Que os deuses não possuíam um passado digno de orgulho, isso era um fato.
Muitas das histórias das quais eu já havia escutado quando pequena eram simplesmente floreadas, exaltando os deuses como seres misericordiosos e bondosos.
Entretanto, não estou aqui para omitir seus feitos, nem os bons e muito menos os ruins, apenas quero contar a história mais pura e cruel sobre os deuses.
No princípio, não havia nada, apenas uma imensidão de trevas espessas e densas, onde nenhum foco de luz era capaz de penetrá-la.
Tudo era tão vazio, sem vida...
Esse vazio perdurou durante bilhares de anos, até que um fio de esperança, algo naquele imenso vazio irrompeu. Duas esferas com uma chama tão forte e poderosa surgiram, e suas chamas eram mais que o suficiente para dissipar todas as trevas presentes naquele imenso vazio. Uma delas conhecida como paz, ordem e justiça; a outra, como o caos, balbúrdia e parcialidade.
A cada século essas esferas dobraram de tamanho, crescendo de uma forma inimaginável. Ninguém sabia ao certo a distância de uma para a outra, mas o encontro entre elas causou uma colisão, estrondosa e destrutiva.
Ali se tornou o marco inicial para a nossa existência.
Dos destroços que restaram das esferas, surgiu um ser celestial, responsável por toda criação de nosso mundo.
Ao ter plena consciência de sua existência, o celestial sorriu, e lágrimas escorreram de seus olhos. Essas lágrimas eram algo tão puro, tão divino que criou os Anhumas, seres muito poderosos, criados no intuito de servir ao celestial.
Sentindo-se agraciados pela sua existência, os Anhumas prepararam uma grande celebração, onde dançaram e cantaram alegremente para o celestial. Contentes, as criaturas queriam dar um nome ao seu criador, e assim eles o batizaram como Amnestranaf.
Possuidor de toda sabedoria e onipotência do universo, Amnestranaf era capaz de ver as inúmeras possibilidades de mundos que poderia criar através de um único suspiro seu. Aquilo o fascinava, entretanto, a crueldade e a ganância de suas criações lhe causavam desaprovação. Não importava os diferentes começos, tudo terminava em guerra e morte.
Amnestrenaf era um ser poderoso, criado a partir da colisão entre duas esferas, conhecidas posteriormente como mundos, somente ele poderia criar, somente ele poderia destruir, e assim ele fez, destruí a su próprio, para que nada mais além existisse após ele, originando o evento nomeado como "o suicídio de um deus"...
─ Como assim?! Como um ser muito poderoso foi capaz de tirar a própria vida? ─ A criança se encontrava com os olhos arregalados, tentando assimilar a história que acabara de ouvir.
Ilana se mantém calada, um pequeno sorriso se forma em sua face ao se lembrar de que fazia as mesmas perguntas que Airam quando era mais nova.
─ Tem certas coisas que eu também não entendo. ─ A jovem passa a mão nos cabelos negros da criança, ajeitando os fios para ficarem arrumados.
─ E você me conta assim, sem ter nenhuma explicação? Está muito mal contada essa história ─ Airam se levanta do tronco de árvore, ainda mais inquieto que antes.
─ Poderia perguntar para o professor, quem sabe ele tenha uma explicação melhor ─ Ilana pega um graveto a sua frente jogando na fogueira que crepitava a sua frente. ─ Hora de entrarmos, está ficando tarde ─ Ilana se levanta também, estava cansada demais para encontrar alguma explicação que suprisse a curiosidade da criança.
─ Que porcaria!
O garoto bufou, e virando-se de costas ele retornou para a casa, se forçaria a adormecer naquela noite, quem sabe no dia seguinte sua irmã continuaria a história.
Ilana não saberia explicar com tamanha certeza sobre os mistérios do mundo em que vivia. As histórias eram contadas por sua mãe, e apesar de fazer as mesmas perguntas de Airam, nem sempre eram respondidas com tamanha certeza.
Ilana cruza os braços, observando as estrelas despontarem do grande manto negro que estendia no céu. Sua mente se esvai, relembrando de quando sua mãe lhe contava que quando alguém partia dessa terra, ela se transformava em uma estrela.
A garota deixou de acreditar naquela história já fazia muito tempo, mas no fundo preferia estar imersa às ilusões da vida, quando acreditava que sua mãe estava naquele céu, a observando e a protegendo de longe.
Ilana apaga a fogueira e retorna para o casebre, ela vai até o conjunto de armários da pequena cozinha, abrindo as portas no intuito de procurar por algum alimento para preparar para o dia seguinte, mas não tinha nada além do que um saco de feijões e sal.
─ Temos que preencher esses armários de comida, antes que o inverno se aproxime ─ a mais nova comenta, voltando a fechar as portas dos armários, uma delas acaba se soltando, quase caindo em seus pés.
─ Isso se amanhã tivermos sorte ─ um homem de barbas grisalhas levanta uma adaga na altura de seus olhos, limpando o objeto em um tecido, seu polegar desliza algumas vezes no objeto pontiagudo, verificando se estava amolada o suficiente.
─ Irei dormir. O senhor deveria ir também. Amanhã temos muitas coisas para fazer ─ avisa a garota.
─ Assim que eu terminar de amolar as últimas adagas estarei indo para cama, filha.
Ilana dá de ombros, e retorna para o quarto onde seu irmão já se encontrava dormindo, ela se aproxima de sua cama, retirando as botas de seus pés, se deitando sob a cama e deixando que seus músculos relaxarem no fino colchão, que não passavam de meros trapos em cima de uma madeira plana sustentada por tijolos.
O dia não havia sido fácil. Com o inverno se aproximando, os animais entravam em época de hibernação ou migravam para um local com o clima mais ameno, e com isso, a caça diminuía consideravelmente.
Ilana e seu pai haviam caçado comida o suficiente para o inverno, conseguiram conservar outros por algumas semanas, entretanto, o casebre onde moravam foi invadido por um grupo de saqueadores dias atrás, que levaram desde objetos preciosos até roupas e alimentos.
O prejuízo só não foi maior, devido aos objetos que foram roubados não pertencerem à família de Ilana, que também se tratava de ladrões.
Mas eles pretendiam recuperar tudo no dia seguinte.
(...)
Por sorte, as galinhas não foram roubadas nos dias anteriores, pelo menos teriam ovos para comerem durante o desjejum, alimentados e prontos para mais um dia.
Ilana esquenta a panela no fogão a lenha, preparando ovos mexidos. O cheiro acaba despertando Airam, que já sente sua barriga roncar, o garoto para no batente da porta, observando sua irmã concentrada no que fazia.
─ Vai continuar me contando a história de ontem? ─ Airam se senta na cadeira, balançando os pés que mal alcançava o chão.
─ Prometo que assim que você for pra cama irei continuar. Se começar agora, será capaz que você se atrase e o senhor Patmar não ficará nada contente com isso.
─ Ele nem irá notar se estarei lá ou não ─ os olhos do garoto se enchem de satisfação ao ter o prato com ovos mexidos posto em sua frente, ele agarra a colher e come o alimento com voracidade.
─ Acredite, a memória dele é excelente.
O professor Patmar nada mais era que um professor, que ministrava aulas para as crianças da aldeia. Ele tentava reunir o máximo delas e lhe ensinar sobre tudo aquilo que tinha conhecimento. Após ser acusado de traição perante o imperador, Patmar se afugentou do palácio e se escondeu na aldeia próxima a cidade de Bolgdra. Os aldeões o acolheram mesmo estando ciente do que aconteceu com o homem, agradecido, Patmar decidiu passar o máximo de conhecimento para quem tivesse interesse em aprender, e isso se perdurou ao longo de uma década.
Após Airam já estar na praça onde eram dadas as aulas. Ilana se locomove até o lago mais próximo de seu casebre, a fim de lavar as roupas sujas que estavam se acumulando.
Ela dá um sorriso forçado ao avistar sua vizinha, que lhe cumprimentava alegremente durante a manhã.
─ Bom dia, senhorita Ilana! ─ A senhora se aproxima dela carregando um balde entre seu braço e seus quadris. ─ Como vai nesta manhã?
─ Estou ótima graças aos deuses, e a senhora?
─ Bem. E o seu pai? Faz tempo que não o vejo.
─ Ele parte todos os dias mais cedo para arar as lavouras, e só volta quando o sol se põe. Como chega muito cansado, ele logo vai se deitar, esse é o motivo da senhora não encontrá-lo. Provavelmente durante o inverno a senhora o veja com mais frequência.
A senhora dá um estalo com a língua, preparada para palpitar sobre a vida da família. Ela ergue o queixo, se preparando para retirar os freios da língua.
─ Você deveria estar se preocupando em arrumar um marido, assim seu pai não teria mais que se atentar em alimentar três bocas.
Ilana umedece os lábios e observa a sua vizinha de canto de olho. Não era a primeira vez que ela insinuava algo do tipo para a jovem, e também não seria a última.
─ Se a senhora não se preocupasse tanto com a vida dos seus vizinhos e sim com a sua, seu marido não estaria se deitando com outras mulheres ─ Ilana observa o rosto da mulher, que antes parda, aos poucos toma a tonalidade de um vermelho intenso.
─ Moleca insolente! Como tem coragem de abrir a boca dessa forma para falar da minha família?! ─ Enraivecida, a mulher arremessa o balde em direção a Ilana. Que o observa bater contra o solo, apenas respingando um pouco de água em seus sapatos.
─ Deveria tomar cuidado com o que fala se não quer escutar algo desagradável ao seu respeito.
Ilana dá as costas, se dirigindo até o lago, onde algumas mulheres que estavam próximas dali observavam a discussão, curiosas sobre o que Ilana havia dito, se aquilo era realmente um boato ou se era verdade. Mas pela irritação da mulher, provavelmente aquela história era verídica.
A jovem retirou os sapatos, e ergueu sua saia para se sentar na beira do rio, ela usou do auxílio das pedras para esfregar as roupas. A água estava bem gelada, e o clima frio não colaborava para que a simples tarefa fosse realizada.
─ Será que estou ficando louco ou estou realmente vendo uma sereia diante dos meus olhos? ─ Ilana ouve alguém dizer aquilo bem perto de seu ouvido, seu corpo arrepia, bem mais que o efeito da água gélida poderia lhe causar.
Um par de olhos cor avelã lhe encarou, e logo um sorriso tomou os lábios de Ilana.
─ Nunca mais me assuste desse jeito ─ ela acerta a camisa que estava lavando em Filippo, que dá alguns passos para trás. ─ Não acredito que você entrou na água só para me assustar.
─ Para, nem está tão gelada assim ─ o rapaz abre os braços, girando por completo na água. ─ Está excelente!
─ Maluco! ─ Ilana tenta segurar o riso.
─ Se está com tanto frio assim, pode deixar que eu te aqueço ─ o rapaz se aproxima de Ilana a envolvendo em seus braços.
─ Para com isso, Filippo. ─ Ilana se desvencilhou do abraço de Filippo. ─ Se pegarem a gente aqui vão começar os julgamentos e as fofocas.
─ Não iriam julgar nem fofocar se você aceitasse se casar comigo.
─ Acredito que sua família irá me detestar, ainda mais sua tia, depois de eu ter dito na cara dela que o seu marido era um adúltero.
Filippo dá risada, era nisso que ele mais gostava em Ilana, na sua audácia de dizer o que queria sem medo das consequências.
─ E quem disse que isso é mentira? ─ ele retira o cabelo da face de Ilana, que teimosamente se desprendeu de trás de sua orelha devido à ventania. ─ Irei alimentar os cavalos e deixá-los-ei bem descansados para hoje a noite.
Filippo beija a ponta do nariz de Ilana e se afasta da jovem, que o observa sumindo gradativamente entre as árvores secas.
O dia passou lento, mas assim que o sol estava prestes a desaparecer no céu. Ilana, seu pai e Filippo se aprontavam para o próximo saque que fariam naquela noite.
Por segurança, decidiram deixar Airam com a vizinha, com a velha desculpa de que teriam assuntos no extremo leste para resolverem. Não poderiam deixar o menino sozinho mais uma vez, à mercê dos ladrões que invadiram a casa dias atrás. Por muita sorte, ao ouvir sons estranhos pela casa, Airam saltou a janela e correu para a casa mais próxima no intuito de se esconder, mas dessa vez não poderiam contar com a sorte.
Ilana termina de colocar o boldrié na cintura e já pega as armas ajeitando-os no acessório. Mais uma vez ela checa para ver se tudo está seguro.
─ Estão todos prontos? ─ Filippo pergunta, enquanto isso, ajeita a luva em sua mão.
─ Vamos, não podemos perder tempo ─ Yaco começa a marchar rumo aos cavalos.
─ Papai! ─ Airam atravessa a cerca da casa de sua vizinha, abraçando o homem pelas costas.
─ Vamos voltar logo, logo ─ o homem curva suas costas. Ele dá um sorriso ao perceber que não era mais necessário se agachar para ficar na altura de seu filho. Seu menino estava crescendo mais rápido que o normal, logo estaria atingindo a puberdade e como consequência, suas habilidades como lobisomem surgiriam antes de sua primeira transformação.
─ Cuida bem da casa, garotão ─ Filippo bagunça os cabelos mal aparados do garoto, que dá risada com a brincadeira.
─ Não vou deixar nenhum ladrão roubar nossas coisas dessa vez! ─ Airam cerra os punhos. ─ Vou apunhalá-los com uma espada e usar seus crânios como tigelas para alimentar-me de suas entranhas.
Yaco se levanta assustado com o que havia acabado de ouvir de Airam. O seu choque era tão grande que o mais velho ficou sem palavras. Até Ilana intervir.
─ Airam! Nunca mais diga algo do tipo, isso é repugnante.
O garoto abaixou a cabeça, e concordou com sua irmã, logo mais ele voltou correndo para a casa de sua vizinha.
─ Com quem ele anda aprendendo isso? ─ perguntou o mais velho, ainda extasiado diante ao que escutará.
─ Consequências de ter sido criado em Vallos ─ Ilana afirma no momento em que monta um dos cavalos.
O trio parte rumo a extremo leste de Montuália, os cavalos trotam velozmente para longe de Vallos, o vento iam de encontro a face de Ilana, que sentiu as extremidades de seu rosto gelarem mais e mais, ela puxa o cachecol, cobrindo boa parte de seu rosto para se proteger do frio.
Após atravessarem a cidade de Bolgdra, os cavalos diminuíram a velocidade, precisavam agir discretamente para adentrarem a cidade de Unterist.
A cidade era uma das mais ricas de Montuália, ficando apenas atrás de Bolgdra. Abrigava boa parte do clero e da nobreza, um prato cheio para encher o olhar dos saqueadores.
Por ter um grande índice de assaltos na região, o local era muito bem protegido pela guarda real, que tinham a autorização de matarem a sangue frio qualquer roubo que testemunharam. Não diferenciando quem rouba comida ou grandes quantias de dinheiro.
Mas o foco do trio era outro. Os cemitérios, como o número de guardar era um pouco inferior aos da cidade, a facilidade para saírem sem serem pegos era menor.
Para não darem de encontro com a guarda que cercava os portões, eles decidiram ir por um caminho mais longo, entretanto, estaria livre da guarda. Talvez dessa vez não dessem sorte como da última, quando enganaram os guardas com a falsa gravidez de Ilana e na sua urgência de entrar na cidade atrás de uma parteira.
A estrada estava enlameada devido às chuvas, e por vezes, a carroça emperrava atrasando o trajeto, as longas horas de viagem já estavam cansando, e a irritação ora ou outra vinha à tona.
─ Juro que da próxima vez que isso emperrar no caminho, eu mesmo carrego essa carroça nas costas ─ Filippo dá um grito, retirando as luvas que estavam cheias de lama, atirando-as no chão.
─ É o meu entretenimento vê-lo irritado! ─ Ilana dá risada da situação.
─ Para de rir e vem ajudar a gente aqui ─ pede o rapaz.
─ Já estamos chegando, o cemitério está logo à frente ─ Ilana informa enquanto olha no mapa, o iluminando com um lampião.
─ Pronto ─ o peito de Filippo sobe e desce de forma exagerada, caçando por ar para preencher seus pulmões. ─ Não vamos voltar por esse caminho.
─ Isso se voltarmos ─ anuncia Yaco, o olhar de Filippo carregava tensão. ─ Somente os deuses estão cientes sobre nosso destino. Montuália esteja protegendo suas criações, hoje e sempre ─ Yaco cruza o dedo indicador com o médio, beijando a ponta dos dedos e os elevando em direção ao céu.
O imenso silêncio se fazia presente entre as camadas das rochas que preenchiam a caverna. Qualquer movimento ou suspiro era o suficiente para ecoar por todo ambiente.
Em uma das entradas alternativas da caverna, havia uma superfície plana, com os nomes das pessoas que haviam sido enterradas naquele local, Ilana passa os dedos na grande tábua de pedra, sentindo o relevo das palavras atravessarem as finas luvas que vestia.
Ao notar que Yaco e Filippo estavam muito mais a frente, a garota apressa os passos para acompanhá-los.
─ Estávamos atrás do bronze e encontramos o ouro ─ o olhar de Filippo se preenche de prazer ao se aproximar de um dos túmulos, que havia um vaso de ouro, com flores recém colocadas, estavam tão frescas que o cheiro das camélias se dissipava pelo ambiente.
─ Vou procurar por algo mais ao fundo ─ Ilana anuncia antes de se afastar.
Ela olha a sua volta, observando os sepulcros e tentando analisar qual deles obtinham mais preciosidades. A grande nobreza de Montuália tinha um extremo cuidado e delicadeza com seus familiares no leito de morte, eles preenchiam os caixões com os bens mais preciosos do falecido, e dependendo da tamanha riqueza das famílias, o mesmo acontecia fora de sua cova, que reluzia o ouro mais puro extraído da terra.
Ilana duvidava que os familiares tivessem tanto cuidado em vida quanto tinham em morte. Enquanto os mortos recebiam prata e ouro, os vivos passavam fome e disputavam por migalhas, não só em sua cidade, mas em outros lugares ainda mais pobres.
Ilana relembrou das noites que dormiu de estômago vazio, revirando de um lado para o outro, pois a barriga roncava e até mesmo doía clamando por alimento.
Ela nunca esqueceria que sua mãe faleceu por inanição, quando se recusava a se alimentar com o pouco que tinha, para que Ilana e Airam tivessem o que comer.
Tânia foi apenas uma de muitas pessoas que morreram por fome durante a grande geada. Algumas mães, em desespero, ofereceram da própria carne para que seus filhos se alimentassem, outras, os mataram para que não fosse preciso ver suas crias perecerem com a fome. E assim, tentaram sobreviver durante aquela era mais assoladora de Montuália.
─ Grande deusa da prosperidade! ─ Ilana resmunga, tentando extrair as esmeraldas incrustadas na lápide com uma talhadeira e uma marreta. ─ Só algumas de suas criações podem desfrutar da prosperidade, não é mesmo?
Mais uma vez Ilana bate a marreta contra a talhadeira, soltando assim a esmeralda.
Ela guarda a jóia em uma bolsa de couro velho, e assim ela permanece até arrancar a última pedra.
Ilana chacoalha a bolsa e as esmeraldas esbarram entre si, fazendo o som ecoar pela caverna. Não muito satisfeita, Ilana caminha mais adentro do buraco-soturno, à procura de mais bens preciosos que poderia pegar. Não queria algo que pesasse tanto para não dar trabalho para carregar, mas que fosse caro o suficiente para conseguir uma boa quantia de dinheiro na venda.
Seus pés pararam bruscamente ao avistar uma depressão de água, semelhante a uma cachoeira. Abaixo de seus pés, um grande lago de águas cristalinas inundava o fundo da caverna e refletia a luz da lua em sua superfície.
Ilana se encanta com a vista, porém em poucos segundos volta ao foco e começa a andar pelo caminho estreito de rochas, que dividiam espaço entre a parede da caverna e a queda d'água.
Seu corpo se alivia da tensão assim que ela atinge um solo seguro. Se Ilana achava que a cachoeira da caverna era belíssima, a imagem à sua frente até perdia um significado concreto do que seria.
Estatuetas de mármore se erguiam do solo, ao todo sete. Ilana não reconhecia quem eram aquelas pessoas. Mas sabia perfeitamente bem de qual império cada uma pertencia devido às características inconfundíveis das criaturas.
A garota passa um bom tempo as admirando, as estátuas eram tão bem detalhadas que facilmente poderia confundir com uma pessoa de verdade.
Ela se perguntava como alguém teria uma destreza tão grande para esculpir roupas em mármore, como o fino véu que cai sob o rosto da figura feminina. Que tinha os olhos preenchidos com ouro líquido que escorriam em suas bochechas e respingavam em seus pés descalços.
Ilana toca em uma das estátuas, essa era semelhante a um lobisomem, que tinha o dobro do tamanho da transformação tradicional de seu povo. Certo que pertenciam a povos antigos, quando o tamanho das criaturas era temido por todos.
A estátua ao lado do lobisomem tinha o corpo levemente inclinado para a esquerda, parecendo estar indicando algo, seguindo seu instinto, Ilana vai na mesma direção, se adentrando mais ao fundo na caverna e se aproximando dos jazigos.
A garota olha mais uma vez para trás, conferindo se alguém não estava atrás de si. E mais túmulos estavam à sua frente, dessa vez as quantidades exatas das estátuas encontradas lá fora. Ilana deduziu a possibilidade dos túmulos pertencerem às estátuas que estivessem do lado de fora.
A garota toca em um dos túmulos, que se eleva no nível da terra, feito de mármore branco, assim como as estátuas, acima, as lápides com os nomes dos ali enterrados, e um espaço para colocar as velas e lhes dedicar orações.
Ela toca na superfície de um dos túmulos, sentindo o relevo da abertura dos túmulos, ela tenta erguer algumas vezes, sem sucesso, sua forma humana era fraca demais para empurrar uma pedra tão pesada.
Ilana se senta no solo e começa a tirar suas botas, em seguida, suas roupas, não queria ter que sair nua daquela caverna após sua transformação, que rasgava suas roupas as deixando ser meros trapos.
Quando já nua, Ilana respira fundo, antes de se concentrar, saberia que uma terrível dor estava por vir, e por isso precisava relaxar.
Os músculos de seu corpo dobram de tamanho, as veias se tornam mais saltadas do que antes, os seus ossos estalam, quebram um a um dobrando de tamanho e se adequando a anatomia de um meio humano, meio lobo, pelos rodeiam cada centímetro de seu corpo e sua face logo toma a forma de um lupino, forte e feroz.
Os tampos dos túmulos se tornam como pena diante do grande lobisomem que revirava os cadáveres um a um, pegando o que fosse útil. Ilana se felicita por ter seguido seus instintos, pois ali tinha justamente o que ela procurava, pedras preciosas e leves.
─ Você ouviu isso? ─ Uma voz masculina e grave ecoa pelo ambiente, assustando Ilana, que prontamente volta a sua forma humana e corre até suas roupas e bolsa e se escondendo atrás dos túmulos.
─ Está enlouquecendo? Já disse para parar de beber durante o horário de serviço ─ uma segunda voz, com o tom levemente debochado se manifesta.
─ Já te disse que detesto fazer ronda neste local, não é a primeira vez que escuto sons estranhos.
─ Quer que chame reforços, ou o medinho já passou? ─ uma gargalhada vem da segunda voz ─ Não acredito que você está com medo de sete defuntos que faleceram há séculos atrás.
─ Continue rindo, só não me peça ajuda quando a coisa ficar feia.
Ao escutar a conversa, Ilana revira os olhos, eram apenas dois guardas bobalhões. Mas que de algum jeito iria dar trabalho para ela sair dali.
Silenciosamente ela tenta vestir suas roupas, enquanto tenta procurar alguma saída em meio aquela escuridão.
Mas algo acaba lhe chamando a atenção, o último túmulo que ela não havia revirado emanava uma luz roxa de dentro do tórax do cadáver. Algo que ela nunca havia visto em sua vida, ela sai de trás dos túmulos, e na mansidão, tenta transformar apenas seus dedos nas garras de um lobisomem.
Suas unhas vão cortando a camada de tecidos enfaixados, até fazer uma incisão na pele do cadáver, ainda integra devido ao processo de mumificação, suas mãos se aprofundam mais e mais naquela pele pútrida até irem de encontro com o objeto brilhante.
Era uma esfera que cabia na palma da mão de um humano, era brilhante como ouro e de pequenas rachaduras que emanava uma luz roxa intensa.
A garota estava encantada, e algo dentro de si dizia para ela não largar aquele objeto. Ilana enfiou a orbe na bolsa e limpou sua mão na parte traseira de sua calça.
Ao olhar para cima, a sua sorte de sair da caverna estava ali, diante do brilho que a luz da lua refletia através do buraco na caverna. Entretanto, o buraco era muito alto e talvez íngreme para Ilana passar.
Ela checa a saída mais uma vez, era tudo, ou nada.
A mulher sobe em uma das lápides, porém, a estrutura era estreita demais para os seus pés, e isso a faz cair, e o ruidoso som acompanhado de uma dor aguda se agita em seu interior.
Pelo estampido, os guardas que espreitavam a saída ficam atentos, e se põem em posição de ataque ao alerta que soara.
Ilana engole em seco ao ver os olhares dos dois guardas recaírem sobre si. Como sairia dali?
Mais veloz que o vento em uma tempestade, Ilana se transforma novamente na criatura bestial, agora não se importará com a dor, somente em sair viva daquele local.
Os guardas partem para cima de Ilana, a cercando, mas ela desvia com avidez, pegando com as garras, a bolsa em seus pés, correndo diretamente para a saída.
O guarda mais alto, não mede esforços, e transforma no viril lobisomem, carregando consigo a espada que estava presa em seu boldrié, velozmente, ele corre atrás de Ilana. Em seguida, o outro guarda comunica aos demais com um uivo alto e gutural, a fim de anunciar que tinha um perigo iminente.
Ilana se desespera, seu pequeno deslize, agora colocava a vida de Filippo e seu pai em perigo, precisava encontrá-los. Mas antes precisava dar um jeito de despistar um dos guardas que estava a centímetros de alcançá-la.
Pensou na possibilidade de atravessar novamente próximo a cachoeira, o espaço era pequeno para um grande lobo poder passar, e isso colocaria em risco a sua própria vida, mas precisava tentar.
Ilana percorreu pelos caminhos rochosos, tentando se lembrar por onde tinha passado, e qual deles daria direto para a cascata de água.
Mas os caminhos se tornavam mais longos e cansativos, aquele lugar era um labirinto, e seu pouco conhecimento sobre o local só dificultava.
Por ter seu pensamento focado em apenas fugir, Ilana não se deu conta que estava chamando a atenção de mais guardas, percorrendo pelos mesmos caminhos a qual eles estavam vigiando.
O caminho para a cachoeira estava ainda mais longe e em pouquíssimo tempo o cemitério seria rodeado por mais e mais guardas.
Uma voz lancinante ecoa nos pensamentos de Ilana, parecendo indicar por onde deveria ela ir. Mas ao mesmo momento que ela parecia ajudá-la, também a estava atrapalhando por não conseguir colocar seus pensamentos em ordem.
Ao quase desistir de escutá-la, Ilana percebe que estava mais próxima a queda d'água, e agradeceu mentalmente por finalmente estar cada vez mais perto da saída.
Cautelosa e ao mesmo tempo veloz, Ilana atravessa o caminho estreito, e ao chegar ao fim, quase cai no lago abaixo por uma das rochas que acabam se desprendendo. Mas ela chega segura ao outro lado.
Os guardas abruptamente param ao avistar o caminho a frente, os olhos de cor âmbar de um deles fuzilam Ilana, e suas presas estão à mostra, como sinal de ameaça. Eles dão meia volta, em busca de outro caminho que dê para o local que Ilana se encontrava.
Os pulmões da garota lobo ardiam, mas não poderia parar por ali, precisava logo avistar a dupla, antes que os guardas cercassem por completo a caverna.
Por sorte, Filippo e Yaco estavam juntos, e no mesmo lugar que antes, Ilana apenas maneou a cabeça para a entrada, não havia tempo para explicação, e nem como Ilana se comunicar verbalmente.
Os dois entendem o sinal que ela faz, colocam as bolsas e os materiais juntos e descem pelo espaço que estavam preparando há dias.
Ilana tenta os guiar em meio aquela noite escura, devido a visão noturna, o caminho se tornava mais claro.
─ Aquele uivo era aviso dos guardas? ─ Filippo pergunta, aguardando uma resposta de Ilana.
─ Deveríamos estar atentos a isso ─ Yaco continua. ─ Poderíamos acabar sendo presos lá ─ o mais velho tenta afastar o gramado em seu caminho utilizando a talhadeira.
─ Foi por muito pouco ─ retorna Filippo.
Uma força brutal se choca contra o corpo de Yaco, que cai abruptamente no chão, face a face, estava um dos guardas transformados em lobisomem.
Os dentes do lobisomem vão de encontro ao rosto de Yaco que se protege com o braço.
O mais velho tem suas mãos presas contra as garras do grande lobo, que rosnava em seu rosto, fazendo com que respingos de saliva caíssem em sua face.
Ilana e Filippo tentam ajudar Yaco, porém são cercados por mais três lobisomens da guarda real.
Yaco travava a luta peito a peito com o lobisomem, sua força não era a das melhores, e tentar se transformar naquele momento não seria uma vantagem. Com a força de seu corpo, Yaco tenta afastar o lobo, mas sem sucesso, era sua vida em jogo...
Não, era a sua vida, mais a de seus filhos.
Yaco reuniu forças de onde nem sabia que tinha, encontrando uma brecha , ele solta uma de suas mãos, e com toda força contida em ódio ele enterra a talhadeira na mandíbula do lobisomem, uma, duas, três vezes... até o cadáver cair ao seu lado, um som gorgolejante provém de suas feridas acompanhado de sangue.
O mais velho se transforma em lobisomem, de pelagem preta com alguns resquícios de pelos grisalhos distribuídos por seu corpo decorrente da idade.
Ele avança em direção aos lobisomens que se aglomeravam ao redor de Ilana e Filippo, com suas garras, ele dilacera o abdômen de um dos lupinos sem perder tempo.
Ilana finaliza a árdua luta, direcionando suas presas afiadas no pescoço do lobisomem, atingindo a veia jugular, desfalecendo-o no exato momento. Ela sente o sabor do sangue quente e férreo se esvaindo de sua boca.
Ainda em ritmo frenético, Ilana avança em mais dos guardas, desferindo socos a fim de desacordá-lo, porém, o lobo era ainda mais forte que ela.
Agarrando Ilana, o grande lupino ergue seu corpo e a arremessa contra uma pedra, Ilana perde o ar, seu desespero cresce e a única coisa que ela vê são grandes olhos amarelos em meio a escuridão.
O guarda ameaça em dar outro golpe na garota, que se vira às pressas de se proteger e de retornar o ar para os seus pulmões o mais rápido possível.
As vistas de Ilana escurece, mas não poderia fraquejar, aquele não seria seu fim, não agora.
O guarda é puxado abruptamente para trás, tendo sua passagem de ar impedida por Filippo que travou seu braço no pescoço do lobisomem, o tal desfere cotoveladas em Filippo, que retrai para trás, mas sem deixar de soltá-lo nem por um segundo.
Ilana se levanta, e mesmo sem fôlego, ergue uma pedra e atinge a face do guarda, que cai no chão no mesmo momento.
Mais uma vez a garota ergue a pedra, a chocando contra a nuca do guarda, que se abre, expelindo sangue e massa cefálica de sua cabeça.
Os três correm dessa vez atentos a qualquer ameaça. Já haviam deixado muitas coisas para trás, mas Ilana não largou um minuto sequer a bolsa, era como se sua vida dependesse daquilo.
Mais e mais guardas surgem ameaçando a fuga do trio, já estavam fatigados da luta, e enfrentar mais uma dezena de soldados custaria muito mais de suas energias.
Filippo retorna a sua forma humana, tentando correr na mesma velocidade que antes, mas falhando.
─ Vão na frente ─ ele grita.
Yaco e Ilana param no caminho.
─ Vou despistá-los, não se preocupem comigo ─ Filippo se despede e ressurge a sua forma de lobisomem.
Ilana tenta ir atrás dele, mas é impedida por Yaco, que põe o seu corpo forte e robusto na frente de sua filha. Ilana grita internamente, sabia que Filippo não retornaria, seria morto e dilacerado pelos guardas, ele não teria chances, era só um em meio a muitos.
Relutante, ela resolve deixá-lo ir.