contraste, suas feições focadas, observando a figura que surge, arrastando algo pesadamente atrás de si. À medida que a imagem se torna mais nítida, Bruce reconhece a luta do corpo sendo arrastado, uma luta frágil que termina quando a figura coloca a vítima sentada contra a parede, na penumbra.
— Quem é você? — murmura Bruce para si mesmo, a tensão crescendo em seu corpo. Ele se inclina para frente, os dedos dançando sobre o teclado para ampliar a imagem.
À medida que a figura encapuzada se aproxima, Bruce consegue ver que a vítima é Armand Krol, ex-vereador de Gotham City. A expressão de medo e desespero no rosto de Krol é palpável, e a figura encapuzada, envolta em um manto negro, parece se mover com um propósito calculado. A gravidade da situação se torna clara, e Bruce sente uma onda de raiva contida ao ver Krol tão vulnerável.
Na tela, a figura entrega uma navalha ao vereador, e Bruce observa a cena em choque. Krol, em estado de pânico, tenta se soltar usando a lâmina. Suas mãos tremem tanto que a navalha escorrega, cortando seu próprio rosto em um frenesi de desespero. A cena é grotesca e surreal; a violência é quase onírica, como se a substância injetada o tivesse deixado em um estado de medo absoluto, tornando-o incapaz de raciocinar.
Minutos depois, a imagem mostra Krol já sem vida, o corpo estirado e sem movimento. A figura encapuzada, então, retorna com um saco plástico e, em um movimento rápido e preciso, coloca-o sobre a cabeça da vítima, apertando com força. Bruce se recosta na cadeira, seu coração acelerando enquanto ele observa cada movimento. A frieza da ação, a falta de emoção, é perturbadora.
A figura desaparece rapidamente da gravação, como um fantasma, deixando para trás apenas o horror do que ocorreu. Bruce sente um nó se formar em seu estômago. Ele sabe que, com a política em jogo e a cidade mergulhada em uma criminalidade crescente, essa não é uma simples execução; é uma mensagem para todos que cruzam o caminho do autor.