A clareira foi tomada por um silêncio quase reverente enquanto os ventos carregavam as últimas palavras do cântico. O ar estava denso, saturado de magia antiga e primal. Criaturas de todas as formas e tamanhos estavam ajoelhadas ao redor do círculo ritual, exaustas pela cerimônia.
No centro, uma luz poderosa crescia como uma tempestade prestes a explodir. De repente, Ycaro caiu do vazio, sua essência tomando forma no mundo físico. Seus pés tocaram o chão com força, a luz cessando abruptamente, deixando um brilho residual dourado no ar.
Ele se levantou lentamente, seu corpo jovem e de aparência quase infantil contrastando com os olhos, que carregavam o peso de eras. Em suas íris, o cosmos parecia dançar, como se ele fosse um portal para algo além do entendimento mortal.
As criaturas ao redor murmuravam, aterrorizadas e reverentes.
— É ele... o Pregador Natural. — Disse um goblin, enquanto outro se escondia por trás de uma pedra.
Ycaro ergueu o olhar, sua expressão carregada de desdém. Sua voz cortou o silêncio como o som de um trovão distante:
— Muito bem. Quem vai ser o primeiro a me explicar que brincadeira é essa?
Por alguns segundos, ninguém ousou responder. Então, um goblin velho deu um passo à frente, suas mãos trêmulas segurando um cajado torto.
— Grande pregador... você foi chamado para salvar nossa vila. Nossos inimigos nos cercam, e nós... nós não temos poder para resistir.
Ycaro suspirou, cruzando os braços, impaciente.
— Salvar vocês? Vocês sequer sabem quem eu sou.
Enquanto suas palavras ecoavam pela clareira, algo dentro dele começou a despertar. Uma memória há muito enterrada, uma marca gravada em sua alma, começou a emergir.
A clareira desapareceu de sua visão, substituída por um cenário de chamas e destruição. Ele viu cidades queimando, deuses caindo do céu como estrelas mortas, e uma figura envolta em sombras e fogo. Era ele, mas também não era.
Uma voz poderosa ecoou dentro de sua mente:
"Quando o céu estiver bravo, escutará meu nome. Quando a terra tremer, sentirá minha presença. Eu estou com você desde o começo e estarei no fim. Meu nome está na sua alma e em cada vida que você viveu."
As imagens ficaram mais claras. Ele viu a figura de asas negras, consumida pelo fogo da ira, erguendo-se contra o céu em fúria. A voz continuou:
"Meu nome é Ycaro, aquele que queimou a terra e o céu. Que perdeu suas asas para o fogo da ira. Matei todos os deuses e eliminei toda a vida na terra. Mas há algo que eu não suporto... o sol. Enquanto ele estiver me atingindo, sou imparável, uma besta sem controle. Eu sou Ycaro, o Filho do Céu."
De volta à clareira, Ycaro despertou de sua visão, sentindo o peso de sua verdadeira identidade recair sobre ele. Ele olhou ao redor e percebeu que algo havia mudado. O céu, antes coberto de nuvens escuras, começou a se abrir, deixando o sol brilhar intensamente.
A luz ao redor dele intensificou-se, como se o próprio sol houvesse descido à terra. Quando Ycaro deu o primeiro passo, uma força invisível obrigou todos ao seu redor a se ajoelharem. Criaturas, goblins e até os elementos pareciam curvar-se diante de sua presença.
Ele parou no centro da clareira e ergueu o olhar para o céu aberto, um sorriso sombrio surgindo em seus lábios.
— Eu finalmente me lembro. Em todas as vidas, usei este nome, e uso agora.
Sua voz estava carregada de poder, cada palavra ecoando como trovões.
— Eu nasci da minha própria vontade. Do ego, do amor, da compaixão, da ignorância, do ódio, da paz e do medo. Eu consegui nascer graças a isso, me alimentando desses sentimentos. Um bebê que não nasceu de uma mulher, nem de um homem.
Ele deu outro passo, e sua presença irradiava algo quase insuportável. Sua mão direita se ergueu, e ele a colocou sobre a cabeça do goblin mais velho que havia se aproximado.
No momento em que sua mão tocou o goblin, uma pressão esmagadora se espalhou pela clareira. Os goblins ao redor começaram a tremer violentamente, seus corpos sendo forçados ao chão. A força invisível continuava a esmagá-los, obrigando-os a se curvarem cada vez mais. Mesmo as árvores ao redor pareciam dobrar-se levemente diante da presença de Ycaro.
O silêncio foi rompido pela sua voz, como um trovão que ressoava pela floresta:
— Este lugar será chamado Alvorada.
De repente, o céu foi tomado por trovões, mesmo sem nuvens. Raios começaram a atingir a floresta ao redor, transformando árvores em cinzas e iluminando o ambiente com flashes dourados. O chão tremeu com tamanha intensidade que rachaduras começaram a se espalhar pelo solo.
Atrás de Ycaro, a terra começou a se erguer, moldada por uma força incompreensível. Ouro, prata e diamantes emergiram das profundezas, formando um trono magnífico, que brilhava com um poder quase divino. Ele se virou, caminhou até o trono e sentou-se com uma calma imponente, como se o mundo inteiro agora estivesse sob seu controle.
Sentado no trono, ele olhou para os goblins, que ainda estavam ajoelhados, mal conseguindo se mover. Sua voz cortou o ar como uma lâmina:
— Não há inimigo que consiga impedir o que eu quero.
Os goblins, incapazes de falar, apenas assentiram com a cabeça, aceitando seu destino. Naquele momento, entenderam que não haviam invocado apenas um salvador, mas algo muito maior e mais perigoso.
Naquele dia, sob a luz dos trovões e o olhar do Filho do Céu, a Alvorada nasceu.
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Fim do Capítulo 4.