A escuridão ao redor de Ycaro se agitou novamente, e ele sentiu a presença da entidade crescer em intensidade. Ela não se importava com o silêncio, com a calma, mas Ycaro sabia que algo estava prestes a acontecer. A urgência da entidade, embora invisível, era palpável.
— Você não tem tempo a perder, Ycaro. — A voz da entidade cortou a escuridão, firme e imponente.
Ycaro não se apressou, como sempre. Ele não sentia pressa. Ele sentia a opressão do tempo, mas nunca a urgência dos mortais. Ele só respondeu com um olhar vazio e distante.
— O que está acontecendo lá embaixo? — Sua voz ecoou na vastidão, tranquila, como se a pergunta fosse simples.
A entidade permaneceu silenciosa por um momento, como se ponderasse a melhor forma de lhe explicar o que estava prestes a acontecer. Quando começou a falar, sua voz assumiu uma qualidade profunda, como se estivesse contando um segredo guardado desde o nascimento dos mundos.
— A vila dos goblins não é apenas uma vila. Eles estão tentando invocar algo que acreditam ser sua salvação. — A voz da entidade era grave, ressoando em ondas de poder e mistério. — Raças de todas as partes, desesperadas, se uniram. Goblins, orcs, elfos... todos eles lançando seus itens sagrados no ritual. Eles acham que estão invocando uma força antiga, mas não sabem que estão chamando você.
Ycaro sentiu um arrepio. Ele sabia que algo estava se formando, algo grande, algo que poderia mudar tudo. Mas a palavra "você" ecoou com um peso imenso.
— Eu? — Perguntou, ainda mais curioso, mas com um sorriso irônico. — Eles estão invocando a mim? Isso parece... patético.
A entidade não respondeu diretamente. Em vez disso, fez o que só ela poderia fazer: uma fissura apareceu na escuridão, como um portão abrindo-se em meio ao nada. A fenda se alargou rapidamente, revelando uma visão clara da clareira onde o ritual acontecia. Ycaro sentiu a gravidade da mudança, e logo ele e a entidade começaram a atravessar a fenda, subindo lentamente no ar.
— Olhe para eles, Ycaro. — A voz da entidade sussurrou enquanto eles sobrevoavam, em silêncio, acima da clareira. — Veja o que estão fazendo.
A clareira estava repleta de uma confusão de criaturas, todas trabalhando em um frenético esforço coletivo. Goblins, orcs, elfos e outras raças mais, todos estavam em volta de uma esfera de energia que pulsava com uma luz sobrenatural. O brilho da esfera iluminava a noite escura, e cada criatura parecia entregar uma parte de si mesma para o ritual. Espadas enferrujadas, amuletos quebrados, relicários e até ossos antigos estavam sendo lançados na esfera, como se fossem oferendas para algo além de sua compreensão.
— Cada item que eles lançam contém um vestígio do que uma vez foi. — A entidade falou, seu tom calmo, mas carregado de significado. — A espada quebrada foi forjada por um rei caído, mas seu poder não pertence mais ao passado. O relicário é a cápsula de um mago que buscava imortalidade, mas agora só carrega a essência do esquecimento. E a máscara... a máscara é a mais preciosa das oferendas, uma relíquia perdida de um império há muito destruído. Eles acham que estão invocando uma força que trará salvação, mas estão apenas alimentando algo que transcende a compreensão deles.
Ycaro observou os itens sendo lançados. Ele via os goblins, desesperados, quase ansiosos por ver algo de bom surgir do ritual. Eles estavam tão distantes da verdade. Mas os outros, aqueles que estavam com eles — orcs, elfos, até humanos — todos pareciam tão... exauridos, como se soubessem que isso era sua última esperança. Mas não sabiam o que realmente estavam invocando. Eles pensavam estar chamando uma força antiga, mas, na realidade, estavam prestes a abrir as portas para algo mais profundo, mais antigo, mais poderoso.
— Esses itens não possuem o poder que eles imaginam. — A entidade continuou, e Ycaro podia sentir o desdém em sua voz. — Eles acham que o que lançam na esfera pode ser moldado por seus desejos, mas nada que eles oferecem será suficiente. Estão apenas preparando o terreno para o que está por vir.
O ritual na clareira estava ficando mais intenso. Os feixes de luz da esfera começaram a se entrelaçar, formando padrões que lembravam inscrições de uma língua perdida, antiga como o tempo. Ycaro percebeu que a energia que irradiava da esfera não era apenas poder, mas uma espécie de chamada, uma vibração que parecia sussurrar para o universo, atraindo tudo ao seu redor.
Foi então que Ycaro perguntou, sem desviar o olhar da cena abaixo:
— O que exatamente eles estão tentando invocar? — Sua voz, ao contrário da entidade, não era grave, mas curiosa, quase distante, como se estivesse apenas observando um fenômeno que não lhe dizia respeito.
A entidade se aproximou de Ycaro, pairando ao seu lado. Sua presença envolvia tudo ao redor, mas ainda assim, o foco estava na clareira abaixo.
— Você. — A resposta foi curta, direta, mas imensamente carregada de significado.
Ycaro não reagiu imediatamente. Ele continuava observando os goblins e as outras raças, todos tão pequenos, tão fracos. Eles estavam chamando algo maior do que eles, algo mais antigo do que suas próprias histórias, e ainda assim, não podiam compreender a gravidade do que estavam fazendo.
Ele riu baixinho, com uma leveza que contrastava com a intensidade da situação.
— Então, sou eu que eles querem. — A voz de Ycaro agora era carregada de uma ironia sombria. — Eles estão tão desesperados que acreditam que eu sou sua salvação?
A entidade não respondeu. Não havia necessidade. Ycaro já sabia. A cena abaixo, o ritual, as oferendas... tudo estava sendo manipulado para trazer algo mais profundo à tona. E ele, Ycaro, seria o resultado disso. Ele era a resposta. A força que viria e tomaria seu lugar.
A esfera de energia pulsou mais uma vez, iluminando a noite com uma luz intensa, e Ycaro sentiu o peso da expectativa de todos abaixo. Eles não sabiam, mas estavam invocando o próprio fim... e o início de algo muito maior.
Ele estendeu a mão, sentindo o poder fluir através de seu corpo. Era a sua hora. O controle estava prestes a ser seu.
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Fim do Capítulo