A clareira foi tomada por um silêncio estranho, quase reverente, enquanto os ventos carregavam as últimas palavras do cântico. A entidade e Ycaro flutuavam sobre a cena, observando de cima, como deuses insensíveis diante de um pedido desesperado.
Os membros da vila — goblins, anões, elfos das sombras, e até criaturas híbridas que pareciam quebrar qualquer lógica de criação — estavam de joelhos, suados, exaustos pelo ritual. O ar estava pesado, repleto de magia acumulada.
Ycaro virou-se para a entidade, ainda com seu olhar inquisitivo e cheio de desprezo.
— Tudo isso... para quê? Eles sequer sabem o que estão invocando?
A entidade não respondeu de imediato. Seus olhos espectrais estavam fixos na cena abaixo, sua expressão neutra. Mas, ao falar, sua voz carregava uma gravidade profunda.
— Eles não sabem. Estão desesperados, jogando suas esperanças no vazio. Não importa o que seja chamado, eles só querem sobreviver.
Ycaro ergueu uma sobrancelha.
— E você me trouxe aqui para ser o brinquedo deles? Um boneco de esperança?
A entidade não demonstrou emoção.
— Não. Eu trouxe você porque eles estão chamando por você. Eles só não sabem disso ainda.
Ycaro sentiu um frio na espinha, algo que não experimentava há milênios. Seu olhar desceu para a clareira. Os gritos das criaturas ecoavam.
— Oferecemos o metal de nossos ancestrais!
— Oferecemos o sangue de nossos líderes!
— Oferecemos a última semente de nossa floresta destruída!
Itens e artefatos de diferentes histórias e raças eram jogados no centro do círculo. Um goblin idoso, com cicatrizes que contavam décadas de sofrimento, ergueu uma lâmina enferrujada para o céu.
— Que este sacrifício chame o pregador que nos guiará! Que ele nos leve à vitória ou ao esquecimento!
Ycaro sorriu levemente, mas não era um sorriso de alegria. Era um sorriso amargo, quase sarcástico.
— Pregador? Eles mal sabem o que isso significa.
A entidade finalmente virou seu olhar para Ycaro.
— Eles sabem mais do que você imagina. No caos, muitas vezes, encontram a verdade que até os mais sábios ignoram.
Uma luz começou a emanar do círculo, crescendo em intensidade. As criaturas recuaram, seus olhos arregalados. Algumas caíram de joelhos, chorando, enquanto outras apenas observavam, incrédulas.
Ycaro cruzou os braços.
— E agora? Espero que você não me faça descer nesse show patético.
A entidade ergueu a mão, e o portão que os mantinha acima da clareira começou a desaparecer lentamente.
— Você não descerá. Você renascerá.
— O quê?
Sem aviso, a entidade empurrou Ycaro em direção à luz crescente. Ele tentou resistir, mas sentiu algo mais forte o puxando. Era como se sua própria existência estivesse sendo atraída pela magia abaixo.
Enquanto caía, a voz da entidade ecoou em sua mente:
— Você foi moldado na escuridão para isso. Não esqueça, Ycaro: você não é só o pregador. Você é o equilíbrio.
Quando Ycaro tocou o chão, a luz o engoliu. Por um instante, tudo se tornou silêncio. A clareira estava deserta, exceto pela figura que agora se erguia no centro.
Sua aparência era simples, quase infantil, mas seus olhos refletiam o cosmos. Ele parecia novo, mas carregava o peso de eras em sua postura.
As criaturas ao redor o encaravam em silêncio absoluto, incapazes de falar.
Ycaro, ainda atordoado, deu um passo à frente. Seus pés tocaram o chão pela primeira vez em eras. Ele olhou ao redor, observando as faces cheias de medo e esperança.
E então, com um tom que misturava curiosidade e desprezo, ele disse:
— Muito bem. Quem aqui vai me explicar o que, exatamente, vocês esperam de mim?
Fim do Capítulo 3.