Os tahagulenos não se afastaram por um minuto sequer da aldeia, eles rodearam o local como urubus famintos pelo desfalecimento de sua presa, prontos para atacar em qualquer sinal de ameaça.
Aflitos e receosos com o que o futuro esperava, alguns dos moradores de Vallos reuniram seus pertences para abandonarem a cidade o mais rápido que pudessem, não queriam ficar ali para ver o que aconteceria com aqueles que decidiram lutar pelos seus direitos.
Tudo o que receberam foram 30 mil fallins por família, a incerteza de que lugar aceitaria aquela quantia de dinheiro, do lugar em que trabalhariam e se iriam sobreviver a mais uma das dificuldades que teriam que enfrentar.
Apesar de não terem um governador ou líder, Zahar tomou a frente para organizar seu povo para a partida de Vallos, o tal homem era visto pelos moradores como um líder nato, que sempre prezava em protegê-los naquela pequena aldeia, mesmo que não pertencessem ao seu sangue. Zahar era alguém que esbanjava confiança e autoridade.
⎯ Quero que as crianças e os idosos sigam a frente junto aos seus familiares ⎯ Zahar diz. ⎯ Logo atrás, preciso de olhos atentos para vigiar nossas crianças, por esse motivo necessito de homens fortes e saudáveis para isso…
Todos ouviam atentamente as instruções de Zahar, para não perder nenhum detalhe.
⎯ Acho que Zahar irá me escolher para proteger as crianças ⎯ Airam disse com humor, esperando tirar algum sorriso do rosto de Ilana, que se mantinha séria e inerte a tudo a sua volta.
⎯ Tenho certeza que você será a melhor escolha ⎯ mesmo entrando na brincadeira, Ilana não conseguia esconder toda a preocupação que a rodeava.
A maioria dos moradores de Vallos não passavam de refugiados, que saíram de sua terra natal em busca da sobrevivência, tiveram que reconstruir e se reestabelecer em um novo lugar,e agora de uma só vez, teriam que fazer aquilo novamente, não era algo justo, mas quem se importava com isso em uma terra onde a justiça era colocada em último lugar?
⎯ Ilana? ⎯ A voz de Zahar dissipa os pensamentos da garota.
⎯ Sim?
⎯ Posso te pedir para que seja uma dos últimos a partir? Escolhi mais alguns para estar juntos, precisamos de alguém que proteja os demais, e sei que você luta muito bem, estarei logo atrás, com vocês.
⎯ Claro ⎯ Ilana diz sem hesitar.
Não muito longe dali, Yaco se encontrava no casebre onde Patmar morava, o professor caminhava pela cozinha calmamente, procurando ingredientes para poder fazer um chá, enquanto a água fervia na chaleira.
⎯ Essa sua calmaria me deixa admirado, mas precisa arrumar suas coisas, todos já estão partindo ⎯ Yaco avisa.
⎯ Sente-se, e venha tomar um chá comigo. Hoje temos camomila, erva cidreira, ou se preferir temos de alecrim. Aproveite que é difícil estar nessa fartura toda…
⎯ Não temos tempo para tomar chá ⎯ Yaco caminha em direção a um caixote onde Patmar guardava suas roupas. ⎯ Leve somente o necessário, nos viramos para encontrar o restante.
⎯ Para de mexer nas minhas coisas ⎯ A voz autoritária de Patmar toma conta do ambiente, a mesma voz que ele usava para repreender seus alunos caso tivessem aprontando.
⎯ Estamos todos indo se refugiar em outra cidade, não ouviu o aviso dos tahagulenos?
⎯ Vallos é minha casa agora!
⎯ Vallos não nos pertence mais Patmar ⎯ Yaco se altera. ⎯ Venha conosco!
⎯ NÃO QUERO! ⎯ Sua voz se eleva. ⎯ Se essa terra perecer, irei juntamente a ela…
Patmar nunca foi um homem teimoso, era sábio o suficiente para saber a hora que precisava ceder, ouvir e contrariar. Yaco perguntava a si mesmo se o que Patmar tinha era medo, de ir para um lugar onde fosse descoberto, e torturado até clamar por sua morte. Mas não queria deixar seu companheiro para trás, a quem tanto ajudou.
⎯ Logo mais meus filhos e eu iremos abandonar a alcateia e vamos atrás do nosso próprio rumo ⎯ pouco a pouco, Yaco revela seus segredos. ⎯ Iremos pegar um barco e partir para longe dessa terra, o barco é grande o suficiente para você vir conosco.
⎯ Como conseguiram esse barco?
Yaco dá um longo e profundo suspiro antes de continuar.
⎯ Juntando dinheiro dos roubos aos cemitérios.
Um leve sorriso se forma no canto do lábio de Patmar.
⎯ Você não é muito diferente de mim.
⎯ Nos atraímos pelas semelhanças, não pelas diferenças.
Os dois soltam uma gargalhada leve e sincera.
Essa frase é o suficiente para despertar alguns pensamentos em Yaco, que recolhe o sorriso, entendendo sem uma única palavra, o desejo de seu companheiro em permanecer.
A semelhança entre Yaco e Patmar era que os dois seriam capazes de sacrificar qualquer coisa em troca da liberdade.
⎯ Boa sorte na sua jornada! Que os deuses lhe abençõe ⎯ Patmar deseja a Yaco.
⎯ Obrigado!
O senhor atravessa a porta do casebre, em despedida, Yaco perdeu muitos companheiros durante sua jornada sem ao menos se despedir, com Patmar não seria diferente, pois acreditava que a vida na terra era apenas uma curta passagem, e que em breve, se encontrariam novamente.
Yaco se junta a sua família, orando em pensamento para não ser preciso perder mais ninguém durante sua vida, principalmente seus queridos filhos.
(...)
A noite estava cada vez mais fria, entretanto, os moradores de Vallos necessitavam descansar, para isso armaram tendas para se abrigarem até o nascer do Sol.
Juntamente a sua família, Ilana se protegia do frio ficando próxima à fogueira, apenas aguardando a hora do sono chegar.
Ela observava algumas crianças brincando, e invejava toda essa despreocupação que elas tinham, às vezes desejava que seus pensamentos sumissem, apenas por alguns segundos.
⎯ Sabe Ilana… ⎯ Airam chama a atenção da jovem para si. ⎯ Agora seria um bom momento para você continuar a história.
Ilana pensa por um momento, talvez aquilo fosse distraí-la.
⎯ Também quero essa história ⎯ Filippo se aproxima calmamente se juntando aos dois.
⎯ Onde eu havia parado?
⎯ Pelo o que eu me lembro foi no início da rebelião dos deuses ⎯ afirma Airam.
Ilana endireitou-se, preparada para dar continuidade a história.
⎯ A rebelião dos deuses foi um marco para a existência das criaturas, cada deus transformou um humano em um ser que tivesse poderes capazes de enfrentar o exército do deus supremo.
⎯ Achava que os seres humanos foram todos extintos pelo deus supremo, depois os vampiros, demônios, lobisomens e os demais foram criados⎯ Filippo interrompe.
⎯ Ninguém tem certeza absoluta sobre tudo que aconteceu, só estou contando a versão que minha mãe me contava.
⎯ Sua mãe estava errada ⎯ insiste o rapaz.
⎯ Quer continuar a narrativa? ⎯ Ilana ergue as sobrancelhas e encarou o rapaz.
⎯ Não minha flor de lótus ⎯ sorri amarelo. ⎯ Pode continuar.
Ilana dá um profundo suspiro, e foca novamente na história que estava a contar.
⎯ Independente se foram os seres humanos foram transformados ou recriados, o único objetivo que os deuses tinham era de ter soldados fortes o suficiente para ir contra o exército de Stvar.
Não sabemos ao certo o motivo da escolha de cada ser, mas a princípio eles serviram muito bem como soldados, capazes de suportar as batalhas e quase vencerem a guerra.
Quase, pois Stvar ainda não havia agido diretamente, quando o deus supremo enfim resolveu descer dos céus, a guerra que perdurou por séculos acabou em questão de segundos.
Os deuses enfim derrotados ainda sim tiveram uma segunda chance para se redimir, mas apenas dois deles cederam, sendo eles Alklas e Indifell.
Os demais ainda sim queriam derrotar o deus e tomar todo o domínio para eles, mas falharam miseravelmente.
Stvar estava descontente com a desobediência de sua prole, e como castigo, uniu os deuses a suas criações, e as amaldiçoou de acordo com as características de seus deuses.
Sabendo que Chillsafar havia sido a pioneira, e líder de toda aquela rebelião, o deus a aprisionou em seu próprio império, expulsou os feiticeiros desse lugar e apagou suas memórias e lançou uma maldição, onde a própria magia seria capaz de matá-los caso não obedecessem a regra dos três pilares.
Tahagul não pode permanecer como governanta de seu próprio império, mas teve uma punição mais amena, suas criaturas apenas não sobreviveriam caso não consumissem sangue.
Os lobisomens foram amaldiçoados com a prata, que seria letal ao tocá-la, completamente contradizente com tudo que Montualia fornecia, e assim como Tahagul, a deusa da prosperidade foi exonerada de seu império.
Já Solycium, teve suas criações atormentadas por um ser maligno, encontrado no fundo do oceano, que libera uma toxina letal, nomeado como Cilyka.
E a última a ser exonerada de seu império, Katacrista, uma de suas plantas favoritas é capaz de envenenar e matar suas criaturas, com ela é possível fazer chás medicinais, porém uma única gota é capaz de dizimar orcs e ciclopes.
Por terem cedido a um único pedido de Stvar, Indifell e Alklas foram os únicos a permanecer como governantes de seus impérios.
Porém suas criaturas ainda sofrem as consequências, os anjos se tornam enfraquecidos com a ausência de suas asas e os demônios se tornam totalmente vulneráveis a armas que fossem forjadas pelo fogo de Dogel, encontrado nas terras de Indifell.
⎯ Mas Indifell agora não é liderado por um general? ⎯ Airam questiona.
⎯ Sim, os indifilenos foram libertos da ganância de seu deus, mas essa história fica pra outro dia.
⎯ E em que momento os altaneiros entram na história? ⎯ continua a criança.
⎯ Eles tinham um papel semelhante aos dos Anhumas, de servirem diretamente a um deus, exceto que não precisam abdicar de suas vidas para servi-los. Com a maldição de Stvar, os altaneiros receberam um papel ainda mais importante na história. Eles não somente serviam os deuses, como também eram responsáveis por realizar cultos de adoração para resgatar a fé de seu povo. " Um povo fraco é apenas um reflexo de um deus fraco", com a ligação que os deuses tinham com suas criaturas, os altaneiros receberam esse cargo tão importante, sendo os únicos a terem contato direto com o seu deus.
⎯ E de que forma eles são escolhidos?
⎯ É difícil imaginar o que se passa pela cabeça de um deus, questão de força, persuasão, gentileza, inteligência ou bondade, não temos certeza dos requisitos para ser um altaneiro.
Os altaneiros também possuíam um papel fundamental em cuidar e zelar pelo bem de todos, colocando os demais acima de suas vontades.
Ilana olha ao seu redor, se sentindo cada vez mais pesarosa ao ver seus familiares e amigos passando por tudo aquilo, se o imperador não era capaz de ajudá-los, quem sabe talvez, um altaneiro pudesse os ajudar.
"Ou seria em vão?" Questionava a mais jovem, a qual foi se deitar com esse pensamento rondando sua cabeça.
(...)
Todos partiram mais cedo naquela manhã, encontrar um local para se abrigar era o maior objetivo e não tinham tempo a perder.
Ilana caminhava lentamente no intuito de despistar sua família para não questionarem da ideia maluca que tivera. Ela iria até o palácio, atrás de Kaida para terem uma conversa franca, e quem sabe uma ajuda.
Ao perceber que Yaco e Airam estavam distraídos o suficiente, Ilana dá meia volta, a caminhada até Bolgdra não seria tão longe, talvez nem sequer notasse o repentino desaparecimento da jovem.
⎯ Ilana, pra onde está indo? ⎯ num tom quase repreensivo, Filippo a chama.
⎯ Eu prometo que te falo depois, agora volte com eles ⎯ responde mandona.
⎯ Só se você voltar também.
⎯ Eu vou resolver um assunto em Bolgdra, já volto.
⎯ Que assunto, posso saber?
Ilana tenta pensar de maneira rápida em uma solução para escapar de Filippo.
⎯ Vou te pedir um favor, só avise para meu pai que estou indo para Bolgdra, estarei de volta antes do entardecer.
⎯ Tudo bem, mas fique aqui até eu voltar, irei com você.
⎯ Eu prometo.
Filippo se afasta da jovem, e ao ver que ele estava longe o suficiente, Ilana corre, mais do que seus pés poderiam aguentar. Não queria envolver nem Filippo, nem ninguém caso algo desse errado, seria exclusivamente culpa dela.
Ao avistar o palácio, Ilana diminui os passos, e tenta recitar as mesmas palavras do discurso que havia montado na noite passada para falar com Kaida.
⎯ Meu povo necessita de sua ajuda… Não. Necessitamos da ajuda de nossa deusa… Estão praticando uma injustiça contra nós.
"E se não der certo?" O pensamento martelava na cabeça da pobre jovem, por mais que um lado seu insistisse para deixar as coisas como estão, outra era o total oposto, e as duas brigavam entre si, deixando-a maluca.
Ilana escuta um som de passos aproximando-se cada vez mais dela, ao olhar para trás, avista Filippo, que estava relativamente bravo.
⎯ Achou que pudesse me enganar? ⎯ Filippo abre um meio sorriso. ⎯ Eu te conheço a anos Ilana, já consigo diferenciar um "não" seu que esteja diferente.
Ilana queria estar furiosa naquele momento, mas era admirável alguém conhecê-la tão bem.
⎯ E sei também que independente da ideia maluca que esteja passando pela sua cabeça, você não irá descansar tão cedo enquanto não colocá-la em prática. Por isso vim atrás de você. Do que ou de quem você veio atrás?
Relutante, Ilana decide contar a verdade.
⎯ Vou falar com Kaida, sobre nossa situação e como eles podem nos ajudar.
A princípio, Filippo diria que ela estaria ficando maluca em imaginar que um altaneiro os ajudaria, se em todos esses anos ele nem sequer teve a preocupação de saber o que estava acontecendo em Vallos. Mas isso talvez não fizesse Ilana mudar de ideia, talvez a deixando reconhecer a verdade seria capaz de abrir seus olhos.
⎯Vou acompanhá-la até o palácio.
Ilana estranha a reação de seu amado, mas não decide questionar, apenas aceitar e ir ao seu objetivo.
As grandes muralhas que separavam o palácio da cidade, estava repleta de soldados à sua volta, talvez só na entrada tivessem quinze homens.
Mesmo as grandes paredes não eram capazes de esconder a tamanha beleza externa do castelo, as paredes eram tão alvas quanto a neve que caíam sob os telhados terracotas, e ainda na ausência do verde das árvores, o lugar não deixava de ser belo.
Com os passos um pouco hesitantes, Ilana se aproxima dos portões de entrada do palácio.
⎯ No que podemos ajudá-la? ⎯ Questiona o guarda assim que a jovem se aproxima.
⎯ Estou aqui pois preciso conversar com o altaneiro, é de extrema urgência.
⎯ Tem horário marcado? ⎯ suas sobrancelhas se ergueram.
⎯ É necessário marcar hora? É um assunto urgente!
⎯ O altaneiro Kaida não irá atendê-la, volte aqui outro dia.
⎯ Não dá! ⎯ a voz de Ilana sai trêmula. Pelo visto não seria tão simples assim falar com o altaneiro.
⎯ Vamos embora, querida ⎯ Filippo segura os ombros de Ilana, tentando levá-la embora.
⎯ Pensei que os altaneiros estivessem abertos para receber a um pedido de socorro. Mas pelo visto eles só querem se ausentar da responsabilidade que foi direcionada a eles.
⎯ A senhorita parece uma criança mimada. Um não é o fim do mundo pra você?! ⎯ o guarda afirma.
⎯ Um não? ⎯ Ilana dá uma risada sem humor. ⎯ Você mal faz ideia de quantos nãos eu já ouvi na vida.
Os olhos âmbar do guarda encontra aos de Ilana, e como se pudesse ler cada pensamento da garota ele continua:
⎯ Posso até não saber, mas te garanto que não será possível conversar com Kaida hoje. E se puder se comportar como uma adulta, algo que eu acredito que já seja, peço que dê meia volta e retorne para o buraco de onde saiu.
As unhas de Ilana cravam em sua pele, e respirando profundamente, a jovem engole seu orgulho e decide retornar para a alcateia.
Filippo sente um alívio ao ver sua amada caminhando sem ter deixado seu lado impulsivo tomar conta da situação.
Ela se senta em uma das rochas localizada em frente ao palácio, e segurando seus joelhos para abafar o som, Ilana dá um grito gutural.
⎯ Vai ficar tudo bem ⎯ Filippo envolve Ilana em um abraço reconfortante. ⎯ Está cada vez mais perto para deixarmos Montuália, não irá precisar se preocupar com mais nada.
O silêncio se prolonga, até a garota rompê-lo.
⎯ Não te aflige olhar para todos eles? Estão desesperançosos, com medo de não encontrarem um lar, de adoecer ou morrer de fome… Mais uma vez.
O rapaz admirava a empatia que sua amada tinha para com os outros, mas sabia que aquilo a destruiria mais e mais.
⎯Ilana, não dá pra salvar todo mundo!
⎯ E por que eu não tentaria se ainda me restam chances? Como vou embora daqui sabendo que deixei pessoas morrerem sem abrigo?
⎯ Nada disso é culpa sua, será que não entende? Tira essa ideia da sua cabeça. Você não pode pegar todos os problemas do mundo e carregá-lo em suas costas.
⎯ Você não entenderia…
⎯ Eu entendo sim, que tudo isso está te fazendo mal ⎯ Filippo trás o corpo de Ilana para si, afagando seu rosto em seus cabelos. ⎯ Esse lugar está te fazendo mal, por isso precisamos ir embora.
Os olhos de Ilana marejam, queria ter toda essa força de deixar tudo pra lá, talvez ser mais parecida com Filippo, queria não se importar.
Lágrimas inundam o olhar de Ilana, e ao enxugá-las, a jovem avista uma carruagem se aproximando dos arredores do palácio.
Quem quer que estivesse dentro da carruagem, acaba descendo antes mesmo do transporte atravessar os portões. E lá estava um senhor de meia idade, de feição cansada, com vestes que remetiam a realeza, seria ele o altaneiro.
Ilana se levanta de supetão, correndo em direção a Kaida, que mal nota a presença da garota, exceto, quando ela cai aos seus pés e segura em suas vestes tentando se equilibrar.
⎯ Mas o que é isso? ⎯ o guarda que conversou anteriormente com Ilana, se aproxima dela, afastando a jovem com um chute. ⎯ Eu não mandei você embora daqui? Some da nossa frente sua imunda!
⎯ Levon! ⎯ Kaida chama a atenção do guarda, que estava prestes a partir para cima da garota. ⎯ Qual é o motivo dessa violência toda?
⎯ Ela está rondando o palácio já tem um tempo, não duvido nada que veio para roubar.
⎯ Não vim para roubar nada! ⎯ A voz de Ilana se eleva em meio aos burburinhos dos outros guardas. ⎯ Eu apenas precisava conversar com o senhor, é urgente!
Kaida olha para Levon, em seguida para Ilana, decidindo em qual verdade acreditaria.
⎯ Deixem que a jovem me acompanhe, quero saber do que se trata.
Obediente, os guardas cedem ao pedido do altaneiro. Ilana acompanha Kaida até o jardim, contente em ter conseguido se aproximar dele.
⎯ Tem algo te afligindo, minha querida?
⎯ Sim, não sei se o senhor está ciente do que anda acontecendo em Vallos, mas saiba que estão praticando uma injustiça contra nós.
⎯ De qual tipo? ⎯ Kaida se apruma, atento ao que Ilana diria.
⎯ O imperador vendeu nossas terras para os tahagulenos, nos deixando sem lar.
As grossas sobrancelhas de Kaida se unem em confusão.
⎯ E o que espera que eu faça? Não posso ir contra a ordem de um imperador.
⎯ Um deus pode! O senhor poderia conversar com Montuália, saber o que ela pode fazer conosco. Eles não podem nos tirar de nossos lares, oferecer uma merreca de dinheiro e achar que iremos ficar por isso mesmo.
Kaida dá um profundo suspiro, pensando no que diria para acalmar a pobre moça.
⎯ Tenho um conselho a você. Se ajoelhe no chão e preste uma oração a Montuália, e fale sobre tudo que aflige seu pobre coração.
⎯ Montuália que se foda! ⎯ O olhar de Kaida se expande, quase saindo de suas órbitas, embasbacado com a tamanha ousadia que a jovem ousara em falar.
⎯ Peça perdão pelo o que disse, agora!
⎯ Se algum dia Montuália deixasse seu belo trono em Misocândria para saber de tudo que anda acontecendo, sem sombra de dúvidas ela quem iria pedir perdão.
⎯ Não creio que você teve a coragem de vir até aqui, desrespeitar a sua deusa e ainda quer que eu desafie o imperador? ⎯ Kaida dá um profundo suspiro, maneando a cabeça para os lados. ⎯ Vou prestar uma oração dedicada a você . Deve haver algum espírito maligno atormentando seus pensamentos.
⎯ Foi uma perda de tempo eu ter vindo até aqui. Tenha um ótimo dia!
Ilana atravessa os portões do palácio, ainda mais furiosa que antes, seus passos se apressam cada vez mais para ir para longe daquele lugar.
⎯ São um bando de corruptos ⎯ Ilana se aproxima de Filippo, que aguardava apreensivo do lado de fora do palácio.
⎯ Eu sabia que seria uma péssima ideia. Mas sabia que você não iria se aquietar até perceber por si só. ⎯ o jovem confessa. ⎯ Acho que deveríamos pegar o restante de nossas coisas e partir o mais rápido possível daqui.
⎯ Vocês mal terminaram de construir a embarcação.
⎯ Vamos pegar o restante da joias e vender, depois compramos um barco.
⎯ Não era você que dizia que isso chamaria muita atenção?
⎯ Plano B.
Mesmo se sentindo um pouco contrariada, Ilana cede ao pedido de Filippo.
Os dois seguem para o esconderijo que ficava próximo de Vallos, porém seguiram outro caminho, um pouco mais longo, pois temiam que os vampiros os atacassem.
Ao chegar no local, Filippo utiliza de sua força para afastar a pedra acima da pequena portinha que dava para o esconderijo debaixo da terra.
Haviam ainda dois sacos contendo dinheiro e algumas joias, Filippo se agarra a uma delas e entrega a segunda para Ilana.
⎯ Pronto! Agora só basta encontrar sua família e a minha e vamos sair daqui.
Filippo solta a porta de madeira que fecha com um estrondo, graças aos deuses não iriam mais precisar guardar mais nada naquele local.
⎯ Você mudou de ideia tão repentinamente ⎯ Ilana apressa os passos, quase começando a correr para tentar alcançar o rapaz.
⎯ Eu preciso te proteger, de você mesma no caso.
⎯ Nem ao menos consultou meu pai antes.
⎯ Yaco irá me entender.
Repentinamente o céu escurece, e um som de trovão surge ao horizonte, Ilana franze a testa, sentindo um calafrio percorrer o seu corpo.
⎯ O que anda acontecendo com o tempo? ⎯ Filippo questiona ao observar o céu ficar cada vez mais estranho.
⎯ Deve ser apenas uma chuva ⎯ tenta acreditar em si mesma, mas mal sabia que o pior estava por vir.
Filippo e Ilana continuaram a caminhada, e quanto mais andavam, mais próximo o som dos trovões ficavam e o céu se escurecia formando um breu.
Um braço ergue da terra, agarrando o tornozelo de Ilana que cai no chão abruptamente, em desespero, Ilana dá vários chutes na mão que tentava agarrá-la, mas as tentativas foram em vão.
Filippo tenta socorrê-la, mas seu braço também é segurado pela mão misteriosa. Ao transmutar parte de sua mão a de um lupino, o rapaz rasga a pele negra que revestia o braço, fazendo-a desaparecer instantaneamente, e dessa forma, ele também consegue soltar Ilana.
Os dois começaram a correr em meio àquele extenso campo vazio, sem árvores, arbustos ou rochas, não tinham onde se esconder daquelas mãos que insistiam em crescer do solo como ervas-daninhas.
Da mesma forma que os membros surgiram em meio a terra, um corpo se ergue em frente a eles, não possuía uma forma pré definida, mas aos poucos, se tornou em uma figura masculina, sem expressão.
Não tinham como opção lutar contra aquele ser estranho, então os dois continuaram a fugir, mas a criatura era rápida, conseguindo alcançar os dois.
O ser agarra os cabelos de Ilana a lançando para trás, e com passos enigmáticos, ele se aproxima aos poucos da garota.
Dos céus surge um raio, que cai em direção àquela estranha figura, a desintegrando, Ilana arregala os olhos desacreditada do que estava vendo.
Ela levanta e tenta ir atrás de Filippo que lutava contra outras dezenas de criaturas semelhantes a que o raio desintegrou.
⎯ Que merda é essa? ⎯ pergunta assustada.
⎯ Não faço ideia, nunca havia visto isso na minha vida ⎯ Filippo se aproxima de Ilana, ficando ambos de costas um para o outro. ⎯ Toda vez que eu mato um, outros dois aparecem.
Seria aquele o seu fim? Mortos por criaturas desconhecidas e bizarramente assustadoras.
Mais um raio desce dos céus, formando um arco-voltaico, destruindo as criaturas em milésimos de segundos, um odor de enxofre invade as narinas dos dois jovens que estavam apavorados com o que presenciaram, descrentes em não terem sido eletrocutados juntamente as criaturas.
⎯ Estão tentando nos matar ou nos salvar? ⎯ Filippo toca seu em seu tórax e abdome algumas vezes para se certificar de que ainda estava vivo.
⎯ CORRA! ⎯ Ilana dá um grito ao ver que as criaturas estavam retornando mais uma vez.
O rapaz obedece seu comando e segurando a mão um do outro, os dois tentam desviar dos raios direcionados às criaturas. Seus pés clamavam por descanso, mas ao avistarem um conjunto de árvores eles tentam suportar mais um pouco.
Quando enfim se aproximaram da floresta, os dois jovens se esconderam em meio às árvores, tentando aproveitar da pequena pausa para respirar, seus pulmões ardiam como fogo, mas não poderiam perder tempo, pois as criaturas estavam em seu encalço.
Um vulto surge em meio aos galhos secos, e de lá, um vampiro sedento por sangue encara Ilana e Filippo, pronto para atacar.
Sem pensar duas vezes, Filippo se transmuta no ser feroz, colocando o seu corpo agora vigoroso na frente ao de Ilana.
⎯ Não é uma boa hora pra lutar agora, Filippo ⎯ a garota diz, porém o rapaz não a escuta, partindo para cima do vampiro.
Com o coração quase indo parar na garganta, Ilana observa o cenário ao seu redor, temia que aquele não fosse o único vampiro presente.
E não estava errada, mais deles foram surgindo aos poucos entre as árvores, torceu internamente para que os raios surgissem novamente para deter os sanguessugas.
Ainda diante da ameaça, Ilana pode observar que os olhos daqueles vampiros estavam enegrecidos, como se estivessem possuídos por uma força maior.
Dando alguns passos para trás, a garota tenta pensar em uma rota de fuga, sabia quando era o momento certo para lutar, e não era aquele.
Mas correr também poderia custar sua vida, eles deveriam estar atrás de alguém, ou algo.
Ao abrir sutilmente o saco, Ilana vê a orbe dourada, será que estavam atrás daquele objeto misterioso?
Se arriscando em perder o segundo saco com dinheiro, Ilana joga-o no chão e corre na direção oposta, torcendo para que estivesse certa.
Esperançosa, Ilana olha para trás e vê que não está sendo seguida, sua intuição estava mais certa do que nunca, agora só faltava conseguir encontrar Filippo e partirem para a alcateia.
Entretanto, o rapaz lutava ferozmente contra o vampiro, que o atacava de diversos ângulos a procura de um ponto vital que ceifasse a vida do rapaz.
Mais um som de trovão surge dos céus, em seguida o raio atinge o chão, e consequentemente Ilana se afasta com medo de ser atingida, perdendo Filippo e o vampiro de vista.
Em desespero no meio da escuridão, ela tenta ir à procura de seu amado, torcendo para que ele estivesse bem.
Seu corpo a desobedece quando algo a puxa para trás, e seu grito é cessado por uma mão que rodeia seus lábios.
⎯ Estão sendo despistados, veja ⎯ Filippo sussurra no ouvido de Ilana, que sente um alívio instantâneo.
Os vampiros e as criaturas demoníacas marchavam em direção a um lago congelado, pareciam estar hipnotizadas, e assim eram "afogadas" quando o gelo cedeu devido ao peso.
⎯ O que é isso na sua mão? ⎯ Ilana agarra abruptamente o braço de Filippo, que revela estar guardando a esfera dourada. ⎯ Não, não, não… Eles estão atrás disso! Vão vir atrás de nós novamente.
⎯ Foi a única coisa que consegui recuperar pra gente vender.
⎯ Vamos morrer se continuar com isso ⎯ Ilana agarra o objeto, o erguendo para arremessá-lo longe.
"Não"
Uma voz invade os pensamentos de Ilana, causando-lhe uma dor de cabeça aguda.
"Proteja-a"
Desacreditada com o que acabou de escutar, Ilana olha em seu entorno à procura da voz misteriosa.
⎯ O que houve?
⎯ Não sei ⎯ Ilana olha para a orbe, dessa vez se encantando pelo objeto. ⎯ Vamos pra casa ⎯ sua voz se suavizou, e ela se agarra mais a esfera.
Sem questionar, Filippo segue Ilana que andava esbaforida e sem rumo.
⎯ Se acalme, assim vamos nos perder ⎯ o rapaz corre ao alcance de Ilana, achando o comportamento da jovem estranho. ⎯ Você não está bem, vamos parar por aqui.
⎯ Nem pensar! Estamos tão perto! ⎯ Um sorriso psicodélico se formava no rosto de Ilana, o rapaz dá alguns passos para trás, temendo ao que via a sua frente.
⎯ Larga isso! ⎯ Filippo tenta agarrar o objeto das mãos da garota, que se desvencilhar rapidamente.
⎯ Não posso ⎯ ela olha mais uma vez para o objeto, em seguida para Filippo, sua consciência retorna por um instante. A orbe escorrega de sua mão, caindo no chão. ⎯ Não podemos continuar mais aqui.
Ilana dá meia volta, caminhando para longe da orbe, mas seus passos são interrompidos quando um grito familiar a desperta de seu devaneio.
Ao olhar para trás, ela é presenteada com a figura de Filippo com uma lança fincada em seu tórax, o corpo do rapaz cai em direção ao chão, desacreditada, Ilana se aproxima do corpo de seu amado, torcendo para que fosse uma breve ilusão a qual a orbe estava a submetendo.
Mas não, Filippo estava mesmo morto, sua respiração parou, e seu olhar se tornou frio, ausente de qualquer sinal de vida.
Ilana não sabia se chorava, se gritava ou se ainda buscava alguma forma de salvar Filippo, mas o perigo ali presente não pretendia esperar, e em meio a confusão e um mix de vozes rondando a cabeça da garota a fez agir impulsivamente em busca da sua sobrevivência.
Ilana agarrou a orbe suja de sangue em suas mãos, e correu o mais rápido que pôde, mas seus pés humanos não aguentariam por muito tempo, já estava exausta, e o acontecimento anterior havia a abalado.
"Proteja-a com a sua vida"
A voz novamente soou em sua cabeça, Ilana colocou a orbe entre os dentes, e em meio ao desespero se transformou em um lobisomem a fim de poder correr o mais rápido que seu corpo lhe permitia.
Os raios continuavam a enfeitar os céus, não cessando por um minuto sequer no intuito de proteger Ilana dos vampiros e das criaturas demoníacas.
Ilana corria ainda mais veloz, sentindo a orbe bater contra seus dentes, talvez trincando alguns pelo impacto de suas patas sob o solo, mas ela não iria parar por ali, a voz pedia para ela não parar, e mesmo que lutasse contra a vontade de proteger a orbe, Ilana não conseguia, era mais forte que ela.
Por um breve descuido, o raio atingiu uma das árvores, que não foi capaz de suportar o impacto, e caiu em cima do corpo de Ilana, esmagando cada centímetro de seu corpo. Não resistindo a colisão, a garota concede a sua ida para o reino dos mortos, entregando assim, a sua alma.