Ser um bebê tem lá suas vantagens.
Durante todos esses meses que se passaram, eu venho pensando em como aproveitar o máximo do meu potencial nessa nova vida. Pensei inúmeras vezes em quando e como eu começaria a treinar meu corpo e mente que agora estão novinhos em folha. Apesar disso, essa vida preguiçosa de dormir mais do que a metade do dia parece um sonho de consumo para o meu antigo eu...
Eu mal lembro os dias que eu conseguia dormir mais do que duas ou três horas. Eu precisava estar em uma missão para me sentir vivo. Muitas vezes eu me peguei pensando no que eu deixei para trás. As interações e amizades que deixei de fazer na infância e adolescência, as chances perdidas... Chegou um momento da minha vida em que nada mais fazia sentido se eu não estivesse absolutamente exausto. É claro, esses pensamentos também vinham com ressentimento. Eu me tornei quem eu sou por conta do que aconteceu, não poderia me arrepender disso, mas também não poderia fazer pouco caso também.
Eu amadureci mais rápido do que as outras crianças, se é que posso dizer, bem, aposto que nessa vida esse é absolutamente o caso. Mas eu me afundei nos treinos até perceber que... Bem, talvez aquela fosse a vida pra mim? Artes marciais, musculação, corrida... Haviam dias em que eu só fazia isso, no mesmo dia eu treinava mais do que três vezes. Eu não gastava meu tempo para estudar, chegava a faltar a escola para ir treinar.
Pensando na situação que estou agora... Talvez a falta de tecnologia e ciência não seja tão ruim pro meu estilo de vida. Quer dizer, o que seria mais importante numa época como essa do que ser um grande guerreiro? Nah, talvez eu esteja apenas generalizando. Não conseguir fazer muitas coisas realmente ocupa a mente, me faz sonhar acordado.
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"Fico feliz que nossos cavaleiros não relaxaram na minha ausência" Heinrich quis pagar pelo tempo perdido passeando comigo pelo pátio, no exterior do castelo, havia um campo de treinamento para os soldados. Alguns novos recrutas ainda estavam aprendendo, e eram guiados por um professor bigodudo e ranzinza, o típico sargento, enquanto o resto praticavam sua formação de batalha com lanças, algo bem parecido com uma falange. Esse foi o lugar que mais visitei ultimamente.
Eu pensava que eu estaria bem com toda a experiência marcial que tive na minha vida passada, mas esgrima medieval nunca entrou no meu repertório, na verdade isso me deixou bem preocupado. A pior parte eram os cavalos. Aparentemente, os homens de arma da Família Sigmaringen eram notórios cavaleiros, nossa cavalaria tinha uma boa reputação, ou assim ouvi, é claro que eles iriam se gabar de si mesmo, não são narradores confiáveis.
"Eu percebo que você gosta de ver meus homens treinando, pequeno Mika." Meu pai sorriu. Ele não estava errado, talvez eu seja muito transparente em minhas feições. Eu amo lutas e batalhas. Parecia um ambiente infinitamente mais confortável para mim do que os jardins ou a cidade. Um quartel não deveria ser tão confortável... Mas, eu quero mesmo perseguir esse caminho?
Pensando bem, acho que um membro da nobreza não tem lá muitas opções... O ofício dos nobres é a guerra, é defender o território.
"Ei, quer ver uma coisa legal?" Meu pai abriu um sorriso para mim. Isso foi meio assustador. Ele me entregou para uma serva e tirou seus casacos e camisas. "Muito bem homens, alinhem-se!"
É a primeira vez que o vejo sem seus trajes requintados. Ele é robusto e alto pra dizer o mínimo, tem um par de cicatrizes, pouquíssima gordura, dava para ver os gominhos do seu abdômen, mas não chegava a ser grande. Ele me olhou com um sorriso, acho que ele quer dar um bom espetáculo para o filho, mas bem, acho que se eu não tivesse reencarnado, não seria algo que ficaria na minha memória. Mas agora... Vamos ver do que ele é capaz!
"Eu quero uma série de cinco duelos com meus melhores homens. Nem pensem em pegar leve comigo só porque sou o príncipe. Se for o caso, irão se arrepender." Ele pegou uma espada de madeira e golpeou no ar algumas vezes para checar o peso e alcance. E se virou para seus homens. "Muito bem, apresentem-se."
Espera, príncipe? Não sou eu o príncipe? Eu pensei que ele era o rei.
Antes que eu pudesse pensar mais sobre isso, um homem, ainda maior que Heinrich, talvez com seus dois metros, deu um passo a frente, ele era largo, gordo, mas extremamente musculoso, devia pesar por volta dos seus cento e trinta quilos, no mínimo, e levava consigo uma martelo de guerra. Considerando que as armaduras são feitas sob medida, acho que ele é um homem difícil de se custear, como era apenas prática, óbvio que ele não estaria de armadura contra um homem equipado com uma espada de madeira. Não obstante, meu pai parecia confiante.
Quando se deu o sinal para começar ambos ficaram parados onde estavam, eles se estudavam atentamente, só se moviam para mudar a guarda e a base de suas pernas. O grandalhão não podia se descuidar, pelo seu tamanho, no mínimo ele deveria ser muito lento, não lhe restava opções se não fazer seu tamanho trabalhar por ele e não deixar Heinrich encurtar a distância. Para Heinrich, sua vitória só estava garantida caso ele encurtasse a distância, mas se o grandalhão esticasse o braço e o parasse, ele não o alcançaria, o que significava que ele teria que aproveitar da sua agilidade para isso. De qualquer forma, ambos estavam contando com um contra-ataque àquela altura.
Heinrich avançou, em um passo clássico de esgrima, isso apitou um alerta para o grandalhão que balançou seu martelo de guerra sem pestanejar, mas Heinrich apenas recuou novamente e ambos retornaram às suas posições iniciais. O grandalhão era extremamente rápido com os braços, mas... Com essa finta, o vitorioso era Heinrich. Ele havia mapeado sua velocidade, não só de reação, mas de golpes. Mais uma vez, ele repetiu o que fez antes, mas dessa vez sem recuar, apenas se abaixou para desviar do golpe dele, o grandalhão pensou rápido e recuou com um golpe descuidado para baixo. A primeira vista, você poderia pensar, bem, o grandalhão venceu, não tem como desviar ou aparar um golpe de uma posição abaixada como a dele, sua cara seria esmagada, mas, ele era ágil demais.
Em um piscar de olhos, Heinrich saltou por cima do golpe com uma acrobacia digna de monges. Ele girou, rodopiou e voltou ao seu lugar, poderia naquele momento ter acertado o grandalhão, mas... Ele olhou pra cá, claro que ele queria se mostrar. Mas essa foi uma escolha bem pobre de armas, não? Com uma lança ele poderia fazer muito mais.
Ele se virou para o seu oponente novamente, que vinha correndo em sua direção com o martelo e antes que ele pudesse golpear, a espada de Heinrich parou seu ímpeto ao parar milímetros de sua garganta.
E foi assim o resto da tarde. Heinrich era bastante impressionante, no seu segundo duelo, ele enfrentou um lanceiro, logo depois enfrentou dois espadachins. Em todos os casos, ele escolheu as armas que lhe dessem mais desvantagens contra seus oponentes. Sempre mudando de armas para que seus oponentes o superassem em alcance, ele nunca esteve lutando a sério, enquanto seus homens saiam bem machucados caso fizessem o mesmo. Foi só quando o sargento bigodudo se intrometeu como o quinto desafiante que Heinrich suou. Daquela vez, ele escolheu uma lança. Foi o primeiro dos cinco duelos que ele resolveu ter a vantagem da distância, e, pelo olhar do sargento bigodudo, ele iria precisar. Não só isso, mas ambos estavam com armas reais. Isso era no mínimo preocupante.
"Espero que não tenha enferrujado, Hainz." Heinrich se colocou em uma posição confortável, com a lança.
"Como poderia?" Hainz, o sargento bigodudo, atacou primeiro.
Heinrich girou a lança e desviou o golpe de Hainz para o lado. Começou a andar a volta de Hainz, que o acompanhava apenas com os olhos. Heinrich estocou e golpeou duas vezes antes, ambas, Hainz desviou e contra-atacou em seguida, pondo Heinrich a recuar.
Hainz não levou isso com gentileza, avançou com uma estocada, que foi aparada com a lança, Heinrich girou para o lado com uma agilidade impressionante nos pés e golpeou por cima, para ser aparado por Hainz, a lança girou e golpeou para baixo, pondo Hainz preso ao chão que rapidamente defendeu outro ataque de Heinrich apenas levantando a espada. Novamente, usando sua agilidade, ele prendeu a espada de Hainz ao chão de novo, Hainz pensou que tentaria o mesmo truque e apenas repetiu seus movimentos, mas logo em seguida, Heinrich já estava às suas costas, dando um golpe com a haste da lança em sua cabeça.
Realmente admirável.
Hainz apenas se virou, girando a espada para golpear, um, dois, três ataques, foram todos aparados e desviados pela lança de Heinrich antes dele se afastar com várias cambalhotas. Nesse momento, a multidão de soldados aplaudiam e gritavam.
Hainz teve mais uma vez a iniciativa e golpeou Heinrich com tanta força que seu golpe apenas parou no chão, com a esquiva de Heinrich. Mais um ataque mal sucedido do sargento após esse, mas dessa vez, Heinrich usou o peso do próprio sargento contra ele, que o fez caminhar para longe com seu ataque.
Com mais uma investida de Hainz, dessa vez, Heinrich atacou, estocou e golpeou Hainz, que tomou essa oportunidade para chuta-lo ao encurtar distâncias. Quando Heinrich mais uma vez resolveu tomar a iniciativa, Hainz golpeou com a espada na haste da lança e a quebrou, golpeando mais uma vez em direção ao torço do meu pai.
Por um momento eu fiquei preocupado, mas a luta era rápida demais para isso, e, mais uma vez, com sua agilidade superior, ele desviou glamourosamente da espada e lhe foi jogada mais uma lança para continuar a partida. Ele a agarrou e girou a lança incessantemente antes de golpear uma, duas, três vezes, mas sem eficácia, Hainz apenas aproveitou esse encurtamento de distância e o arremessou para longe com as próprias mãos. No chão, Heinrich ia se levantar, quando Hainz ameaçou um golpe de cima para baixo, apenas para ser surpreendido com a ponta da lança a centímetros de sua face. Ambos estavam ofegantes e sorridentes.
"Hahah. Acho que podemos terminar por hoje." Heinrich se levantou com a ajuda de Hainz que coçava a cabeça e o cumprimentava.
"O que é isso, vossa alteza? Você lutou contra quatro homens antes de mim e mesmo assim não demonstrou o mínimo de cansaço. Muito bom, muito bom! Mas eu quase te peguei."
Eles riram bastante e Heinrich retornou até a serva que me segurava.
"Vamos voltar para casa, sua mãe já deve querer te ver."
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Bom, não demorou muito para que eu começasse a andar, muito menos falar. O tempo começou a passar realmente voando. A minha rotina como um bebê não mudou em nada apesar disso. O meu maior problema eram realmente os métodos arcaicos de higiene, principalmente na hora de ir ao banheiro... Mas bem, você se acostuma.
Eu já devo ter por volta dos meus quatro anos agora e eu não estava errado do porque eu parei de dormir no mesmo quarto da mamãe, nesse meio tempo, ela engravidou duas vezes, perdendo o bebê na primeira gravidez e na segunda o bebê não sobreviveu mais do que alguns meses. Agora está grávida de novo. Bom, tomara que seja uma irmãzinha. Até agora ela se mostrou uma guerreira.
"Papaaaai, eu ouvi das empregadas que teremos visita."
"Hm? Ah, sim, no Quinto Dia de Seu Nome virão vários convidados, em especial, os Bradlley. Tente se comportar durante a visita, são grandes amigos da família."
Bradley? Sinto que já ouvi esse nome antes.
"Eu posso ouvir a conversa?"
"Bom, nunca é cedo demais para aprender uma ou outra coisa sobre o mundo, desde que você fique quieto, vai ficar tudo bem." Ele falou em um tom sério e afagou meus cabelos. É difícil agir como uma criança.
Eu sinto que andei atraindo muita atenção nos últimos quatro anos. Assim que tive capacidade de erguer no mínimo uma espada de madeira que me deram no último ano, eu comecei a ir todos os dias para o quartel e imitar o que os soldados faziam. Eles até tentaram me dar um tipo de lança de brinquedo. Não só isso, mas eu gastei muitos dos meus dias tentando fazer flexões, abdominais e agachamentos, as vezes eu tentava arranjar qualquer objeto minimamente pesado para fazer exercícios mais elaborados. Com certeza era um problema ter que me adaptar a um corpo tão pequeno e frágil, eu não tenho coordenação nenhuma já que tive vinte e cinco anos anteriores em um corpo totalmente diferente. Artes marciais eram quase fora de cogitação, mas eu tentava mesmo assim. Mas sempre acabava tropeçando em mim mesmo, eu não sei se houve no mundo criança mais desengonçada.
Também tentei ouvir o máximo de conversa que eu podia. Já que eu era o príncipe, andar em volta de políticos, guardas e... Bem, do próprio governante do castelo não era nenhum desafio. Eu tentava aprender qualquer coisa que pudesse ao ouvir mas, hora ou outra eu era arrastado para outro lugar.
As tradições desse mundo parecem ser extremamente parecidas com as nossas, lembro de ter sido batizado logo no primeiro ano de vida na igreja da cidade.
Não sei se eu peguei todas as partes corretamente, mas se meu pai é um príncipe e é o governante, então isso quer dizer que a família Sigmaringen governa um Principado. É distinto de um reino por ser basicamente um microestado, ou talvez não tenhamos total soberania do território. Pelo menos foi isso que eu deduzi de primeira antes de conseguir pôr as mãos num livro de história.
Em um dia, eu pensei em me esgueirar para arranjar um livro, mas aí eu lembrei... Eu sou rico! E então pedi para que me trouxessem um livro de história. É claro que não acreditavam que uma criança podia ler, então meu pai tentou contratar um tutor e foi toda uma burocracia. Então, eu pedi para que minha mãe lesse para mim. Assim eu consegui passar desapercebido.
Aparentemente, estamos num país chamado Sacro Império de Magno e Hohenzollern. Muito diferente do que eu pensei. A religião e a cultura são extremamente parecidas com a da minha antiga vida, mas considerando que não é nenhum Sacro Império Romano, eu presumo que eu não voltei no tempo.
Não houve quaisquer sinais de magia nessa história, o que é um pouco decepcionante para o meu lado mais nerd, mas fazer o que. Aparentemente, o império em que estamos é governado por ambos, o Papa e o Imperador, em uma espécie de Diarquia. Hohenzollern era o nome da família real, o que no começo não fez sentido.
"Mas mãe, não sou um príncipe? Não deveriam ser os Sigmaringen a família real?"
"Ah, sim meu querido, como posso dizer isso... Pois bem, acontece que a família Sigmaringen é uma família secundária, oriunda dos Hohenzollern, como tal, nós todos recebemos títulos reais." Então, temos direito ao trono... Mas somos tratados como nobres secundários. Admito que parece uma vida muito mais confortável. Não é como se eu fosse querer buscar poder, isso me faria até mal. "Bom, acho que já está bom por hoje, tá na hora de dormir bebê." Ah mas nem fudendo!
"Mamãe, você pode deixar o livro aqui? Por favor!" Eu fiz uma cara de cachorro pidão, tentei ser o mais fofo que podia.
"Mas meu querido, você nem aprendeu a ler..." Ela suspirou e deu de ombros "Que mal vai fazer né? Só não fique muito tempo acordado." É isso aí!
Algo me cheirava estranho desde que ela começou a falar do nosso reino, na verdade, desde o momento que saí daquele túnel. E eu estava correto!
Existia um mapa dentro do livro, devo admitir que era trabalhoso abri-lo, era pesado, talvez chegasse a ser do meu tamanho. O que me surpreende é como pessoas com tão pouca tecnologia têm acesso à informações como é o formato do continente, mas era verdade, aquela era a Europa Ocidental retratada no mapa! E parece que não desperdicei minha última vida. O império onde eu estava ocupava os territórios germânicos e italianos, mas a língua oficial era o alemão. Mais a oeste, havia o Reino da Aquitânia, na região da França, e na Ibéria havia a Hispania. O que era mais diferente eram as ilhas britânicas. A Irlanda estava unida à Inglaterra de uma forma bem esquisita. De qualquer forma, estavam todos unidos sob a bandeira de Albion. Que nome brega!
E o próprio livro me confirmou mais adiante, a Aquitânia falava o francês, Albion falava o Inglês e a Hispania... O latim... Mas que porra! Ok, eu falo quase todas as línguas do continente, ainda é uma coisa boa. Talvez algo parecido com Roma tenha existido, não? Talvez depois eu possa pesquisar mais sobre isso. Mas deixa para outra hora.
Eu fechei o livro e o joguei no chão. Eu não iria conseguir coloca-lo na cabeceira, então apenas desisti, deitei na cama, me cobri e fui dormir.